Mais-valor (Mehrwert) é o termo com que o pensador alemão Karl Marx (1818-1883) designa a quantidade de trabalho humano não remunerada. Transformada em mercadoria, a força de trabalho é comprada pelo empregador por um valor – o salário – suficiente apenas para a manutenção e reprodução do empregado. Esse valor equivale a uma parte – por exemplo, quatro horas – de uma jornada de trabalho de oito horas ou mais. A outra parte constitui o trabalho excedente, além do necessário para a subsistência do trabalhador, que fica com o empregador e resulta em lucro. Já alienação (Entfremdung) – outro conceito concebido pelo pensador alemão – se refere ao fato de que, destituído da propriedade dos meios de produção, o trabalhador não se reconhece mais no produto do seu trabalho, a que terá acesso somente através do mercado, ao comprar aquilo que ele mesmo produziu. Nela, “a própria ação do homem se torna um poder que lhe é estranho, um poder que subjuga o homem em vez de por este ser dominado”, como Marx escreve em A Ideologia Alemã.
Essas explicações são extraídas de dois livros lançados recentemente pelos professores Osvaldo Coggiola e Jorge Grespan, ambos do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Coggiola é autor de Teoria Econômica Marxista – Uma Introdução e Grespan assina Marx – Uma Introdução. As obras são publicadas pela Boitempo Editorial, de São Paulo. De forma clara, simples e objetiva, os dois livros oferecem uma ampla visão sobre a origem, o desenvolvimento e os mecanismos do capitalismo, o sistema econômico predominante no mundo hoje, sempre de acordo com Marx.
Entre os mecanismos do capitalismo está o salário, que Coggiola analisa em seu livro. Como escreve o professor, o salário que é pago parece retribuir pela totalidade do trabalho efetuado. Mas, se isso fosse verdade, o empregador não teria vantagens, pois, por exemplo, se um operário produz valores iguais a R$ 1 mil e recebe essa mesma quantia, não há nenhum lucro – uma vez que só a força de trabalho cria valor, e não máquinas, ferramentas e matérias-primas. “O salário cumpre a função de ocultar o trabalho não pago, que é embolsado pelo capitalista. Aparece como pagamento do trabalho realizado pelo operário, mas, na realidade, é o pagamento da produção e reprodução de sua força de trabalho, ou seja, dos meios de subsistência necessários para manter o operário vivo e trabalhando”, destaca Coggiola. “É sobre essa ficção que se constrói todo o edifício da legislação trabalhista, os contratos de trabalho etc. Trata-se de uma mistificação que mantém os operários acorrentados à exploração capitalista.”
O valor da força de trabalho, por sua vez, é determinado pelo valor dos meios de subsistência dos trabalhadores, que varia de um país para outro e de uma época para outra. “A extensão das chamadas necessidades imediatas, assim como o modo de sua satisfação, é ela própria um produto histórico e, por isso, depende em grande medida do grau de cultura de um país, mas também, entre outros fatores, de sob quais condições e, por conseguinte, com quais costumes e exigências de vida constitui-se a classe dos trabalhadores livres num determinado local”, escreve Marx na sua obra máxima, O Capital, citado por Coggiola.
Através da reivindicação por melhores condições de vida, os trabalhadores podem obter conquistas que acabam sendo consideradas “meios imprescindíveis de subsistência”, entre elas o aumento do poder aquisitivo dos salários. Entretanto, isso não significa a redução da exploração sobre o operário, considera Coggiola. Ao contrário, pode representar até mesmo o aumento dessa exploração, se estiver acompanhado de um aumento superior da produtividade ou da intensidade do trabalho. Num exemplo citado pelo professor no livro, se antes a produtividade gerava $200 e os salários eram iguais a $100, o mais-valor era de $100; depois, se com o aumento da produtividade passou-se a gerar $400 e os salários foram elevados para $150, o mais-valor passou a ser de $250, diminuindo o salário relativo e aumentando os lucros do capitalista. “O engodo do falatório capitalista de ‘ganhar mais produzindo mais’ encontra-se aqui: produz-se mais, porém, na realidade ganha-se menos em relação ao total do que foi produzido”, revela Coggiola.
Para o professor, essa tendência à queda do salário relativo constitui uma “lei” do capitalismo, sistema que, segundo ele, se caracteriza pela acumulação da riqueza social em um polo, a burguesia, e da miséria social em outro polo, a classe operária. “Ela explica como, em uma sociedade em que a produtividade e a produção aumentam de modo quase infinito, aumenta também de maneira inédita a chamada ‘concentração de renda’, que faz com que, atualmente, menos de 1% da população mundial detenha mais de 50% da riqueza total produzida pela sociedade.”
A origem e funções do dinheiro, a acumulação do capital, o fetichismo, o imperialismo e a tendência do capitalismo à queda também são discutidos por Coggiola em seu livro.
A dialética de Hegel
O livro de Grespan introduz o leitor no pensamento de Marx através da análise de temas como alienação, mercadoria e capital, fetichismo, ideias e representações, crises econômicas e história e revolução, a que o professor dedica os seis capítulos da sua obra.
Já na introdução, Grespan explica a importância da dialética do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) para o principal objetivo de Marx – fazer a crítica do capitalismo e revelar as contradições desse sistema. Para Hegel, a dialética é a forma capaz de reproduzir o movimento contraditório pelo qual os fenômenos aparecem como o inverso do que são em sua essência, informa o professor. De acordo com a idealista visão hegeliana, um aspecto positivo se oculta por trás dos acontecimentos negativos da história e acaba por predominar sobre eles. “Em contrapartida, na versão materialista proposta por Marx, a própria dialética tem seus polos negativo e positivo invertidos. Ou seja, até os eventos aparentemente positivos para o capital, como a acumulação e o lucro, redundam na negatividade interna das crises econômicas e políticas, que sempre voltam a assombrar”, destaca Grespan.
“A partir da compreensão crítica da dialética hegeliana, Marx pôde desvendar as várias estratégias adotadas pelo capitalismo para encobrir suas contradições”, acrescenta o professor. “Exemplo disso é a igualdade jurídica entre empregados e empregadores, que não corresponde a uma igualdade de condições sociais. Marx detecta na base da igualdade pressuposta no contrato de trabalho seu exato contrário, isto é, a desigualdade criada pela situação na qual a maioria da população é obrigada a vender sua força de trabalho, uma vez despojada da propriedade dos meios que lhe permitiriam trabalhar para si e por si mesma.”
Esse despojamento é apresentado pelo capitalismo como a propriedade que cada trabalhador possui de sua força de trabalho e como a liberdade de trabalhar em qualquer lugar e em qualquer ramo de atividade, continua Grespan. “Marx explica ainda que, por um lado, a ideia de autonomia inculcada nos membros da sociedade sob comando do capital leva-os a um individualismo cada vez mais exacerbado e à fragmentação das várias esferas da vida coletiva; por outro, essa autonomia decorre de uma dependência crescente e universal em relação aos mecanismos de valorização e expansão do capital, em geral difíceis de serem percebidos”, escreve o professor. “Portanto, a igualdade no plano jurídico é dialeticamente determinada pela desigualdade no plano social e a liberdade individual, pelo vínculo implacável das relações criadas pelo capital.”
Teoria Econômica Marxista – Uma Introdução, de Osvaldo Coggiola, Boitempo Editorial, 180 páginas, R$ 47,00
Marx – Uma Introdução, de Jorge Grespan, Boitempo Editorial, 104 páginas, R$ 35,00
Biografia faz mais do que mostrar a vida do pensador alemão
Outro lançamento recente da Boitempo Editorial é Karl Marx – Uma Biografia, de José Paulo Netto, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mais do que apenas uma biografia – como modestamente indica o seu subtítulo -, o livro deve ser considerado, antes, uma consistente biobibliografia de Karl Marx. Isso porque o autor tem o cuidado de mostrar e comentar com rigor as obras de Marx produzidas em cada momento da sua trajetória.
Tome-se como exemplo o período em que o pensador alemão viveu em Paris, nos anos de 1843 e 1844, após ser expulso da sua Prússia natal. Nessa época, Marx produziu os chamados Cadernos de Paris, os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844 e ainda A Sagrada Família. José Paulo Netto mostra o contexto em que essas obras foram escritas e expõe seu conteúdo, além de narrar os fatos mais importantes vividos pelo pensador alemão na capital francesa – como o célebre encontro com o parceiro intelectual de toda a sua vida, Friedrich Engels. “A visão que Marx tem da economia política nos Manuscritos é a mesma apresentada nos Cadernos: trata-se daquela ‘ciência do enriquecimento’, articulação de cientificidade enviesada ideologicamente pela defesa da ordem burguesa, apreensão de componentes significativos da realidade da organização da produção capitalista e sua subordinação ao ponto de vista dos proprietários”, analisa o professor.
O mesmo acontece no que se refere à etapa seguinte da vida de Marx, os quase três anos em que morou em Bruxelas, na Bélgica, entre 1845 e 1848, na sequência de sua expulsão da França. Na capital belga, escreve José Paulo Netto, ocorrem o deslocamento da inflexão intelectual de Marx da filosofia para a crítica da economia política e também o estabelecimento da “relação orgânica” do pensador alemão com a classe e o movimento operários. Ali surgiram as Teses sobre Feuerbach, A Ideologia Alemã, a Miséria da Filosofia e o Manifesto do Partido Comunista.
A respeito do Manifesto do Partido Comunista, José Paulo Netto comenta que esse texto apresenta pelo menos três inovações: nele a luta de classes é considerada a força motriz da dinâmica sociopolítica da sociedade burguesa, a inspiração e o espírito utópicos até então predominantes no movimento operário são substituídos pela investigação teórica de tendências reais e pela prospecção das alternativas concretas nelas contidas e prevalece uma visão internacionalista da teoria revolucionária. “É mesmo assombrosa a atualidade desse documento, inteiramente perceptível na sua primorosa antecipação, com precisão cirúrgica, dos principais traços pertinentes à sociedade burguesa madura, nossa contemporânea”, escreve o professor. “Nessas páginas, escritas entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, não está a descrição da sociedade burguesa da época, mas a configuração que ela haveria de possuir mais de um século depois, na plenitude do seu desenvolvimento.”
Do quarto ao oitavo e último capítulo, o livro é dedicado à atuação de Marx no seu derradeiro exílio – Londres, na Inglaterra -, onde ele se estabelece em 1849 e permanece até o fim da vida, em 1883. É o auge da carreira do pensador alemão, quando ele consolida sua crítica ao modo de produção capitalista em textos como os Grundrisse – publicados somente em 1939 – e a Contribuição à Crítica da Economia Política, considerados precursores da sua obra máxima, O Capital (Das Kapital), cujo volume 1 é datado de 1867. “Tomados em seu conjunto, os três livros de O Capital constituem uma arquitetura teórica monumental que revela, com notável rigor, no que toca à estruturação econômica, o que Marx disse ser ‘a articulação interna da sociedade burguesa'”, avalia José Paulo Netto.
Karl Marx – Uma Biografia tem 816 páginas e cerca de mil notas de rodapé. Colocadas no final do volume, estas constituem quase um livro à parte, porque trazem não apenas referências de citações, mas informações valiosas que enriquecem o texto principal. Uma rica iconografia valoriza ainda mais a edição, que conta também com vasta bibliografia, espalhada ao longo de 70 páginas.
Karl Marx – Uma Biografia, de José Paulo Netto, Boitempo Editorial, 816 páginas, R$ 95,00