“Iracema” apresenta a origem mítica do povo brasileiro

Publicada em 1865, obra de José de Alencar institui o indianismo como mito fundador nacional

 14/10/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 17/01/2022 às 18:40
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É inegável ouvirmos ecos camonianos na linguagem de Iracema”, analisa professor da USP – Imagem: Iracema (1884), por José Maria de Medeiros (1849-1925)/Domínio Público

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A constituição do indianismo como mito fundador nacional, embora de raízes europeias. A representação da mulher. O nível da construção linguística.

Se você é vestibulando, esses são os principais assuntos de estudo em Iracema, leitura obrigatória para o vestibular Fuvest 2018, na opinião do professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Marcos Flamínio Peres.

Marcos Flamínio Peres é professor de Literatura Brasileira da USP – Foto: Arquivo pessoal

Iracema foi escrito em 1865 por José de Alencar (1829-1877) e conta a história de amor entre a indígena que dá nome à obra e o aventureiro português Martim. Iracema pertence ao povo tabajara e é a filha virgem do pajé. Martim é aliado dos pitiguaras, inimigos dos tabajaras, e está perdido em território inimigo. O encontro entre os dois dá início a um romance que serve de lenda para contar o surgimento do Estado do Ceará.

A obra é uma das mais famosas do Romantismo brasileiro e se insere numa tendência conhecida como indianismo. “O indianismo representa ao mesmo tempo um momento tanto de particularização quanto de universalização da literatura brasileira”, afirma o professor.

“Particularização”, explica Peres, “na medida em que o uso de vocábulos tupis e nomes como Peri, Ubirajara e Iracema, assim como a descrição de costumes das tribos indígenas que povoavam o território antes da chegada dos portugueses, acentuam a ideia de uma determinada nação.”

Já a universalização, argumenta o professor, faz parte de um movimento mais amplo de resgate das tradições locais, surgido na Alemanha da segunda metade do século 18. Lá, autores produziram mitos através da revalorização de igrejas góticas e de cavaleiros andantes, da Idade Média e mesmo de culturas consideradas “bárbaras”, como a escandinava ou escocesa.

“Tal movimento de valorização das tradições locais deve ser compreendido à luz da hegemonia histórica da língua e literatura francesas, que reivindicavam para si um caráter supostamente universal, ancorado nas mitologias greco-latinas”, diz Peres.

“O indianismo representa ao mesmo tempo um momento tanto de particularização quanto de universalização da literatura brasileira” – Foto: Divulgação

Assim, analisa o professor, a valorização da figura do índio na literatura brasileira se insere nesse mesmo movimento de recusa do universal e de valorização do que é local, cerne do Romantismo.

Enquanto os alemães mitificaram a Floresta Negra, igrejas góticas e cavaleiros, Alencar dedicou seus romances indianistas, como Iracema, à natureza tropical e ao passado pré-colonial do Brasil. A escolha de tais temas, segundo Peres, fazia parte da lógica da recuperação da tradição local do Romantismo que, na literatura, se propunha a ser uma espécie de “invenção da tradição” – termo emprestado do historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012).

Eduardo Vieira Martins é professor de de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH – Foto: Reprodução / TVUSP

“Não é casual, portanto, que Alencar tenha chamado Iracema de ‘lenda’ – e não romance”, afirma o professor. “A ênfase na dimensão mítica se apresenta desde o início”, continua, “seja através da origem indefinida (‘Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema’), seja através de sua aproximação com os elementos naturais (‘Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira’).”

A ideia de mito também está presente na análise do professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH Eduardo Vieira Martins. “O romance indianista não pode ser lido com uma etnografia moderna”, reflete Martins. “É muito mais a criação de mitos de origem do que seria o povo e a nação brasileira, pensada, no caso do Alencar, do fruto do encontro do colonizador português com a terra americana.”

Para Marcos Flamínio Peres, a personagem-título é uma “donzela-guerreira” que, ao mesmo tempo, expressa ternura e dedicação extrema ao amado, características encontradas na literatura provençal e nas cantigas de amigo portuguesas. Essa dupla dimensão é o que instala o conflito entre o dever para com a tribo e o amor a Martim, o “guerreiro cristão”.

Ao lado da crise entre amor e dever, a saudade da terra natal é outro elemento-chave da obra. “A saudade das respectivas pátrias”, explica o professor de literatura brasileira, “a Europa distante e a tribo abandonada, acomete a ambos, reafirmando uma vez mais a ideia de nação como elemento constitutivo da estética romântica”. Nessa perspectiva, analisa, Moacir, o filho de Iracema e Martim, assume o estatuto emblemático do “primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nesta terra da liberdade” e dá origem, no plano mítico, a um novo povo e a uma nova nação.

Peres aponta ainda a musicalidade e o ritmo da escrita de Iracema como destaques da obra. “É inegável ouvirmos ecos camonianos na linguagem de Iracema”, afirma. As ressonâncias do poeta português Luís de Camões (1524-1579/80) estariam em passagens como “Martim libou as gotas do verde licor” ou “a juriti, que divaga pela floresta”.

Moacir, o filho de Iracema e Martim, assume o estatuto emblemático do “primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nesta terra da liberdade”, diz o professor Marcos Peres – Foto: Divulgação

Ao lado da influência clássica, o professor vê concorrendo para essa musicalidade e ritmo a sonoridade então incomum dos vocábulos indígenas, como carioba, juriti ou pocema, e o uso de aliterações, como a recorrência do fonema “t” na passagem “Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras”. Também se destaca a insistência sobre a comparação, como no trecho “ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte”. “Difícil encontrar uma página de Iracema em que não haja comparações”, frisa Peres.

José de Alencar (1829-1877) escreveu três romances indianistas: O Guarani, Iracema e Ubirajara – Foto: Academia Brasileira de Letras

Os escritores românticos do século 19 estão buscando uma linguagem que falasse a todos os sentidos e é esse o caráter da linguagem de Iracema”, comenta Eduardo Viera Martins.

Para Martins, ainda é importante que o vestibulando preste atenção à totalidade da obra, incluindo os textos de abertura e fechamento do livro. “Em Iracema você tem uma narrativa curta, mas o romance não é só a narrativa”, comenta Martins. “Você tem a narrativa, mas tem uma carta que a introduz, uma carta que a encerra, um posfácio acrescentado à segunda edição e uma série de notas escritas pelo próprio Alencar. Tudo isso faz parte de Iracema.”

O livro Iracema, de José de Alencar, está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1844

 

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