“É por meio dessa tentativa ainda no teatro amador, ainda jovem, que Guarnieri e Vianinha experimentam um fazer teatral que se aproxima do compromisso de despertar consciências, do empenho em provocar reflexão crítica no espectador e em transformar a sociedade”, escreve Lígia no posfácio - Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Divulgação

Inédito de Guarnieri e Vianinha mostra alvorecer do teatro político

Texto encontrado no Centro de Documentação Teatral da USP antecipa procedimentos dramatúrgicos dos autores

 23/09/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 26/09/2022 as 15:46

Texto: Luiz Prado

Arte: Guilherme Castro

“Na praça do povo, no meio do mundo, a voz que berra: abaixo o fascismo!”

O grito registrado acima, tão 2022, é na verdade a atualíssima abertura de uma peça que permaneceu inédita até hoje e que pertence ao início da carreira de dois nomes fundamentais do teatro brasileiro, Gianfrancesco Guarnieri e Odulvado Vianna Filho, o Vianinha. Trata-se de A Pipa de Diógenes, cujo texto acaba de ser publicado (em versão impressa e e-book) pelas Edições Jabuticaba.

Escrita nos anos 1950 (provavelmente entre 1955-1956), a peça trata da história de um grupo de estudantes universitários que habita uma república apelidada justamente de Pipa de Diógenes, em referência a Diógenes de Sinope, o Cínico, filósofo da Grécia antiga que vivia na mendicância e morava em um barril (ou pipa). A trupe se vê na organização de uma greve estudantil para barrar manobras autoritárias da diretoria da Faculdade de Filosofia Artur Campos, que planeja impedir um docente progressista de prestar concurso para um cargo efetivo.

O enredo dá conta das agitações estudantis que fervilhavam no Brasil dos anos 1950 e reflete as preocupações do Teatro Paulista do Estudante (TPE), que teve Guarnieri e Vianinha na lista de membros fundadores e se preocupava com a criação de uma dramaturgia nacional politicamente orientada.

O documento inédito estava no acervo pessoal de Guarnieri, doado pela família para o Centro de Documentação Teatral (CDT) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, ao lado de cartas, fotos, programas de teatro e itens pessoais. Constando de um manuscrito original, uma versão datilografada com uma série de correções à mão e uma versão digitada, a peça foi encontrada durante os trabalhos de separação, higienização e organização do acervo iniciados por Gabriel Fortunato, estudante do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em meio a tantos documentos raros e inéditos a peça se tornou parte central do trabalho da pesquisadora Lígia Balista, pós-doutora pela FFLCH.

Lígia entrou em contato com o texto durante sua pesquisa de pós-doutorado, centrada no acervo de GuarnieriAo longo de seu trabalho, teve o apoio de duas doutorandas da FFLCH: Jéssica Cristina Jardim, que também atuou nas etapas iniciais de organização, higienização e descrição dos originais, Juliana Caldas, uma das responsáveis por gerenciar o projeto contemplado pelo Programa Rumos Itaú Cultural e que resultou em auxílio para aquisição de materiais de pesquisa e para a publicação do livro.

Lígia Balista - Foto: Arquivo pessoal

A pesquisadora Lígia Balista - Foto: Arquivo pessoal

Três documentos e uma peça

manuscrito original do texto, conforme explica Lígia, era assinado não só por Vianinha e Guarnieri, mas também por Pedro Paulo Uzeda Moreira, que integrara o TPE mas não seguiu carreira no teatro. Várias caligrafias apontam a escrita plural da peça e o próprio Guarnieri citaria essa autoria a seis mãos em uma entrevista dos anos 1980, localizada pela pesquisadora.

partir da segunda versão, datilografada e com muitas notas escritas à mão, a autoria se restringe a Guarnieri e Vianinha. Esse foi o documento base para a publicação do livro. A última versão foi digitada por Mariana Guarnieri, filha de Gianfrancesco, já no início dos anos 1990, como forma de preservar a produção do pai, e é bastante próxima da segunda.

Entre a primeira e a segunda versão, entretanto, são muitas as alterações, como mudanças de cena e personagens, conforme conta Lígia. Um achado interessante, no primeiro manuscrito, é a referência aos atores que interpretariam cada papel, os próprios Guarnieri e Vianinha sendo citados. Apesar de isso sugerir que a peça poderia ter chegado a ganhar ensaios, entrevistas com integrantes do TPE, incluindo Vera Gertrel, primeira esposa de Vianinha, revelaram à pesquisadora que A Pipa de Diógenes realmente nunca saiu do papel.

Vejo que a tentativa de escrever essa peça passou pela vontade de pensar o Brasil e compor uma dramaturgia nacional ligada à juventude”, comenta Lígia. “Era uma proposta do TPE: pensar experiências próximas aos jovens e tentar começar uma dramaturgia brasileira para si mesmos.” Conforme a pesquisadora aponta no ensaio que acompanha a publicação, pautam os diálogos dos personagens divergências sobre ação política, disputas pelas estratégias de divulgação da luta, o uso de espaços institucionais para a política eleitoral, a liberdade de organização, autonomia dos centros estudantis e a relação entre trabalho e estudo na sociedade.

Para Lígia, é possível encontrar no texto temas e soluções dramatúrgicas que apareceriam em trabalhos posteriores tanto de Guarnieri quanto de Vianinha. Do primeiro, a pesquisadora destaca a temática da greve, que também é central em Eles Não Usam Black Tie, deslocada da ação estudantil para o movimento operário. O embate entre o coletivo e o individual é outra semelhança entre as duas obras. O diálogo entre dois estudantes, um em defesa da unidade da greve e o outro argumentando pela necessidade de se formar, lembraria a discussão entre Otávio e Tião, pai e filho, em Eles Não Usam Black Tie.

Já de Vianinha, Lígia evoca Chapetuba Futebol Clube e as soluções de espaço que ambas as peças adotam. Se em A Pipa de Diógenes toda a ação é situada na sala da casa dos estudantes, com a greve e a mobilização coletiva ficando fora de cena, o mesmo se dá em Chapetuba, que gira em torno de conflitos envolvendo o futebol, sem que o próprio apareça.

Política e estética

Além de dramaturgo, Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) foi ator e direitor. Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil e integrou o TPE e o Teatro de Arena, em São Paulo. Além do teatro, teve trajetórias na televisão e no cinema. Um de seus textos mais importantes é Eles Não Usam Black Tiemontado pela primeira vez em 1958.

Nascido em 1936, Vianinha foi ator e dramaturgo, com participações no TPE e no Teatro de Arena. Foi um dos fundadores dos Centros Populares de Cultura (CPCs) nos anos 1960. Também atuou no cinema e na televisão e entre seus principais textos estão Papa Highirte (1968) e Rasga Coração (1974). Morreu em 1974.

No período em que se pode estipular a escrita de A Pipa de Diógenes – entre 1955 e 1956 –, ambos rondavam os 20 anos de idade e eram jovens estudantes com trajetórias de militância política vinculadas à União da Juventude Comunista e ao Partido Comunista. Buscavam reunir atividade artística e luta política, participando dos debates da época.

Para Lígia, os temas abordados no texto ainda mantêm sua atualidade. “A peça discute democracia e organização da luta política e pode nos dizer bastante ainda hoje.” De maneira específica, cita a pesquisadora, a relação entre o mundo universitário, os estudantes secundaristas e a luta política remete às mobilizações estudantis de 2016. “O texto fala das especificidades de uma luta estudantil, o que também está em debate hoje: pensar a autonomia da luta, a divulgação, a relação com os jornais. E há um frescor de juventude na peça que nos interessa.”

A Pipa de Diógenes, de Gianfrancesco Guarnieri e Odulvado Vianna Filho, organização de Lígia Balista e Juliana Caldas. Edições Jabuticaba, 124 páginas, R$ 32,00.


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