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Cada vez mais presente na categoria de motoristas de ônibus por serem vistas como cuidadosas e pacientes, as mulheres que trabalham no transporte coletivo sofrem com desgaste emocional de uma forma bastante particular. A estrutura física dos ônibus e dos terminais, a organização das linhas e a dificuldade em conciliar trabalho doméstico e assalariado são alguns exemplos de picos de tensão. A constatação é de um estudo desenvolvido pela psicóloga Tássia Bertoncini de Almeida, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, com mulheres que trabalham como motoristas de ônibus em quatro linhas de bairros na cidade de São Paulo. O objetivo da pesquisa foi compreender possíveis influências de gênero e suas relações no processo de desgaste mental no trabalho.
Mulheres com idades entre 35 e 50 anos, solteiras e com filhos; não contavam com a figura masculina para ajudá-las; trabalhar era uma condição de subsistência. Esse é o perfil das motoristas de ônibus que trafegam diariamente pelas movimentadas e caóticas avenidas paulistanas e que, mesmo sem ter muito tempo, conseguiram espaço para responder à entrevista da pesquisa.
O estudo possibilitou conhecer os vários papéis que elas representam: a mãe, a mulher, a dona de casa e a motorista de ônibus, sendo este último papel preenchendo requisitos de uma profissional exemplar, com características emocionais valorizadas atualmente pelas empresas de transporte coletivo, pois atendem e reforçam expectativas do que delas é esperado como mulher. Isto é: são calmas ao dirigir e mais pacientes e atenciosas com os passageiros.
Algumas delas, inclusive, fazem questão de destacar aspectos reconhecidos do gênero feminino. Todos os dias, antes de se sentarem à frente do volante, fazem um ritual feminino para começar o trabalho: capa cor de rosa no banco da motorista, cortina nas janelas e adereços que acompanham a ornamentação.
Nas entrevistas concedidas à psicóloga, as condutoras se queixaram dos trajetos longos: alguns chegam a demorar até duas horas e meia na ida e outras duas horas e meia na volta. Falaram também das jornadas imprecisas de trabalho, fato que as prejudica nos cuidados com os filhos. Uma entrevistada se ressentia por não ter conseguido ficar com a guarda da filha no processo de separação, por não ter horários definidos para entrar e sair da empresa.
Segundo a pesquisadora, as questões relacionadas a gênero se tornam um elemento maior de estresse quando associadas aos problemas enfrentados no trabalho do transporte coletivo. A psicóloga lista alguns: jornada extensa; lugar inadequado para almoço (algumas conseguem amizade com comerciantes para poder esquentar suas marmitas), horas extras, trânsito caótico, pressão de tempo para chegar aos pontos, dias chuvosos e passageiros nervosos.
Os depoimentos das mulheres motoristas profissionais apontam para a inexistência de banheiros nos terminais de ônibus. É um problema sério, principalmente nos dias em que se encontram menstruadas e precisam usar o banheiro para higienização e troca de absorventes. Outra condutora disse que aceitou trabalhar por muitos anos em uma função precarizada e sem registro porque a linha por onde passava o ônibus que dirigia tinha o itinerário próximo a sua casa, onde deixava os filhos pequenos aos cuidados de uma vizinha.
A divisão sexual do trabalho e a conciliação entre afazeres domésticos e emprego mostraram-se um desafio para essas mulheres, relata o estudo. “Não que os homens não sofram e nem adoeçam, mas esse processo acontece de maneira diferente para os dois gêneros”, reforça Tássia. A questão do cansaço, por exemplo, é mais relevante para a mulher porque, além do trabalho como motorista de ônibus, em casa ela cumpre uma segunda jornada nas tarefas domésticas, que são tidas como função exclusiva da mulher. Sem falar que os cuidados com os filhos e com a casa também são fontes constantes de preocupação, de estresse e de culpa. Se ela trabalha, não tem tempo para cuidar da casa e dos filhos. Se fica em casa, não tem com quem contar para o sustento da família.
Por fim, as entrevistadas disseram que, depois de um tempo, o trabalho as embruteceu, as deixou mais grosseiras e menos femininas – dentro da compreensão tradicional de feminilidade. Estavam mais nervosas, falavam palavrões, gritavam, estavam mais envelhecidas e sem tempo para se cuidar. Isso as deixava entristecidas.
Tássia acredita não ter liquidado a extensão do assunto, mas procurou compreender de forma mais abrangente como se dá a relação entre saúde, trabalho e gênero, e quais as especificidades dessa relação para as mulheres.
A dissertação de mestrado O desgaste mental de motoristas de ônibus: um recorte de gênero foi apresentada por Tássia Bertoncini de Almeida, sob orientação do professor Fábio de Oliveira, do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP.
Observação: As linhas de ônibus estudadas não foram identificadas para que as funcionárias não fossem prejudicadas em seu trabalho.
Mais informações: e-mail tassiabalmeida@gmail.com, com Tássia Bertoncini de Almeida