Controle às armas nos EUA esbarra em fatores históricos e estruturais

Professores Robert Sean Purdy e Maurício Stegemann Dieter investigam o histórico das armas e analisam as dificuldades para diminuir índices de mortes causadas por armas de fogo no país norte-americano

 14/05/2021 - Publicado há 3 anos
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– Foto: Pixabay

 

Segundo levantamento feito pelo Gun Violence Archive, os Estados Unidos tiveram, até maio de 2021, uma média de três ataques a tiros a cada dois dias. Foram 194 registros até o dia 10 de maio. O presidente Joe Biden classificou os já tradicionais tiroteios em massa como uma verdadeira “crise de saúde pública”. Assim, mais uma vez são retomadas as discussões sobre um controle mais amplo às armas nos Estados Unidos.

No país, o direito ao porte individual de armas é garantido na Constituição norte-americana a partir da Segunda Emenda, que entrou em vigor no ano de 1789. O texto coloca “uma bem regulamentada milícia sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido”.

Após mais de dois séculos, os efeitos aparecem de forma clara. Os Estados Unidos possuem cerca de 330 milhões de habitantes, enquanto que a quantidade de armas de fogo presente em seu território é de quase 400 milhões. Contudo, é pouco mais de um terço das famílias de sua população que de fato possui o porte de armas, de acordo com dados de 2017 do General Social Survey.

 

Cultura armamentista

Perguntado, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo Robert Sean Purdy afirma ser possível dizer que existe em parte da sociedade estadunidense uma cultura armamentista à qual ele atribui questões históricas. “Os Estados Unidos estão em guerra constante desde sua fundação como República, primeiro contra os povos indígenas, depois armas foram usadas para controlar os escravos, depois em intervenções imperialistas ao redor do mundo, etc. Quando você tem uma economia de guerra permanente, tudo isso contribui.”

Robert Sean Purdy – Foto: FFLCH/USP

“Esse debate sobre a independência em relação ao império britânico se transformou em uma resistência dos Estados contra o federalismo. Nesse ponto, o direito de portar armas, muito parecido com o direito de executar a pena de morte, se transforma em um símbolo de afirmação da independência estatal nos Estados Unidos. Não se trata de abrir uma brecha, se trata de um direito constitucional cujo exercício deve ser regulamentado”, complementa o professor Maurício Stegemann Dieter, da Faculdade de Direito da USP, lembrando do caráter federalista dos Estados Unidos e apontando a importância de regulamentar e fiscalizar um direito constitucional como é o de portar armas.

É preciso lembrar, porém, que hoje os Estados Unidos não vivem o seu auge no que se refere à posse de armas. Ainda com base nos dados da General Social Survey, o período de tempo com o maior número de famílias em posse de armas foi entre as décadas de 1960 e começo de 1990, com esse número chegando a quase metade das famílias. Hoje, é possível estabelecer uma recessão maior com alguns picos. Estes, por sua vez, aparecem principalmente em momentos de crise.

 

Sintomas de uma crise

“O debate sobre armas é muito alimentado com a questão de chacinas e massacres públicos, mas há uma distorção, porque a maioria dos homicídios por armas não acontece em escolas, lugares de trabalho etc., e o fato é que nenhuma dessas medidas de controle de armas, por exemplo, é feita onde está acontecendo a maioria dos homicídios por armas”, relata o professor Purdy.

Em outras palavras, apesar de consideráveis, os massacres e tiroteios com vítimas em série, que já apareceram tantas vezes nos jornais, não constituem a maioria dos casos com armas de fogo nos Estados Unidos. Críticos do controle de armas apontam para um estudo de 2016, segundo o qual de 2000 a 2014 o número de mortes em assassinatos em massa nos EUA foi de 1,5 por milhão de pessoas. Na Suíça, o índice foi de 1,7 e na Finlândia, de 3,4. Especialistas enxergam, portanto, que há um componente que prevalece mais nesse cenário: o de suicídios.

“Os Estados Unidos têm um grande problema com excesso de armas de fogo, do qual os mass shootings são talvez a face mais cruel e mais visível. Porém, é consenso na criminologia que o aumento no número de armas por civis só tem uma consequência, que é previsível em qualquer recorte histórico ou contextual: o aumento do número de suicídios. O aumento da letalidade na violência interpessoal depende de outras determinações”, aponta o professor Stegemann.

A estimativa anual de mortes por suicídio cometidas com armas de fogo nos Estados Unidos é de 23 mil pessoas, segundo levantamento do Everytown for Gun Safety Support Fund.

 

Combate difícil

É consenso que a ampla presença de armas nos Estados Unidos passa por uma questão estrutural e até instrumental. O professor Purdy, que leciona História dos Estados Unidos na USP desde 2006, lembra de episódios relevantes: “Historicamente, o controle de armas tem sido usado contra a população negra nos Estados Unidos. Quando os Panteras Negras usaram o seu contexto constitucional de andar com armas nos Estados Unidos, começando no Estado da Califórnia, Ronald Reagan, que era governador na época, instituiu um maior controle de armas, não por causa de violência, mas para minar o argumento dos Panteras Negras”.

As medidas mais recentes de Joe Biden – que devem incluir um controle à montagem autônoma de armas, incentivos a organizações e ao sistema de fiscalização – podem mostrar um caminho promissor, mas esbarram em um cenário em que o consumo às armas já é enraizado em setores sociais relevantes. No Congresso, por exemplo, analistas não enxergam um caminho tão promissor para que as medidas de Biden de fato passem. Por essa razão, o presidente deve usar decretos executivos.

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden – Imagem: Fotos Públicas

 

Para ilustrar o cenário, o professor Purdy explica como se dá a defesa às armas na sociedade americana: “Os defensores de armas nos Estados Unidos são em grande parte brancos, são pessoas que têm ideias conservadoras, ligadas à ascensão do neoliberalismo e ao novo conservadorismo nos Estados Unidos desde os anos 1970, com os governos dos republicanos. E quem é contrário são pessoas ligadas aos movimentos sociais, às comunidades negra e latina, pessoas envolvidas em causas progressistas, sindicatos”.

 

A indústria armamentista

Nos Estados Unidos, a Lei de Proteção ao Comércio Legal de Armas protege a indústria de armas de quase toda responsabilidade civil pelos efeitos que seus produtos possam representar. Efetivada em outubro de 2005, a lei dificulta ações de responsabilidade civil sobre a indústria das armas.

Outro obstáculo aparece dentro do Congresso dos Estados Unidos. Dois terços dos americanos apoiam leis mais restritivas para a obtenção de uma arma de fogo, segundo a pesquisa USA Today/Ipsos. A resistência vem de congressistas republicanos que se opõem veementemente a limitar “o direito de portar armas”.

O professor Purdy enxerga grande influência da National Rifle Association (NRA, Associação Nacional do Rifle, em português), organização fundada em 1871, cuja influência na política americana é grande no lobby pelas armas.

“Ninguém (entre republicanos e democratas) está questionando os fundamentos das raízes de violência nos Estados Unidos. Isso tem muito a ver com fatores como as Forças Armadas, o imperialismo, racismo, etc., então me parece que somente o movimento social, de cidadãos comuns, que fazem demandas, que vai reduzir o número de armas, o poder da NRA, o poder da indústria armamentista, a violência de armas, além de coisas gerais como a própria reificação de violência na cultura norte-americana”, aponta o professor.

 

Armas no Brasil

A alguns milhares de quilômetros encontra-se o Brasil. O atual presidente Jair Bolsonaro já demonstrou de forma recorrente suas intenções de armar a população. Muitas vezes, a justificativa é de protegê-la de um possível golpe antidemocrático. Em um contexto de pandemia, ele já mencionou que armas poderiam fazer frente ao poder de políticos no âmbito estadual.

Nos Estados Unidos, é comum que grupos armados usem como motivação a ideia de autodefesa contra um governo superpoderoso. Segundo a Liga AntiDifamação (ADL), 42% dos 150 ataques terroristas provocados pela extrema-direita nos EUA, entre 1993 e 2017, foram cometidos por ativistas antigoverno, incluindo membros do Movimento das Milícias.

O professor Purdy vai além e atribui outros paralelos possíveis: “Eu acho que muitas das mesmas coisas estão em jogo aqui. Questões do policiamento ostensivo contra populações pobres e negras aqui no Brasil, machismo, feminicídio. Dar mais armas à população é armar as milícias no Brasil. Já temos visto recentemente, com pessoas como Roberto Jefferson (presidente do Partido Trabalhista Brasileiro), por exemplo, com fuzil, falando sobre a necessidade de armas para se proteger, etc. Então, seria um desastre. Eu vejo muitas das mesmas questões envolvidas nos Estados Unidos e no Brasil”.


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