“A democratização do acesso à informação abriu caminho para a manipulação e o engodo”

A quinta reportagem do especial do Jornal da USP reflete sobre os malefícios das fake news sobre a política brasileira e mundial

 06/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 21/11/2023 as 13:33

Texto: Luiz Roberto Serrano*

Arte: Jornal da USP

Ilustração: Paula Villar

Ilustração: Paula Villar

“O problema com a mentira e o engodo é que só são eficientes se o mentiroso e o impostor têm uma clara ideia da verdade que estão tentando esconder.”

A filósofa Hannah Arendt em 1958 - Foto: Acervo Barbara Niggl Radloff/Münchner Stadtmuseum/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0

A citação de Hanna Arendt está na abertura do artigo Fake News e liberdade de expressão, de José Eduardo Campos, professor da Faculdade de Direito da USP, publicado no Jornal da USP.

Diz Campos, no artigo: “Há mais de 20 anos, a chegada da era digital e das plataformas de comunicação foi recebida como uma grande oportunidade para aprofundar a democracia na transição do século 20 para o século 21. A ideia era que, quanto mais os cidadãos recebessem informações e tivessem capacidade de ouvir, menos vozes marginalizadas ou ignoradas haveria. Em pouco tempo, porém, ficou claro que a democratização do acesso à informação abriu caminho para o paradoxo da desinformação, para a manipulação e para o engodo, tanto em decorrência dos abusos cometidos em nome da liberdade de expressão quanto pela própria natureza dos novos espaços públicos”.

Um pouco de passado…

Nos idos de 1984, lá se vão quase 40 anos, na Campanha das Diretas, prestei assessoria de comunicação para o presidente do PMDB, deputado Ulysses Guimarães. Certa tarde, durante a campanha, na sala de sua casa, na Rua Campo Belo, em São Paulo, ele discorria sobre a necessidade do uso da televisão nas campanhas políticas e dos políticos. “Hoje em dia, é uma ferramenta indispensável para a política”, dizia. A TV acrescentava ao rádio a riqueza da imagem que ajuda a promover os políticos bem apessoados e bem falantes que, aos poucos, foram dominando o meio. Mas demoraram a aprender como utilizá-la.

Lembro-me de uma das primeiras entrevistas do então candidato a governador de São Paulo, em 1982, Franco Montoro, em um programa jornalístico de TV. Falava alto e gesticulava com vigor como se estivesse discursando em um palanque, completamente sem sintonia com as  técnicas que deveriam ser aplicadas numa entrevista de TV.

Eram tempos em que os programas de propaganda eleitoral no rádio e na TV ganhavam uma dimensão mais importante, abrindo espaço no mau humor da ditadura militar contra as atividades das oposições.

Esse mau humor atingiu seu auge nas eleições de 1974, quando o MDB, o partido da oposição, ganhou as eleições em todo o Brasil, a bordo de programas eleitorais no rádio e na TV nos quais predominaram críticas livres ao status quo mantido pela ditadura. Eram eleições ainda só para eleger parlamentares para o Congresso, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Mas a partir de então as regras endureceram e os programas eleitorais se resumiram à apresentação de um currículo mínimo de cada candidato.

O objetivo, claro, foi restringir o espaço do discurso da então oposição parlamentar ao governo ditatorial e diminuir os debates nos momentos eleitorais. Ajudou a dar sobrevida ao governo militar até 1985.

Franco Montoro, ex-governador de São Paulo - Foto: Arquivo da Agência Brasil/Wikimedia Commons/CC BY 3.0 br

Ulysses Guimarães, ex-presidente da Constituinte e do PMDB - Foto: Arquivo da Agência Brasil/Wikimedia Commons/CC BY 3.0 br

Um novo modo de debater a política

São lembranças que têm um certo ar de “tempo das cavernas” quando consideramos o que acontece na comunicação política e eleitoral dos dias de hoje – em que, além do rádio e da TV livres e soltas, as mídias sociais universalizam e pulverizam o debate político e eleitoral, multiplicando seus participantes. Estes são quaisquer pessoas que saibam manipular seus gadgets eletrônicos, para o bem e para o mal, com preponderância deste. Uma onda que atropela os debates, as discussões e noticiários promovidos pelos formadores de opinião tradicionais por intermédio das mídias clássicas, jornais, rádios e TVs, no dia a dia da política e nos momentos eleitorais. E criam um novo modo de debater a política, e abrindo espaço aos políticos, seus assessores e seguidores que não respeitam regras, nem limites – com as consequências sumarizadas, acima, por José Eduardo Campos.

Os exemplos dos EUA 

Quem as usou de uma forma que chamou a atenção e revolucionou as campanhas eleitorais foi a primeira campanha para a eleição de Barack Obama à presidência da República dos EUA, em 2009. Milhares de jovens norte-americanos se engajaram na campanha virtual, propagando a qualidade e as vantagens de seu candidato e arrecadando principalmente doações modestas que, somadas, engordaram significativamente os cofres da campanha.

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Barack Obama (esquerda) engajou jovens numa campanha eleitoral construtiva. Donald Trump usou as redes sociais para plantar fake news, entre outras coisas – Fotos: Pete Souza/Wikimedia Commons/Domínio Público e Gage Skidmore/Wikimedia Commons/CC BY-SA 2.0

Outras campanhas nos EUA já tinham utilizado as mídias sociais, mas não na amplitude que Barack Obama o fez e, considerando o perfil do candidato do Partido Democrata e suas propostas, ela pode ser considerada uma campanha propositiva prenhe de propostas. Seu sucesso foi tão grande que a utilização das mídias sociais em campanhas eleitorais disparou all over the world. Mas nem sempre para campanhas do mesmo quilate. Nos próprios EUA, Donald Trump lançou mão da mesma tecnologia para derrotar Hillary Clinton. Mas o conteúdo… foi controverso, para se dizer o mínimo. E se estendeu por todo o seu governo.

Tainá Felippe de Moraes e Fábio Rodrigo Ferreira Nobre, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba, escreveram sobre as ações trumpistas:  “[…] foi possível inferir o uso amplo, consciente, e estratégico, por Trump e sua equipe de governo, das mídias sociais, como instrumento de disseminação de  informações  de  teor  político,  falsas  e/ou  alienantes,  interferindo  na  capacidade  de  formulação  de preferências políticas de forma livre […]”. 

Suas conclusões: “O  uso  antidemocrático  das  mídias  sociais  para  mobilizar  sua  base eleitoral  durante  o  governo  culminou,  em  2021,  na  invasão  do  Capitólio,  centro  legislativo  do  país, motivada pelo próprio então presidente, o que representou uma histórica não aceitação da alternância de poderes e ataque à democracia estadunidense”. O modelo, infelizmente, fez sucesso mundo afora.

Vejamos um componente desse modelo, relatado por Natália Leal, CEO da Agência Lupa, aqui do Brasil. Na cidade de Veles, na longínquia Macedônia, dezenas de jovens criaram uma fábrica de fake news e conteúdo sensacionalista para ganhar dinheiro com a monetização de tráfego e anúncios nas redes sociais. Muitas das fake news contra Hillary Clinton, que ajudaram a eleger Donald Trump presidente dos EUA em 2016, por exemplo, vieram de lá, da Macedônia.

“Os meninos não tinham nenhum interesse político na vitória de Trump, apenas perceberam que havia um nicho para ganhar dinheiro com isso, divulgando fake news sobre Hillary Clinton. Se deram conta que qualquer coisa que eles dissessem sobre o Trump gerava muito engajamento, então começaram a criar um monte de coisas extremamente fantasiosas, e isso teve uma baita repercussão. Ganharam muito dinheiro fazendo isso.”

Natália Leal - Foto: Arquivo pessoal/Instagram
Natália Leal - Foto: Arquivo pessoal/Instagram

“O impacto das fake news na confiança política tem consequências importantes na democracia”, dizia o relatório Misinformation in action: Fake News exposure is linked to lower trust in media, higer trustin government when your side is in power, do Information Review, de junho de 2020, da Harvard Kennedy Review. E continua: “Grupos minoritários politicamente motivados e internautas estrangeiros são apontados como distribuidores de desinformações copiando o formato jornalístico especialmente com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas” (Wardle & Derakhshan, 2017). “Produtores de fake news financiados postam conteúdos sensacionalistas frequentemente objetivando gerar mais visualizações apelando para crenças pessoais, provocando reações emocionais e reforçando seus argumentos políticos.  Uma cobertura não civilizada e escandalosa pode dirigir e chamar a atenção do público ao mesmo tempo que rebaixa a confiança política desse público” (Bowler @ Karp, 2004; Must & Reeves, 2005).

 A internet transformou o comportamento na política, do ato de votar, de fazer campanhas para mudanças, nos protestos e até mesmo revoluções. É um desafio para os Estados, que enfrentam movimentos mais turbulentos, imprevisíveis e sociedades mais difíceis de governar”, reflete, por sua vez,  o Oxford Internet Institute , da britânica Universidade de Oxford, na sua página Digital Politics and Government.

Plebiscitos na Grã-Bretanha: sem e com mídias sociais

Manifestações contra o Brexit no dia 23 de março de 2019 no centro de Londres. Apesar de vitorioso, o Brexit na Grã Bretanha levou muitas pessoas às ruas – Foto: TeaMeister/Flickr/CC BY 2.0

Vamos lembrar qual foi o peso das mídias sociais nas duas tentativas que o governo da Grã-Bretanha fez para sair da Comunidade Econômica Europeia, uma primeira nos anos 1970, quando o bloco ainda se chamava Mercado Comum Europeu, outra, mais recente, em 2016, sob a gestão do primeiro ministro David Cameron, que era a favor da permanência na União Europeia.

As duas votações ocorreram em épocas bem diferentes, envolvendo problemas distintos e temas controversos. Uma diferença notável foi que, no primeiro plebiscito, imperava a mídia tradicional, jornais, rádios e TV que se posicionaram, majoritariamente, a favor da permanência no Mercado Comum Europeu. O resultado foi 67,2% a favor da permanência do Reino Unido na CEE, apesar de toda a pregação contrária dos seus adversários.

No segundo referendo, amplamente conhecido por Brexit, em 2016, com as mídias sociais e suas distorções centralizando em larga escala os debates sobre a permanência ou não, o veredito mudou. De nada valeram os discursos apontando que o crescimento econômico seria prejudicado, o desemprego aumentaria, o valor da libra cairia e as empresas britânicas ficariam em uma espécie de terra de ninguém fora do bloco. O voto pela saída venceu: 51,9% a 48,1%. (leia “Brexit: a ilusão de uma volta aos tempos do império”, de minha autoria, no Jornal da USP).  A volta à Comunidade Econômica Europeia, diante dos problemas enfrentados após a saída, já está em discussão atualmente no Reino Unido, mas encontrará sérias resistências por parte dos países da hoje Comunidade Econômica Europeia.

O pioneirismo da Primavera Árabe

As redes sociais alimentaram as ruas na Primavera Árabe, mostrando a força do novo meio de comunicação. Protestos na Praça Taksim em 4 de junho de 2013 – Foto: VikiPicture/Wikimedia Commons/CC BY-SA 3.0

A importância das redes sociais na política, mais do que isso, como catalisadoras da ação política das massas, já havia sido demonstrada no movimento conhecido como Primavera Árabe nos anos 2010: “Redes sociais foram o combustível para as revoluções no mundo árabe”, dizia artigo, publicado no site Opera Mundi:  A propagação do movimento conhecido como Primavera Árabe […] para toda a região do Norte da África e do Oriente Médio não teria sido possível sem os recursos e dispositivos proporcionados pelas redes sociais. A conclusão foi tirada de um relatório divulgado pela Dubai School of Government, que indica a importância de serviços como Twitter e Facebook na disseminação e fortalecimento das manifestações populares que, em última instância, se espalharam pelo mundo”.

Por sua vez, artigo do Caderno de Relações Internacionais, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, reforçou: A hipótese central é de que as redes sociais serviram como meio de potencialização da ação dos movimentos políticos, organizados pela sociedade civil, nas manifestações ocorridas na Primavera Árabe. O curso de ação dos manifestantes foi diferente em cada Estado (Tunísia, Egito), mas a coincidência de eventos (Primavera Árabe) e a articulação dos movimentos se deram através das redes sociais.

A direita brasileira x a democracia

Em recente seminário promovido por O Globo e a Fundação Fernando Henrique Cardoso, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, disse que a extrema direita mundial diagnosticou a possibilidade de uso das redes sociais a favor de suas teses e ideias a partir, justamente, dos atos da Primavera Árabe.

“E não foi uma questão brasileira só. Tivemos, no mundo todo, uma captura pela extrema direita das redes sociais com uma clara finalidade: o ataque à democracia, a quebra das regras democráticas”. Para o ministro, uma das estratégias utilizadas para tentar fragilizar a democracia foi a de desacreditar a imprensa, o secular meio de comunicação que historicamente informa, e mesmo formou, as sociedades, especialmente suas elites dirigentes. “A extrema direita domina as redes. É impressionante a incapacidade do restante da sociedade em pelo menos equilibrar”.

Os repórteres Arthur Ribeiro, Gabriel Soares e Ravena, da Agência de Notícias CEUB, da Universidade de Brasília, sumarizaram a influência das redes sociais na política brasileira na reportagem Movimento de junho de 2013 uma década depois: a ascensão das redes sociais na participação popular. Escreveram em  sua reportagem:

“Na linha do tempo, três momentos se destacam e apresentam as redes como protagonistas para a construção do atual momento político do Brasil.

Em 2013, as Jornadas de Junho – nome como foram chamados os atos de rua que ocorreram por todo o país em junho daquele ano – aproveitaram as plataformas para se organizar, marcando dias, horários e locais para os manifestantes se encontrarem.

Cinco anos depois, um então deputado que concorria à presidência revolucionou a forma de se fazer propaganda política. Com apenas 8 segundos de horário eleitoral na TV, Jair Bolsonaro apostou nas redes sociais para fazer campanha e foi eleito presidente da República em 2018 com 57,8 milhões de votos, em uma disputa contra Fernando Haddad (PT) […]

Mais cinco anos se passaram e, atualmente, em 2023, as redes sociais passam por um momento de avaliação dentro do Congresso Nacional. O PL 2.630/2020, também conhecido como PL das Fake News, analisa a regulação destas plataformas digitais e busca implementar medidas e responsabilidades às grandes empresas para combater as fake news e discursos de ódio. […]

De ferramenta para protestos efetivos até massa de manobra para eleger presidentes, as redes sociais se tornaram um meio de participação popular na política, mas também se desenvolveram como um canal de disseminação de notícias falsas e propagação de ódio. Dez anos depois de serem importantes nas manifestações de 2013, o brasileiro ainda vê os reflexos do uso das redes sociais dentro do cenário político do país”.

Positivo x negativo

“As redes sociais proporcionam um enorme empoderamento para as pessoas, nunca elas tiveram tantas informações, o que é positivo”, ressalta o sociólogo José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo. Mas também têm o lado negativo, com o potencial de destruir a democracia. “A manipulação das informações atinge um público que não tem visão crítica, não sabe o que é democracia, não tem cultura política.”

José Álvaro Moisés - Foto: Marcos Santos / USP Imagens
José Álvaro Moisés - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Para ele, há dois caminhos para combater esse segundo e maléfico efeito. Um seria por intermédio do sistema educacional em seu conjunto, explicando aos alunos o que são os direitos individuais e sociais. “A experiência das pessoas é muito baixa nesse campo, não o compreendem e absorvem qualquer imagem que lhes é repassada, como visões sobre o perigo do comunismo, distorções sobre como o governo funciona.” Segundo ele, essa experiência educativa faz parte do currículo de alguns países europeus e de estados norte-americanos. Seria uma tarefa, também, para os partidos democráticos e de esquerda.

Mas Moisés alerta que não seria suficiente: considera necessária também a regulação das redes, o controle sobre seus efeitos negativos. Lembra que as empresas de internet reagem, como se se tratasse de uma restrição ao direito à livre manifestação, quando se trata de uma manipulação que, na verdade, o extrapola.

“A extrema direita aprendeu a trabalhar com competência o uso das redes e os partidos democráticos vieram atrás”, diz Moisés. Quanto à questão da regulamentação, na sua visão, “a Europa, onde se valoriza a democracia, deu alguns passos nessa direção, mas no Brasil há um atraso”.

Ao largo dos canais tradicionais

Atraso, por que como diz a professora Marta Arretche, Professora Titular do Depto. de Ciência Política da USP/Professor, Pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole, na entrevista que segue, as mídias sociais impactaram muito o sistema politico brasileiro:

Arretche: – “Na verdade, isto não ocorreu apenas no Brasil. No mundo todo, movimentos organizados, em particular a extrema-direita, têm feito uso das mídias sociais para alcançar os eleitores e ampliar seu suporte político e eleitoral. Esta forma de comunicação disputa o espaço (antes) ocupado pela mídia tradicional. Se no modelo anterior, candidatos bem sucedidos eram aqueles que tinham acesso e capacidade de comunicação através da TV, jornais e rádio, agora, candidatos com capacidade de mobilizar as novas mídias sociais tornaram-se altamente competitivos, pois conseguem passar sua mensagem ao largo destes canais tradicionais. Uma das consequências importantes deste “novo caminho” é que indivíduos com capacidade de comunicação, mas com frequência muito pouco treinamento ou formação política, tornam-se fenômenos eleitorais. O controle que a mídia e os partidos exerciam no acesso a cargos eleitoralmente competitivos foi consideravelmente reduzido”. 

Marta Arretche - Foto: Arquivo pessoal

Quer dizer que elas contribuíram para trazer para dentro do jogo político atores que não tinham espaço antes de sua existência?

Arretche: “Sim. Exatamente. Na verdade, os eleitores (e isto ocorre no mundo todo) cultivam um certo desprezo pelos políticos profissionais, como se eles fossem parasitas da sociedade (vivendo às nossas custas) e propensos a fazer acordos políticos (cuja legitimidade desperta grande suspeita). O desejo dos eleitores de substituir estes profissionais é bastante generalizado. Os novos entrantes podem se apresentar como outsiders, utilizando recursos de baixo custo e baixo investimento das mídias sociais. Mas, ao lado disto, também há evidências de que o uso das mídias sociais na política é uma atividade altamente profissionalizada (em termos de formatação de conteúdos) da extrema-direita organizada no mundo”.  

As manifestações de 2013 são exemplo de uma etapa inicial de utilização maior desses recursos na política brasileira?

Arretche: “Certamente, as manifestações de 2013 utilizaram os recursos das mídias sociais como estratégia de mobilização. Mas, suspeito que a origem do fenômeno no Brasil esteja em outro lugar, qual seja, na universalização do uso do celular. As exclusões digitais estão concentradas na população mais idosa e nas regiões rurais do Norte e Nordeste. Os brasileiros, de modo geral, fazem uso muito intensivo do celular. Isto quer dizer que quem aprender a se comunicar com a população tendo o celular como ferramenta terá maiores chances de passar sua mensagem ao eleitor e estará em vantagem comparativa em relação aos movimentos e partidos que não tiverem esta capacidade”.  

No mundo todo, a extrema direita desenvolveu técnicas bastante efetivas para alcançar os eleitores"

Por que a direita saiu na frente na utilização das mídias sociais, principalmente no Brasil?

Arretche: “Este fenômeno não é exclusivo do Brasil. No mundo todo, a extrema-direita desenvolveu técnicas bastante efetivas de alcançar os eleitores. São extremamente profissionalizados na produção de conteúdos que mobilizam sentimentos (às vezes, não necessariamente racionais), tais como o medo, por exemplo. Os estudos mostram que a extrema direita no mundo mobiliza técnicas de comunicação muito sofisticadas. Isto é, são empregados deliberadamente métodos que atingem áreas do cérebro que mobilizam afetos intensos, sem que o receptor tenha sequer consciência disto. No Brasil, a direita também tem sido bastante bem-sucedida no emprego de técnicas de comunicação que fazem uso das mídias sociais. O emprego destes métodos permitiu à extrema-direita crescer em número de apoiadores, redes organizacionais, espalhadas no território, prescindindo da organização física de apoios, tais como diretórios locais de partidos ou sedes de organizações. As mídias sociais permitem a mobilização virtual da política”. 

Os demais espectros políticos – centro e esquerda –  já atuam com eficiência nas mídias sociais?

Arretche:” No Brasil, a esquerda melhorou sua capacidade de comunicação via mídias sociais mais recentemente. A campanha de Lula em 2022 foi mais eficiente do que a campanha de Haddad em 2018, por exemplo. Mas, a esquerda ainda é muito analógica, digamos assim. Em contrapartida, tenho muita dificuldade de identificar quem são as forças de centro no Brasil para poder avaliar sua capacidade de comunicação. 

O jogo político está condenado a essa “universalização” do grau de participação da sociedade? Essa participação maior favorece mais algum setor político? 

Arretche: “A disputa política tende a envolver o maior número possível de atores. Seja a eleição propriamente dita, seja a mobilização em torno de ideias e propostas deve buscar sistematicamente o eleitor para poder crescer. A universalização da participação é um efeito benéfico da disputa política. Por outro lado, há cidadãos que não podem ou não querem participar. Estes devem ter o direito de não participar, se assim o quiserem.   

As redes sociais, em princípio são democráticas e estimulam e facilitam as comunicações dentro da sociedade, mas as fake news não poderiam influir prejudicialmente sobre o caminho dessa mesma democracia no país?

Arretche: “Eu creio que o elemento mais nocivo do emprego de novas mídias sociais na política é a divulgação de fake news. Matérias sem nenhuma checagem (ou punibilidade) são veiculadas pelas mídias sociais. A depender de seu conteúdo, podem produzir enorme impacto. Se causa um estrago, este está causado e sua não-confirmação não recupera o estrago de imagem já feito. São inúmeros casos de histórias totalmente inventadas que não passam pelo filtro de ninguém. Mas que ganham vida uma vez que sejam divulgadas.”

Um sistema sofisticado

Há uma grande sofisticação na análise dos dados para  espalhamento das fake News. Magaly Prado, autora de Fake News e Inteligência Artificial: O poder dos algoritmos na guerra da desinformação (Almedina Brasil, 2022, 424 p.), livro no qual busca responder o como  por trás da disseminação de fake news por algoritmos, ressalta: “A indústria das fake news é disseminada principalmente no digital, onde ela cresce, se expande e ganha escala. Há uma velocidade muito rápida e a ajuda de bots (mecanismos de inteligência artificial) de disseminação em massa”. Magaly reforça que a estrutura lógica é similar à da propaganda. Esse método direciona a mensagem falsa, que ambiciona modular o comportamento de seu alvo por meio de manipular seus pensamentos. As mensagens falsas são direcionadas tanto para grupos, como micro direcionadas. Se é certo que determinado usuário vai votar em um candidato X, não receberá o direcionamento. A superindústria da desinformação produz e envia o material manipulado para aquele que está indeciso, ou chateado, irritado, que não entende de política ou que é ignorante sobre certos assuntos, e ainda, as pessoas mais mazeladas da sociedade. 

Magaly Prado - Foto: Arquivo Pessoal

Tentativas de combate à desinformação

Os tribunais eleitorais e instituições diversas tentaram informar os eleitores sobre as fake news às vésperas da realização das últimas eleições. À esquerda um material produzido pelo Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, “Se é fake não é news”, com orientações para o eleitor. À direita, material sobre “Como funciona a fábrica de fake news” produzido pela NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

“A ação da esquerda é muito fundada na política de bairros…”

Na configuração tomada pelas mídias sociais na área política é justo dizer que a desinformação está mais ligada à direita do que à esquerda? Mais uma vez, Natália Leal, da Agência Lupa, responde:

“É justo, porque a cultura de comunicação dos movimentos neofascistas e de ultra-direita é fundada numa comunicação via internet, em fóruns de discussão online enquanto a esquerda ainda tem uma ação muito fundada na política de bairro, carreatas, comícios, etc, que depende de uma interação física entre pessoas.  A internet propiciou que pessoas com ideias totalitárias ou discriminatórias, preconceituosas, encontrassem outras com essas mesmas ideias e que esse grupos se fechassem em si e se tornassem muito fortes.”

“A esquerda ainda acha que pode conquistar eleitores a partir de um acampamento do MST, ou de um grupo pastoral numa igreja. Isso também é importante, mas não é mais como se faz política hoje em dia. Acho que a esquerda foi atrasada em perceber isso”

O atual sistema é complexo. Pressupõe a existência de fazendas de bots, (programas de computador criados para rodar pela internet, realizando tarefas repetitivas e automatizadas), assim como fazendas de usuários reais, que são cooptados para passar essa informação adiante para grupos específicos, e que ganham dinheiro com isso diz Natália Leal. … É uma indústria, não se  pode negar que é, que a continua partindo do mesmo lugar: uma distorção de narrativa ou de uma propagação de informação comprovadamente falsa, visando à perpetuação ou a aquisição de poder, seja ele real ou simbólico.”

Daniela Osvald Ramos. Jornalista, professora da ECA USP, participante do Grupo COM recua na história ao analisar as fake News:  “Hitler também usou o rádio e o cinema. Ele sabia o feedback que isso representava para estratégias do nazismo. Controlava o que estava funcionando e o que não estava funcionando; só que não imediatamente! O feedback não era imediato! A diferença agora, com as mídias digitais é que o retorno é imediato, o feedback é instantâneo. Isso acelera muito mais o processo que sequestra, literal e metaforicamente, a mente das pessoas e,  principalmente, as emoções das pessoas. É uma estratégia que funciona muito bem.”

Daniela Osvald - Foto: Lattes

Recente reportagem da agência de jornalismo investigativo Pública, publicada no dia 8 de agosto passado, informa que a cada cinco propagadores de notícias falsas, um pertence à classe política. O dado é de um levantamento do UOL a partir de decisões de tribunais superiores e da CPI da COVID. 

Antonio Guterres - Foto: UN Photo/Mark Garten/Flickr/CC BY-NC-ND 2.0

Nestes tempos turbulentos, é sempre útil recordar as palavras de Antonio Guterres, secretário geral da Organização das Nações Unidas – ONU, relembrando o lado bom e o ruim da Internet “A pandemia da Covid 19 destacou o poder da Internet na vida social. A tecnologia digital salvou vidas propiciando a milhões de pessoas trabalhar, estudar e socializar de maneira segura online. Mas a pandemia também magnificou a divisão digital e o lado escuro da tecnologia: o aumento da velocidade da desinformação; a manipulação do comportamento das pessoas e mais. Nós só podemos enfrentar esses desafios unidos, sob estreita cooperação, estabelecendo regras claras para salvaguardar os direitos humanos e as liberdades fundamentais; recuperando o controle sobre os nossos dados, enfrentando a desinformação e o discurso de ódio”

O Congresso tenta debater as fake news

O Congresso brasileiro tenta enfrentar o problema, disciplinando, de algum modo, a Internet, para evitar seus excessos, seu dark side, por onde correm a desinformação e os abusos – uma tarefa de Sísifo, no momento. Neste segundo semestre, deve voltar ao  plenário da Câmara dos Deputados a “PL das Fake News”, depois de uma primeira tentativa fracassada nos primeiros meses deste ano.

O deputado Orlando Silva (PCdoB) ao fundo, à direita, é o relator da PL das Fake News – Foto Lula Marques/Agência Brasil

Alguns de seus principais pontos:

  •    estabelece regras para remoção de determinados tipos de conteúdo de teor discriminatório, criminoso ou que atente    contra a democracia;  
  •   exige parâmetros mais transparentes para a moderação de conteúdo nas redes sociais;
  •   exige que as empresas responsáveis pelas plataformas, as chamadas big techs, tenham representação legal no Brasil.

Durante as recentes discussões, as plataformas pressionaram a Câmara dos Deputados publicando textos editoriais, o que não é da natureza de suas atividades, em defesa da sua total liberdade de atuação, até mesmo insinuando que qualquer legislação disciplinar quanto aos conteúdos por elas divulgados teriam ares de censura, como se fossem um espaço público especial e diferenciado.

As mídias sociais, sem dúvida,  multiplicaram os espaços para os cidadãos participarem da vida pública diretamente, o que, em princípio é um ganho, como reconhecem inúmeros especialistas.

Mas elas terem se tornado espaço para manifestações de qualquer quilate, especialmente ofensivas ou falsas – as chamadas fake news – lhes abriu portas absolutamente incontroláveis e de alto poder destrutivo.

Distribuirem essas informações distorcidas acima das fronteiras nacionais e resistirem a respeitá-las é um espanto.

Alegarem que não são empresas de comunicação, mas de tecnologia, estando isentas dos limites jurídicos que as primeiras respeitam, é um subterfúgio.

A União Europeia colocará em vigor, brevemente, sua nova regulação da Internet, recentemente aprovada, que serve de inspiração para a legislação a ser adotada no Brasil quando o PL das Fake News for finalmente debatida no país.

Conteúdo adicional

Na reportagem “As mídias sociais como arma de governo”, de 24/09/2021, Denis Pacheco analisa o uso das fake News na época do governo Jair Bolsonaro.

Um debate na Harvard Kennedy School Institute of Politics analisa “How Internet changes politics: from memes to insurrection” – Como a internet mudou a política: dos memes à insurreição

Já não é sem tempo…Se vai resolver, a ver, mas poderá ser, pelo menos, um avanço. 

*Com colaboração de Herton Escobar

Desconstruindo a Desinformação: Esta é a quinta parte de uma série de oito reportagens produzidas pelo Jornal da USP sobre o tema da desinformação. As matérias serão publicadas a cada duas semanas, no período de 14 de julho a 20 de outubro, abordando diferentes aspectos do problema. Acesse as reportagens anteriores pelo menu abaixo.

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