Trabalho de campo pode não ser solitário? O relato de uma pesquisa no Alto Rio Negro

Por Danielle Ichikura, mestranda na Faculdade de Saúde Pública da USP

 11/10/2024 - Publicado há 2 meses
Danielle Ichikura – Foto: Arquivo pessoal
Durante três meses, de julho a outubro de 2024, três pesquisadoras estudantes da Faculdade de Saúde Pública da USP e uma pesquisadora associada permanecerão em trabalho de campo na mesma cidade: São Gabriel da Cachoeira (AM). Essa ida a campo para realização de trabalhos de cunho etnográfico faz parte do projeto Cosmopolíticas do Cuidado no fim-do-mundo: gênero, fronteiras e agenciamentos pluriepistemológicos com a saúde pública, sob orientação e coordenação do professor José Miguel Nieto Olivar. O projeto visa desenvolver um conhecimento pluriepistêmico, multissituado e colaborativo através da intersecção entre a antropologia, a saúde pública e as artes. As pesquisadoras e pesquisadores participantes procuram compreender, conectar e potencializar o conhecimento com atenção especial ao gênero e à sexualidade nas perspectivas interseccionais e descoloniais, bem como os potenciais impactos sobre a saúde coletiva/pública no fim do mundo.

Por meio de suas seis “parcelas”, o projeto se envereda por caminhos mais específicos de produção de conhecimento a partir de perspectivas plurais. No caso, três das pesquisadoras que estão em campo – Elizângela da Silva Costa, Dulce Morais e a autora deste texto – compõem com outras parceiras de pesquisa a parcela 1. chamada “Com e para além da violência: mulheres indígenas, conhecimento e luta desde o Rio Negro”. Julia Camanho, que também acompanha o grupo nessa ida a campo, é pesquisadora da parcela 4: “Quinhapira, calabresa e caxiri: alimentação, meio ambiente e as mulheres do fim-do-mundo”.

São Gabriel da Cachoeira está localizada na região conhecida como Alto Rio Negro, no noroeste amazônico, e faz fronteiras no seu contorno com Colômbia e Venezuela. Os dados do censo de 2022 demonstraram que a população do município é de 51.795 habitantes, dos quais 48.256 se autodeclararam indígenas (93,17%). O censo anterior indicou que a cidade tinha a maior concentração de indígenas em um mesmo município do País, conferindo à São Gabriel o título de Capital Estadual dos Povos Indígenas, por meio da lei de número 5.796, de 12 de janeiro de 2022.

Sobre as pesquisas e as pesquisadoras

Elizângela da Silva Costa, mulher e liderança indígena da etnia Baré, é artesã, agricultora, mãe, professora e atualmente realiza o doutorado direto na Faculdade de Saúde Pública da USP, com bolsa Fapesp (Processo: 2024/03932-6). Ela articula diversos encontros com mulheres indígenas no percurso de realização de sua pesquisa: “Cestos de conhecimentos para o cuidado e a saúde: as mulheres rionegrinas como filhas de Amaro”. O seu objetivo é impulsionar os conhecimentos sobre o saber feminino através das narrativas da criação da humanidade, tendo como ponto de partida o modo como as mulheres rionegrinas da etnia Baré contam suas vivências com um olhar feminino e indígena.

Meu trabalho de campo já se iniciou nas comunidades Ilha de Aparecida e Inambu [Alto Rio Negro], minhas atividades se voltam para as plantas medicinais, quintais que curam, as mãos que curam, margem do rio que cura […] ouvindo os relatos das mulheres, aprendendo e descrevendo um pouco dos cuidados, do resguardo que as mulheres que estão próximas ao lago de Amaro desenvolvem para promoção da saúde dentro das comunidades indígenas e do seu território. (Elizângela da Silva Costa)

Júlia Souza Pinto Camanho é formada em Nutrição pela Faculdade de Saúde Pública da USP e gastróloga, e realiza atualmente doutorado direto vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da USP com bolsa Fapesp (Processo: 2023/00300-6). O seu projeto intitulado O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro: compreensões histórico-antropológicas sobre as formas indígenas de entender e lidar com catástrofes sindêmicas no fim-do-mundo versa sobre o contexto alimentar indígena e seus múltiplos atravessamentos, especificamente em São Gabriel da Cachoeira. O seu objetivo é entender como a alimentação, enquanto um problema político, é discutida e enunciada desde as perspectivas particulares de mulheres indígenas agricultoras de São Gabriel, levando em consideração a história recente do município, os contextos críticos socioambientais e as criações e disputas do movimento indígena.

Estive em São Gabriel da Cachoeira pela primeira vez há pouco mais de um ano, em julho de 2023. À época, pude conhecer uma família da etnia Tuyuka cujas origens remontam ao século 20 na região da comunidade Igarapé Onça, situada no alto rio Tiquié a pouco menos de 25 quilômetros da fronteira entre Brasil e Colômbia. Hoje, a família Tuyuka reside na área urbana de São Gabriel e parte de seus integrantes se dedicam à agricultura, especialmente as mulheres. Foi convivendo com elas e acompanhando seus trabalhos na roça que pude começar a conhecer os modos regionais de cultivo e cuidado com a terra. Passado um ano, me encontro novamente em São Gabriel e, em contato com as mulheres agricultoras Tuyuka, pretendo dar continuidade ao trabalho de campo desde a convivência com elas, ouvindo seus modos particulares de enunciação da temática alimentar e observando a sua lida com as plantas, os animais e a relação que se estabelece entre esses diversos atores. (Júlia Camanho)

Sou sanitarista formada na Faculdade de Saúde Pública da USP e atualmente realizo no mestrado com bolsa Capes o projeto No caminho do encontro: as relações afetivo-sexuais vivenciadas entre jovens de São Gabriel da Cachoeira (AM). Essa pesquisa procura compreender como são vivenciadas as relações afetivo-sexuais entre jovens na cidade, com ênfase nos percursos que fazem em espaços de sociabilidade juvenil, especialmente no que diz respeito à natureza dessas relações e os significados e caminhos de suas práticas de cuidado e prevenção em saúde.

Meu trabalho de campo tem sido desafiador e intenso. Trabalhar com a temática da sexualidade e juventudes nesta cidade me coloca em uma posição de observadora atenta aos movimentos dos corpos nos espaços de encontros e de “escutadora” curiosa e (na medida do que eles julgam assim) confiável para ouvir relatos sobre flerte, desejo, medo e afins. Tenho descoberto e utilizado a fotografia como um caminho de aproximação com os jovens que parecem querer ser vistos(as) e ouvidos(as), mas sob condição de uma construção de relação de confiança mútua, de encantamento. Através do meu olhar sensível sobre o outro estou abrindo caminhos para ouvir o que ele tem a dizer sobre si, sobre seus corpos que dançam, desejam, seduzem e sentem tantas coisas até então indizíveis.

Dulce Meire Mendes Morais é antropóloga e sanitarista, assessora na pauta sobre de gênero do Instituto Socioambiental, e desde 2019 trabalha com as mulheres indígenas do Rio Negro, onde desenvolveu sua dissertação de mestrado com a temática de violência sexual e feminicídio, documentos e Estado em São Gabriel da Cachoeira. Hoje ela atua no desenvolvimento de ações formativas e materiais informativos sobre o enfrentamento de violências de gênero contra mulheres no Rio Negro. Além de pesquisadora associada no projeto Cosmopolíticas do Cuidado, realiza apoio logístico, afetivo e dá suporte na articulação das pesquisadoras com pessoas na cidade.

“Viver é partir, voltar e repartir” (Emicida)

O encontro entre essas quatro pesquisadoras em campo é um marco muito importante para o projeto Cosmopolíticas do Cuidado que não se limita ao florescimento de suas pesquisas individuais.

Um momento que proporciona, além do fortalecimento das pesquisadoras através de relações de afeto previamente estabelecidas, a construção de vínculos, parcerias e de aprendizados compartilhados. Entre elas e entre as pessoas com as quais vão tecendo novas relações, conversas e amizades. Um momento excepcional, devido aos diversos e complexos ajustes logísticos necessários para a chegada e permanência na cidade. Julia e eu somos originalmente sudestinas, e, apesar de já conhecermos minimamente a cidade e a região Norte, fomos demandadas em organizações financeiras, emocionais e de vida. Compartilhar o espaço-tempo de campo juntas tem sido essencial para proporcionar cuidado conjunto, acolhimento contínuo e possibilidades de reflexões conjuntas. Dulce é atualmente moradora da cidade e viveu o movimento de migrar, segue em constante adaptação no território e no campo dos afetos. Sua presença é fundamental durante o acolhimento das parceiras pesquisadoras, seu trabalho também colabora na conexão das pesquisadoras com pessoas na cidade. Elizângela é o coração pulsante deste grupo, como mulher indígena moradora na cidade e parceira atenta, é a pessoa que abre os caminhos e disponibiliza suporte contínuo nas navegações pelo Rio Negro e nas traduções generosas sobre os modos de vida indígena na cidade.

A partir deste encontro, as pesquisadoras têm a chance de fortalecer redes de contato mútuas, se apresentar à cidade como interessadas em seus temas de trabalho. Somado a isso, ele proporciona a oportunidade de atuar como uma equipe múltipla e parceira que compartilha conhecimentos, promove encontros a partir de seus saberes e também constrói ricas reflexões sobre os momentos vividos em campo. O trabalho de campo solitário, portanto, não cabe na proposta de um grande projeto de pesquisa que prevê encontros improváveis, conversas impensáveis e vivências nunca antes experimentadas pelas pessoas envolvidas e que se permitam envolver, portanto, são simbólicas e extremamente relevantes essas presenças simultâneas, no noroeste amazônico. A experiência conjunta da beleza dos deslumbramentos compartilhados entre goles de Caxiri, bailados de Cuximawara e banhos de folhas beneficia pesquisas que, a partir deste relato, já demonstram provocar a reflexão sobre, no mínimo, novas formas possíveis (e sensíveis) de fazer ciência.

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