“Quando nosso povo foi caçado como animais”: memória do genocídio aché no Paraguai

Por Pedro Henrique Frasson Barbosa, doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da USP

 30/08/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 04/09/2023 as 17:50
Pedro Henrique Frasson Barbosa – Foto: Arquivo pessoal

 

Os achés do Paraguai

Os achés são um povo indígena tupi, falante de uma língua da família guarani, que vive na região oriental do Paraguai. Somam, na atualidade, 2 mil pessoas e, além de seu próprio idioma, empregam em seu dia a dia também o guarani paraguaio, o espanhol e mesmo o português, dada a proximidade que os brasiguaios vivem de seus territórios.

Um dos últimos grupos indígenas do Cone Sul a serem contatados, os achés são também conhecidos como guaiaquis e, tradicionalmente, eram um povo praticante da caça e da coleta, que vivia na floresta, em pequenos acampamentos com até 30 pessoas. Enfrentaram, ao longo de todo o século XX, as pressões dos diversos ciclos econômicos que se desdobraram na região leste do Paraguai, como a extração de erva-mate, a nascente empresa madeireira, o plantio de soja e a criação de gado.

Marcadamente violentas e assimétricas, as relações entre os achés e a sociedade paraguaia se acentuaram especialmente a partir dos anos 1950, quando o país estava sob o comando do ditador Alfredo Stroessner. Nesse período, ainda vivendo na floresta, diversos grupos achés foram perseguidos, capturados, vendidos, escravizados e mortos. O “contato oficial”, ocorrido no final da mesma década, “sedentarizou” um primeiro coletivo aché na pouco antes concebida Colônia Nacional Guayaki, aldeamento criado pelo Estado paraguaio para abrigar os indígenas desse povo recém-retirado da mata. Nesse local, além de toda sorte de violências, mais mortes ocorreram em razão da falta de alimentação adequada e cuidados médicos.

Quando contam como foi essa história de contato com os não indígenas, os achés o fazem através do uso da palavra “genocídio”. É desse modo, mobilizando esse conceito, que os indígenas classificam as perseguições, desaparecimentos, sequestros e assassinatos ocorridos no tempo em que viviam no monte. Toda pessoa aché, independentemente do local de nascimento e moradia, possui pelo menos um parente desaparecido, sabidamente perseguido ou assassinado. Não sem razão, os achés fazem questão de contar sua história toda vez que estão diante dos beeru, os brancos, os não indígenas. Contar essa história para nós é como um protocolo de contato.

Em fevereiro de 2015, quando pela primeira pisei em um aldeamento aché, o interlocutor de pesquisa Francisco Mbepegi sentou-se comigo sob a sombra de uma árvore, ao lado da escola da “comunidade”, e relatou-me como surgiu o primeiro acampamento aché fora da floresta:

“E aí primeiro eles agarraram aos achés wa… depois disso, quando eles já puderam adaptar com os brancos, então usaram [esses achés] como uma guia para retirar outros achés da floresta, e aí vieram, foram trazendo [as pessoas] a essa comunidade…

Depois disso, quando saíram todos achés wa, então vieram mais da zona de Vilarrica, da zona de Ybytyruzú… Aí encontrou a outro grupo, [que] não era aché wa… Era aché de Ybytyruzú… E aí chegou outra vez, agarrou a um grupo e se foi morar aí, outra vez, em Arrojo Morotí… E assim conviviam junto: achés wa e ybytyruzú. Depois disso, a comunidade era pequena… já não podia abrigar a todos.”

Em outra ocasião, no contexto de minha pesquisa de mestrado, realizada em colaboração com os achés que vivem na aldeia de Puerto Barra, os abuelos Gavian Chimbegi e Victoria Pikygi me contaram sobre a fome que sentiam no período imediatamente anterior à saída da floresta, em 1976. Perguntei aos dois se o problema era a falta de animais para caçar ou plantas para coletar, mas a situação era outra:

“[…] havia caça e coleta, o ‘problema’ era outro: o problema era que os brancos sempre nos incomodavam… nós levávamos muitos sustos quando íamos caçar, quando nos encontrávamos com os brancos e por isso, por culpa do branco, que incomodavam sempre, nós estávamos com fome. E aí nós viemos com Lorenzo (Krachogi) porque aqui nós estaríamos mais seguros.”

Um dos responsáveis por publicizar as violências do contato entre os achés e a sociedade paraguaia, o antropólogo alemão Mark Münzel conta que, ao iniciar seu trabalho de campo com o grupo, nos anos 1970, percebeu que não estava diante de uma investigação antropológica comum. Ao indagar seus interlocutores a respeito do parentesco – algo comum nas pesquisas antropológicas, isto é, questões sobre quem é parente de quem, quem casa com quem, quais são os termos empregados etc. –, o pesquisador verificou que estava diante do que chama de “parentesco necrológico”, afinal a grande maioria dos parentes das pessoas com quem ele conversara havia morrido, de distintas maneiras, em razão do contato com os não indígenas. Os parentes mortos existiam em maior quantidade que os parentes vivos.

A história de contato dos achés com a sociedade paraguaia, caracterizada por esse povo como genocida, está abundantemente registrada em diversos tipos de fontes documentais. Refiro-me a textos antropológicos, livros escritos por juristas, circulares internas do governo paraguaio, registros de pronunciamentos de parlamentares de outros países, informes a tribunais e cortes internacionais, escritos de organizações da Igreja Católica (Conferência dos Bispos do Paraguai, Caritas Paraguai), entidades de defesa dos direitos dos povos indígenas (Survival International, Cultural Survival, International Work Group for Indigenous Affairs), cartas públicas de intelectuais de diferentes países (dentre os quais Eric Wolf e Claude Lévi-Strauss), além de mais de uma década de reportagens de jornais paraguaios como ABC Color, La Tribuna e Patria. Todas essas publicações, em diversos momentos, concordam e discordam entre si.

Essa discordância diz respeito, sobretudo, ao emprego ou não do termo “genocídio” para caracterizar as violências do contato entre os achés e a sociedade paraguaia envolvente. Parte da literatura justifica o uso dessa categoria em razão das violências experimentadas pelo grupo no tempo em que vivia na floresta, das buscas e capturas realizadas objetivando à sedentarização dos indígenas e dos maus tratos e ingerências de recursos no período de formação das primeiras aldeias. Essas publicações sinalizam, em suma, que o Estado paraguaio é responsável, “pela ação e pela omissão”, pelas violências genocidas que os achés enfrentaram entre a década de 1950 e os anos 1970.

Por outro lado, há escritores e mesmo tribunais internacionais que, seguindo a “interpretação hegemônica” do conceito de “genocídio”, concluem que, para que este se sustente juridicamente, é necessário comprovar a existência do chamado “elemento subjetivo” desse crime, além da elaboração e execução, por parte do Estado, de uma política formal cujo objetivo seja exterminar – fisicamente – uma dada coletividade, o que afirmam não ter ocorrido no caso dos achés. A própria Comisión de Verdad y Justicia do Paraguai (CVJ), criada em 2004 para investigar os crimes da ditadura de Alfredo Stroessner, registra, em seu relatório final, a ocorrência de “graves violações de direitos humanos” contra os achés e outros povos indígenas do Paraguai, mas destaca não ter sido possível provar juridicamente o “elemento subjetivo” que configuraria estas violências como genocidas.

Mais interessante que a controvérsia acadêmica e jurídica, talvez, seja perguntar aos achés o que eles e elas pensam de sua própria história de relação com a sociedade paraguaia e como preferem definir, classificar e nomear as violências que experimentaram nos primeiros anos de contato oficial com os beeru. Dessa maneira, seguindo as sugestões de outros pesquisadores, situados em diversas universidades brasileiras, e que se interessam pelas reflexões que diferentes povos indígenas têm realizado a respeito de distintos processos de violência a que foram submetidos, tento prestar atenção e compreender a elaboração que os achés da aldeia de Cerro Moroti fazem da categoria de “genocídio”, isto é, o que estas pessoas estão pensando e dizendo quando operam este termo para contar sua própria história. Essa é a questão central da minha pesquisa de doutorado em Antropologia, em andamento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP.

Além de uma modesta contribuição direta ao campo de estudos da etnologia indígena, buscar uma qualificação etnográfica de “genocídio”, que considere a perspectiva das coletividades indígenas que sofreram os processos de violência, e não a dos agentes que a perpetraram – novamente, aqui, seguindo as sugestões de antropólogas e antropólogos –, torna possível alargar as concepções sobre esse conceito existentes nos diversos domínios em que ele circula, como o universo jurídico, os movimentos sociais e a universidade.

50 anos depois

Ainda hoje, no século XXI, ouvem-se histórias de pessoas que durante anos viveram em famílias não indígenas paraguaias até saberem, de diferentes maneiras, que são pessoas achés que foram “retiradas” de suas famílias durante a infância. Esse é o caso, por exemplo, de Margarita Mbywangi, que em 2008 chegou a ocupar o posto de diretora do Instituto Paraguayo del Indigena (Indi), o equivalente, no Paraguai, à brasileira Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Sobre as violências contra os achés, Mbywangi registra, no Tomo 3 (Grupos vulneráveis) da Comisión de Verdad y Justicia (CVJ) do Paraguai:

“[…] Actualmente trato de dar todo lo que no tuve a mis hijos, siempre lucho contra la injusticia y culpo al gobierno por todo lo que pasó con el pueblo Aché, seguro que el Presidente de entonces sabía lo que pasaba en el monte porque los ancianos cuentan que eran militares quienes le atropellaban y llevaban criaturas como si fueran animalitos para vender. Contó que dos de sus hermanos también fueron sacados del monte por paraguayos, uno se llama Martín, vive actualmente en la zona de Curuguaty y del otro no sabe nada”.

(Margarita Mbywangi, Comunidad Kuetuvy, Canindeyú)

A história do genocídio aché, em resumo, a despeito do exíguo reconhecimento por parte do Estado paraguaio, segue sendo elaborada pela memória social deste povo. Resta alguém levá-la a sério.

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