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Desiludida com a ausência de apoio de políticas públicas para a prevenção ao suicídio e considerando a demanda da prática clínica, na qual recebia várias pessoas enlutadas pelo suicídio, decidi me aprofundar nos ensinamentos de Shneidman (1973, 1985, 1993, 1996, 2001).
Direcionei meus estudos para a compreensão do processo de luto por suicídio tanto no doutorado (2009-2013), no qual pesquisei o processo de luto de filhos de pessoas que se mataram, quanto no pós-doutorado (2013-2017), pelo qual ampliei o escopo dos estudos sobre a posvenção com a pesquisa “Cuidados e intervenções aos sobreviventes enlutados pelos suicídios”. Dessa maneira, mudei meu foco de pesquisa com o intuito de cuidar das “pessoas que ficaram, que estavam vivas e que precisavam encontrar forças para continuarem vivas”. Essas pessoas eram os enlutados e as famílias, cujas preocupações contínuas têm relação com familiares que tentam se matar.
Iniciado a partir do suicídio de uma pessoa que há pouco estava viva e de um momento para outro está morta, o processo de luto se torna uma fase delicada. Durante o luto, os dias se tornam intermináveis pela montanha-russa dilacerante. O luto corrói, machuca e faz com que duvidemos se um dia haverá algum momento em que o sofrimento cessará. Por esse motivo, a frase “quem mata quem, quando acontece o suicídio?” (Fukumitsu, 2013, p.69) se faz presente diariamente na vida daquele que foi impactado pelo suicídio de um ente querido.
No luto é escancarado um sofrimento que fica por muito tempo em carne viva e por esse motivo a pessoa que se matou se mantém pela dor, lembrança do ato suicida e pela constante busca de explicações. No luto, normalmente não usamos maquiagem nem adereços que nos enfeitam. É o estado mais “puro” em que evidenciamos nossa fragilidade.
Postvention é o termo proposto por Edwin Shneidman (1973; 1985; 1993), cujo foco principal é destinado a promover ações que se ocupam dos enlutados após o suicídio de uma pessoa querida e que, segundo ele mesmo em outra ocasião (2008, p. 23, tradução nossa), visam a “uma vida mais longa, mais funcional e menos estressante do que seria a expectativa de viverem [após serem impactados pelo suicídio]”. No Brasil, ainda não encontrado no dicionário da língua portuguesa, o termo posvenção tem se tornado gradualmente conhecido.
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Iniciado a partir do suicídio de uma pessoa que há pouco estava viva e de um momento para outro está morta, o processo de luto se torna uma fase delicada
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Em curso Suicídio e luto: uma tarefa da posvenção, fui questionada sobre os requisitos necessários para que um profissional pudesse se habilitar como “especialista em processo de luto por suicídio”.
Certamente não tenho a resposta final, mas ousei ofertar neste artigo algumas das reflexões a respeito dos aspectos importantes para aquele que têm a intenção de se dedicar às ações da posvenção. Para que nos aprofundemos na compreensão do processo de luto por suicídio, o profissional não deve se limitar apenas em ter simpatia pelos estudos da prevenção e posvenção ao suicídio, tampouco empatia pela pessoa em processo de luto, pois dificilmente poderemos nos colocar no lugar daquele que foi impactado pelo suicídio, como afirmado em crônica A busca de sentido no processo de luto: Escuta, Zé Alguém (Fukumitsu, 2014, p. 59): “O sentido pertence ao ‘sentidor’, a quem considero aquele que sente a dor”.
Questionamentos sobre “se algum dia a pessoa em luto voltará a sorrir novamente?”, “se as saudades continuarão a aumentar ou se diminuirão a cada dia?”, “se o inconformismo a respeito de a pessoa amada ter se matado passará?” expressam a desesperança, o ceticismo e a sensação de que o sofrimento nunca passará. Perguntas que não me sinto capaz de responder, pois acredito que o suicídio seja como um quebra-cabeças que nunca se formará, porque a pessoa que se matou levou a peça principal. Como afirmo: nunca somos os mesmos depois de um tsunami existencial acontecer.
Entendo que a práxis da posvenção transcende os limites temporais que comumente acompanho com alguns clientes em minha prática clínica, na qual percebo que assim que a pessoa encontra um bem-estar em sua maneira de viver, finaliza seu processo. Atendendo pessoas enlutadas pelo suicídio, percebo que o bem-estar é um dos únicos estados que a pessoa está aquém de ter a experiência. Pelo contrário, é um constante mal-estar, pois o suicídio não leva apenas a pessoa que nunca mais o enlutado verá.
O suicídio leva também os sonhos, as expectativas, os vínculos afetivos que foram abruptamente interrompidos e, por esse motivo, considero que, no trabalho de acolhimento ao sofrimento provocado pela morte repentina e violenta, o estar junto no torpor, tristeza, falta de respostas, raiva, culpa e arrependimentos faz total diferença. É preciso viver com compaixão, que segundo Nouwen (2007, p.69) significa “entrar nos momentos sombrios do outro. É penetrar em lugares de dor, é não recuar ou desviar os olhos quando alguém agoniza. Significa permanecer onde pessoas sofrem. A compaixão é o que nos impede de dar explicações fáceis e ligeiras diante da tragédia na vida de alguém que conhecemos ou amamos”.
O respeito para com a dor de outrem sem querer interferir nem dar conselhos e auxiliar o enlutado a se auto-respeitar são algumas das principais intervenções do processo de luto por suicídio. Acima de tudo, repito o que afirmei em estudos anteriores: “o que conforta talvez não seja realmente o tempo, mas sim o sentido das vivências que tivemos com as pessoas que morreram” (Fukumitsu, 2014, p.59).
Meu sonho seria o de não precisar falar sobre posvenção, pois atinge diretamente minha impotência e sofrimento por acompanhar inúmeras vidas interrompidas e inúmeras vidas que se fragmentaram em virtude dos suicídios de pessoas amadas. Difícil realidade e, por isso, a posvenção nos convida a pensar sobre o aspecto de ser uma intervenção dolorida, porém necessária.
Que a prevenção ao suicídio seja cada vez mais expandida e ampliada para que a posvenção não seja necessária e tão frequente.
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Referências
Fukumitsu, K. O. (2013). Suicídio e Luto: histórias de filhos sobreviventes. São Paulo: Digital Publish & Print.
Fukumitsu, K. O. (2014). “A busca de sentido no processo de luto: escuta Zé Alguém”. Revista de Gestalt, v. 19, pp. 59-61.
Nouwen, H. (2007). Transforma meu pranto em dança: cinco passos para sobreviver à dor e redescobrir a felicidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson.
Shneidman, E. (1973). Deaths of man. New York: Quadrangle.
Shneidman, E. (1985). Definition of suicide. Michigan: Wiley.
Shneidman, E. (1993). Suicide as Psychache: a clinical approach to self-destructive behavior. London: Jason Aronson.
Shneidman, E. (1996). The suicidal mind. Oxford: Oxford University Press.
Shneidman, E. (2001). Compreending suicide: landmarks in 20th-Century Suicidology. Washington: American Psychological Association.
Shneidman, E. (2008). A commonsense book of death: reflections at ninety of a lifelong thanatologist. United Kingdom: Rowman & Littlefield Publishers, Inc.
[1] Republicada em 2012 com novo título. Versão de 2005 intitulada “Suicídio e psicoterapia: uma visão gestáltica”. Campinas: editora Livro Pleno.
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