O fascismo e o nazismo na língua do presidente: reflexões a partir de Roland Barthes e Victor Klemperer

Por Claudia Amigo Pino, professora, e Paulo Procopio Ferraz, pós-doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 04/05/2021 - Publicado há 4 anos
Claudia Amigo Pino – Foto: Arquivo pessoal
Paulo Procopio Ferraz – Foto: Arquivo pessoal
Durante a pandemia, em várias ocasiões ouvimos discursos de políticos que se opunham à ciência. Em março, quando as primeiras quarentenas foram decretadas na Europa para conter o crescente número de infectados e mortos pelo coronavírus, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, afirmava que a pandemia era uma fantasia propagada pelos meios de comunicação. Duas semanas depois, o mesmo Bolsonaro afirmou que “o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele”.

Em agosto, depois de ter contraído a doença, ele afirmava que “o lockdown tinha matado dois de cada três pessoas na Inglaterra” e que “a hidroxicloroquina tinha salvado a sua vida e a de milhares de brasileiros”. Em 2021, apesar de ter sido obrigado a moderar seu discurso por pressões de seus apoiadores, ele disse que as forças armadas podiam ir para a rua “acabar com essa covardia do toque de recolher”, opondo-se abertamente às recomendações da Organização Mundial da Saúde, que aconselha o isolamento e desestimula o uso de drogas como a hidroxicloroquina para o tratamento da covid.

Como explicar o comportamento de um presidente que resiste à autoridade científica? Há pesquisas que identificam essas ações como uma estratégia do executivo federal: opor-se a certos governadores que executam ações para combater a pandemia, considerados como ameaças políticas ao presidente. Aqui gostaríamos de apresentar outro tipo de explicação para o comportamento irresponsável do presidente, relativa à sua estratégia de propaganda. Para isso, revisitamos a obra de um pensador da linguagem, Roland Barthes, e de um analista da retórica nazista, Victor Klemperer.

Na sua aula inaugural do Collège de France, proferida em janeiro de 1977, Barthes afirma que a língua é fascista porque nos obriga a repetir o discurso do poder. Usar a língua implica a submissão a uma tradição e a um poder veiculados por ela. Não há possibilidade de sair da língua, uma vez que o homem é obrigado a falar: “Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado”. Dessa forma, não há uma realidade externa à linguagem; a realidade é constantemente criada e recriada pela linguagem. Os apoiadores do presidente não negam simplesmente a existência de uma realidade exterior a eles, eles criam uma ilusão de realidade a partir das palavras, frases e fórmulas às quais eles estão expostos.

Segundo Barthes, um dos elementos que fazem com que a língua seja fascista é a sua tendência à afirmação. Todas as frases que procuram desviar-se da afirmação precisam passar por uma série de modificações gramaticais mais ou menos complexas. Em francês, por exemplo, a negação constitui-se como uma dificuldade considerável para quem quer aprender a língua. Mesmo os falantes nativos podem atrapalhar-se com certas interações entre pronomes, tempos verbais e partículas negativas. Ora, é inegável, apesar das críticas formuladas à noção de “fascismo da língua”, que há um forte apreço da língua fascista pela afirmação. Victor Klemperer escreve que uma das características dos textos nazistas é, justamente, a afirmação peremptória, que criava verdades incontroversas. A asserção tinha um papel tão fundamental que ela adquiria um valor de verdade absoluta. Não era fácil se descolar da língua nazista, que invadia todos os espaços e todos os discursos. Questionar uma frase do Führer era uma atitude blasfematória. Nos discursos de propaganda, Hitler é colocado como “redentor” e “salvador”, um lugar de linguagem semelhante ao de um messias. Em 1934, por exemplo, Hermann Göring faz um discurso diante da câmara de Berlin no qual ele diz: “Todos nós, desde o mais simples membro da SA até o primeiro-ministro, somos de Adolf Hitler”. Bastaria que substituíssemos a palavra “Hitler” por “Cristo” para entendermos as relações com a língua cristã. O tom religioso é, por vezes, explícito. Klemperer escreve que “ele [Hitler] chamou de ‘meus apóstolos’ os caídos na Feldherrnhalle. São dezesseis, seguramente ele tem de ter quatro a mais do que seu antecessor [Jesus Cristo]”. Não é necessário muito esforço para identificar a mesma estratégia na propaganda de Jair Bolsonaro, que dá ênfase ao segundo nome, “Messias”, e usa o epíteto “mito”.

Mas a verdade nazista é a sua fragilidade: na medida em que cada uma das suas palavras deve carregar o peso grandiloquente do real, toda a sua fala é uma forma de fazer com que a realidade seja a expressão mesma da língua. Isso quer dizer que ela é inflexível; desmorona com a menor das pressões, como aqueles materiais que, por serem duros demais, mantém-se intactos ou desabam – não é possível, para a língua nazista, ceder um pouco, pois isso já atinge a integridade de seu corpo. Por isso, segundo Klemperer, “tudo era vigiado nos mínimos detalhes para que a doutrina nacional-socialista permanecesse intacta, sem falsificação em cada um de seus aspectos, incluindo a linguagem”. Da mesma forma, Bolsonaro, apesar das pressões políticas, não pode assumir que errou. Como exemplo, podemos citar a sua absurda declaração de que ele nunca teria qualificado o coronavírus de gripezinha. Para a língua fascista, é mais fácil fingir que o passado não aconteceu do que se corrigir. A lógica desse procedimento não é difícil de entender: se eu me retifico, admito, ao mesmo tempo, que posso errar, o que instala a dúvida naqueles que me seguem.

A partir dessa releitura de Barthes e Klemperer, podemos identificar os usos da linguagem específicos da propaganda deste governo. Assim, percebemos que a necessidade de se afastar do discurso da ciência e o uso da palavra “mito” para se referir a Bolsonaro estão ligados: os dois usos da linguagem reforçam a relação com o imaginário religioso (dadas as múltiplas disputas entre ciência e religião a partir do século XVIII). Por que Bolsonaro precisa usar uma língua próxima do nazismo? Como isso o ajuda a se manter no poder? Evidentemente, essa identificação, uma vez explicitada, não é favorável para o governo: quando Roberto Alvim, Secretário da Cultura, emulou, sem disfarces, um discurso de Joseph Goebbels, Bolsonaro demitiu-o imediatamente. Contudo, não se trata de definir as simpatias políticas do bolsonarismo, mas de entender como esse movimento opera politicamente. É possível que a aproximação com o nazismo não seja um desejo de Bolsonaro. No entanto, trata-se de um caminho que todos os movimentos fascistas são obrigados a tomar. Bolsonaro é fascista não por escolha, mas por afinidade de ação: ele só sobrevive politicamente se continuar mobilizando seus apoiadores. Essa mobilização precisa, para funcionar, manter-se na mesma dinâmica de apoio incondicional que encontramos em qualquer líder fascista. E assim, não é preciso de tanques de guerra nem de polícia secreta: a própria língua faz o papel de repressão.


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