A crise de governança no Brasil e os paradoxos da pandemia

Por Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 29/08/2022 - Publicado há 2 anos

Às vésperas da eleição para o presidente que governará o Brasil até 2026, nos deparamos com um mundo muito diferente de quando realizamos este exercício democrático em 2018. A covid-19 chegou ao Brasil relativamente mais tarde do que na Ásia, Europa e América do Norte. Apesar disso, o País registrou 10,26% das mortes oficiais do mundo até agora, sendo que a população brasileira é apenas 2,73% da população mundial. Ou seja, uma em cada dez mortes pela doença no mundo é nossa. Esses números, que sem dúvida são estimativas mais baixas, sinalizam a magnitude da tragédia ainda em curso.

Por outro lado, vivemos um momento histórico de esperança. Somos participantes da maior campanha de vacinação em massa do mundo. Hoje, todos os brasileiros de 3 anos para cima têm a esperança de receber doses das vacinas que os protegem contra sintomas graves ou óbito após a infecção pelo vírus sars-cov-2. O papel dos brasileiros nesta história é marcado por grandes mobilizações – a imensa maioria dos brasileiros se mobilizou para garantir acesso e distribuição das vacinas e depois compareceu em peso nas campanhas de vacinação para receber suas doses no SUS de forma gratuita. Os registros de vacinas aplicadas em sistemas transparentes nos permitem captar a magnitude desta conquista, superando todas as dificuldades de um país de média-baixa renda como o Brasil.

À medida que participamos dos debates para ouvir os candidatos à Presidência, cada vez mais somos testemunhas de como a pandemia e suas consequências exacerbam e amplificam a crise de governança no País. Por um lado, o governo Bolsonaro pretende-se reescrever a história. Seu programa de governo para um segundo mandato promete fortalecer o SUS e a economia. Por outro lado, os principais programas de governo dos candidatos que fazem oposição ao governo Bolsonaro apresentam poucas e vagas referências à pandemia. Nos documentos da coligação “Brasil da Esperança” de Lula e Alckmin e no programa de governo do PDT do candidato Ciro Gomes, a palavra pandemia aparece apenas quatro vezes. O mesmo ocorre nas propostas de programas de governos estaduais que também terão eleições em outubro de 2022.

Desde o início da pandemia de covid-19, o Brasil passou por ondas epidemiológicas. Apesar das diferenças entre cada uma dessas ondas, o que há em comum são inúmeras oportunidades perdidas para um controle mais efetivo da pandemia. Hoje, continuamos em um voo sem norte e sem plano de controle coordenado.

Neste ano, no qual já houve duas ondas de ômicron nos primeiros oito meses e já se registrou o maior número de casos confirmados por covid-19, o governo federal declarou o fim da emergência pública. O mesmo governo abandonou os esforços de coordenação de vigilância permitindo autotestes sem nenhum sistema de notificação. Nos países com alta renda, há amplo uso de acesso a tratamentos com antirretrovirais e anticorpos monoclonais para pacientes de risco para progredir com as formas graves da covid-19 ou mesmo para os pacientes internados, porém a grande maioria desses medicamentos ainda não está disponível no Brasil. Com tudo que aprendemos sobre medidas de prevenção de doenças respiratórias, inclusive em ambientes escolares e nos serviços públicos, hoje os protocolos de biossegurança foram abandonados. O Ministério da Saúde ainda não divulgou um manual para o monitoramento de pessoas com covid longa e poucos são os serviços que monitoraram e atendem os pacientes que sofrem com sequelas duradouras da doença. Devido às campanhas de desinformação e fake news, como também à falta de coordenação efetiva do Ministério da Saúde, uma parcela elevada da população em muitos municípios não compareceu para receber as doses de reforço da vacina. As crianças de 3 a 5 anos esperam desde julho de 2022 para receber vacinas.

A saída da crise de governança começa em definirmos os principais determinantes da atual tragédia ainda em curso e construir um plano organizado nos três poderes para seu enfrentamento. Ao invés de reduzir a magnitude do problema, chegou a hora de cobrarmos planos coerentes tanto antes da decisão na urna, como para um árduo trabalho de reconstruir o País durante e após a pandemia da covid-19.


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