Falar de prevalência ou frequência de transtornos alimentares no Brasil é um desafio, pois não temos uma boa cobertura de dados nacionais. Isso se deve a um percurso tortuoso das linhas de pesquisa, incentivo e interesse nas tecnologias diagnósticas, psicométricas e na apresentação de dados. Com uma mistura de surpresa e preocupação, percebo a escassez de pesquisas sobre transtornos alimentares no Brasil. Esse problema torna-se ainda mais alarmante considerando a complexidade e a natureza multifatorial destas condições, que, no contexto brasileiro, levantam uma série de desafios em gestão de dados, levantamento, tecnologias e parcerias avaliativas. Os tipos de artigos publicados refletem parte do estado da arte e o avanço das linhas de pesquisa, e podem ser comparados com outros cenários que avançaram, como, por exemplo, muitos estudos brasileiros de caracterização em comparação com diversos ensaios clínicos complexos e multicêntricos.
No Brasil só em 2020 tivemos o Eating Disorders Examination, versão questionário disponível, sendo este o instrumento mais utilizado no mundo para avaliar sintomas de transtorno alimentar. Isso prova nosso atraso. No Brasil, uma quantidade significativa de pesquisas sobre outros transtornos mentais vêm sendo conduzidas com sucesso, utilizando tecnologias diagnósticas avançadas, com boas propriedades psicométricas e validadas em grupos que apresentam o adoecimento e até mesmo ensaios clínicos randomizados em detrimento da pequenez na área de transtornos alimentares. O maior indicativo, talvez, em pesquisa e prática clínica é a presença de consensos e diretrizes dentro de uma área de estudo.
Para ilustrar o estado da pesquisa brasileira, considerei o Brazilian Journal of Psychiatry (BJP), pois abrange uma variedade de aspectos relacionados à saúde mental e psiquiatria. Pesquisas conduzidas no Brasil sobre uma gama de condições de saúde mental, incluindo depressão, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos por uso de substâncias, frequentemente aparecem nos volumes da revista. Cabe ressaltar que este tema não é de nenhuma área específica do conhecimento, e que são necessárias áreas infelizmente muito negligenciadas como as ciências sociais, antropologia, nutrição e psicologia. As contribuições destas áreas garantem e lutam por uma dinâmica de cuidado humanizada e contêm elementos para um olhar transdisciplinar. O Brasil conseguiu avançar em diversos transtornos mentais que vem recebendo um olhar abrangente e baseado em evidências, e diversas publicações no Brazilian Journal of Psychiatry (BJP) provam este avanço relevante para a psiquiatria brasileira.
Por qual razão não conseguimos avançar na área de transtornos alimentares? Atualmente, estamos trabalhando em uma revisão sistemática registrada sobre o panorama nacional, tema do meu doutoramento, e obtivemos menos de 100 estudos brasileiros, agrupados em cinco grandes temas: perfil demográfico e socioeconômico, impactos clínicos e dentários, aspectos psicológicos e comportamentais, relações familiares e sociais, e tratamentos farmacológicos e avaliação. Esses temas mostram que foi difícil ou não houve investimento significativo e tecnológico na área.
Futuras análises bibliométricas revelarão a trajetória da pesquisa e as contribuições pessoais e institucionais. Dado esse cenário, é imperativo incentivar os pesquisadores brasileiros, centros de estudo, clínicas ambulatoriais e unidades de saúde do Sistema Único de Saúde a avançar nas tecnologias de pesquisa sobre transtornos alimentares.
Esforço e energia significativos são necessários para fornecer dados de qualidade sobre brasileiros e suas características. Análises bibliométricas podem ser úteis para rastrear e identificar quais programas de pós-graduação e grupos de pesquisa mais contribuíram e como contribuíram para a melhoria das tecnologias diagnósticas, treinamento de equipes, recrutamento de participantes e produção de conhecimento. Abordar essa lacuna é fundamental para desenvolver políticas de saúde pública eficazes, consensos e guidelines nacionais, além de estratégias de intervenção culturalmente apropriadas que possam melhorar a saúde e o bem-estar daqueles afetados por esses transtornos desafiadores.
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