Em galáxias como a nossa, estruturas em forma de barra alimentam buracos negros

Pesquisa sobre barras – conjuntos de estrelas gerados por instabilidades gravitacionais – traz novos indícios dos processos de formação estelar e evolução galáctica

 Publicado: 30/09/2024 às 12:00     Atualizado: 01/10/2024 às 16:20

Texto: José Tadeu Arantes*

Arte: Joyce Tenório**

Composição da NGC 1300 obtida com o telescópio Hubble. Esta galáxia é uma das gêmeas morfológicas da Via Láctea estudadas no projeto. Sua barra é uma das características principais. Dentro dela, é possível ver estruturas espirais conduzindo o gás rumo ao centro – Foto: NASA, ESA e The Hubble Heritage Team STScI/AURA/Domínio público via Wikimedia Commons

Com idade estimada em 13 bilhões de anos, e massa total equivalente a cerca de 60 bilhões de vezes a massa do sol, a nossa galáxia, Via Láctea, possui um buraco negro supermassivo, 4 milhões de vezes maior que a massa do Sol. Como o observador terrestre e o centro da Via Láctea se encontram no mesmo plano – o plano galáctico –, o acesso óptico ao buraco negro é impossibilitado por enormes nuvens de gás e poeira, que se interpõem no caminho e bloqueiam a luz visível. Mas observações em determinados comprimentos de ondas (como raios-X, rádio ou infravermelho) capazes de atravessar a barreira de matéria têm sido realizadas. Uma via complementar é estudar galáxias semelhantes à Via Láctea para entender o papel das estruturas centrais na alimentação dos buracos negros supermassivos e na formação estelar.

Esse foi o foco de estudo realizado pela astrônoma Patrícia da Silva, no Observatoire de Paris, na França, e apoiado por Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior da Fapesp. Patrícia é pós-doutoranda no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Sua supervisora no exterior foi Françoise Combes, do Observatoire de Paris e do Collège de France.

Os resultados foram divulgados em artigo do periódico científico Astronomy & Astrophysics. “Investigamos como as ‘barras’ e as ‘espirais’ existentes nas galáxias influenciam o movimento do gás rumo ao centro, onde ele pode abastecer buracos negros supermassivos e desencadear surtos de formação estelar”, conta. A pesquisadora explica que “barras” e “espirais” são enormes estruturas formadas por estrelas e gás. O processo de formação das barras é significativamente complexo e resulta de instabilidades gravitacionais no disco da galáxia, fazendo com que estrelas e gás se distribuam em uma estrutura alongada. As barras são encontradas em cerca de dois terços de todas as galáxias espirais do universo local, entre elas a Via Láctea.

“Este projeto no exterior foi gerado a partir de um trabalho maior, objeto do meu pós-doutorado, que busca estudar os núcleos de galáxias semelhantes à Via Láctea, com ou sem barra. Esse estudo, por sua vez, recorreu a dados de um grande projeto de investigação científica, o Deep IFS View of Nuclei of Galaxies (DIVING 3D), cujo objetivo é pesquisar as regiões centrais de todas as galáxias do hemisfério Sul”, relata Patrícia da Silva. “A amostra deste projeto é de 170 galáxias. Destas, 15 são gêmeas morfológicas da Via Láctea (MWMTs, sigla em inglês para “Milky Way Morphological Twins”), e possuem barras, e oito análogas à nossa, porém, sem barra. São essas 23 que constituem os meus objetos de interesse. Para estudar a dinâmica do gás nesse contexto, além do DIVING 3D, recorri a dados do observatório Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (Alma), do Hubble Space Telescope e do Legacy Survey. Em função dos dados disponíveis, precisei fechar o foco em dez galáxias, oito com barra e duas sem elas”.
foto da pesquisadora Patricia da Silva, uma mulher branca, de olhos e cabelos castanhos. Ela usa uma blusa preta e está sorrindo.
Patricia da Silva - Foto: Currículo Lattes

Segundo a pesquisadora, um dos vários objetivos do projeto de pós-doutorado é comparar as amostras dos dois tipos de galáxias para descobrir se há alguma influência da barra na emissão da região nuclear e circum-nuclear. “Ao estudar a emissão nuclear e circum-nuclear das MWMTs, notamos que há uma grande variedade de estruturas, como anéis circum-nucleares e espirais nucleares, que conectam a galáxia com o núcleo. A partir disso, surgiu a ideia de analisar a influência da barra no contexto do transporte de gás para a região nuclear”, observa. “Em que nível a barra é responsável pela formação das estruturas que observamos? A barra seria também responsável pelo abastecimento direto de gás para o núcleo, tornando ativo o buraco negro supermassivo que ali reside, isto é, gerando um núcleo ativo de galáxia (AGN, do inglês “Active Galactic Nucleus”)? Foi assim que nasceu a pesquisa que conduzi no exterior”, informa.

Um dos principais objetivos do trabalho foi quantificar a eficiência das barras no transporte de gás em diferentes escalas, de centenas a milhares de parsecs. Vale lembrar que cada parsec (cujo símbolo é pc) vale cerca de 3,26 anos-luz, ou seja, quase 31 trilhões de quilômetros. “As barras são estruturas alongadas de estrelas que criam regiões de ressonância gravitacional, onde o gás, em rotação, é transportado rumo ao núcleo ou rumo às bordas da galáxia, dependendo do torque gravitacional exercido sobre ele”, descreve Patrícia da Silva. O torque gravitacional é uma força definida pela distância do objeto em relação ao centro de gravidade. “Em galáxias barradas, esses torques são predominantemente negativos, o que resulta na perda de momento angular do gás e, portanto, levando-o em direção ao centro galáctico. Esses fluxos de gás podem alimentar o buraco negro supermassivo e desencadear atividades de formação estelar”.

Transporte de gás

A Galáxia Andromeda (M31), assim como a Via Láctea, é espiral – Foto: Adam Evans/Flickr – CC BY-NC 2.0

Um dos aspectos mais relevantes do estudo foi o impacto que os torques gravitacionais têm na formação de estruturas circum-nucleares, como anéis e espirais nucleares. Essas estruturas são fundamentais para compreender como o gás é redistribuído em escalas menores dentro da galáxia. Anéis circum-nucleares são locais de intensa formação estelar, alimentados pela compressão do gás à medida que ele se acumula em regiões de ressonância gravitacional. Já as espirais nucleares (em alguns casos conectadas a estes anéis circum-nucleares) podem desempenhar um papel essencial no transporte contínuo de gás para o núcleo, alimentando o buraco negro supermassivo e mantendo núcleos ativos de galáxia (AGNs). “Em galáxias não barradas, os torques gravitacionais são menos eficientes no transporte de gás em direção ao centro. Essas galáxias estão sendo analisadas neste momento no Survey DIVING 3D. Estamos investigando as principais características de suas regiões nucleares para compararmos com as MWMTs e relacionarmos a ausência da barra nesses cenários”, acrescenta Patrícia da Silva.

Nas galáxias barradas da amostra, observou-se que os torques negativos dominam na região situada entre a barra e os anéis circum-nucleares (em torno de 300 parsecs), facilitando o transporte de gás para essas regiões e contribuindo para a formação de novas estrelas. No entanto, sabe-se que, dentro dos anéis circum-nucleares, os torques tendem a se inverter para positivos, interrompendo o fluxo de gás para o núcleo. A presença de buracos negros supermassivos ativos (AGNs) pode gerar novas ressonâncias, produzindo mais estruturas até o buraco negro supermassivo, conectando este com as demais estruturas de larga escala da galáxia e permitindo o contínuo abastecimento de gás para o núcleo galáctico. “Enquanto as galáxias barradas demonstram um padrão claro de transporte de gás para o centro, as galáxias sem barra [Sbcs] apresentam dinâmicas diferentes. Nesses casos, o gás é transportado rumo às bordas da galáxia devido a torques positivos predominantes. Isso sugere que, em galáxias sem barra, outros mecanismos, como a interação gravitacional dos braços espirais, devem desempenhar um papel no transporte de gás para o núcleo, se houver”, relata Patrícia da Silva.

Um ingrediente fundamental na evolução das galáxias é a condução do gás para os centros galácticos e a alimentação dos buracos negros supermassivos. Esses corpos extremamente densos, presentes em quase todas as galáxias, regulam a quantidade de gás disponível nas regiões centrais e influenciam a formação estelar ao redor. Os dados analisados no estudo mostram que as barras facilitam o transporte para a região central. “No entanto, à medida que o gás se aproxima do núcleo, novos mecanismos devem entrar em ação para que ele continue a cair rumo ao buraco negro supermassivo. Observações de alta resolução revelaram que, em escalas de aproximadamente 10 parsecs, barras nucleares menores podem desempenhar esse papel, canalizando gás diretamente para o centro”, informa a astrônoma.

Embora o estudo tenha feito avanços significativos no entendimento dos torques gravitacionais e sua influência no transporte de gás, há ainda muitas questões em aberto. Uma das limitações enfrentadas pelas pesquisadoras foi a resolução espacial disponível nos dados, que impediu uma análise mais detalhada em escalas menores, como a de 10 parsecs. Patrícia da Silva ressalta que futuros estudos com imagens de maior resolução são necessários para entender completamente como o gás é canalizado para o buraco negro supermassivo e como esse processo afeta a evolução de longo prazo das galáxias. Além disso, o estudo sugere que a força das barras não é uma característica permanente, variando ao longo de bilhões de anos. Fatores como a presença de gás no disco galáctico e as interações gravitacionais podem influenciar a longevidade das barras, tornando o transporte de gás um processo dinâmico e complexo.

“Ao entender melhor como o gás é redistribuído em galáxias gêmeas da Via Láctea, podemos obter novos indícios sobre a evolução de nossa própria galáxia e o papel que o buraco negro supermassivo central desempenha nesse processo. Nossa pesquisa oferece uma base sólida para futuras investigações”, conclui a pesquisadora. O artigo Multiple-scale gas infall through gravity torques on Milky Way twins pode ser acessado neste link.

*Da Agência Fapesp, adaptado para o Jornal da USP.
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

Texto original: Estruturas em forma de barra alimentam buraco negro supermassivo no centro de galáxias análogas a Via Láctea


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.