Espírito pós-moderno e a atual sanha reformista curricular

Por Angelo Segrillo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 21/06/2023 - Publicado há 11 meses
Angelo Segrillo – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

O pós-modernismo é uma corrente de pensamento que critica a potencialidade “totalitária” do modelo modernista. A modernidade, herdeira do iluminismo, se baseou em grandes projetos modernizadores (“metanarrativas”) frequentemente calcados em grandes “chaves” únicas que “explicavam” holisticamente os fenômenos (o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e/ou a luta de classes para os marxistas, o mercado para os liberais etc.).

Os pós-modernos, preocupados com o fato de que muitos desses projetos modernistas (que acreditavam ter a “chave” para explicar a sociedade) desembocaram em grandes ditaduras totalitárias no século 20 (excluindo os que pensavam diferentemente), propuseram uma incredulidade perante tais metanarrativas totalizantes. Se ninguém tem a chave para explicar tudo, mas precisamos nos organizar no mundo, então o que nos resta é democraticamente discutir como agir coletivamente partindo do princípio que “ninguém sabe mais que ninguém”.

Esta parte da incredulidade pós-moderna é bastante saudável como corretivo dos potenciais perigos “totalitários” do pensamento moderno. Mas acho que o pós-modernismo tem seus próprios perigos quando, em vez de ser um saudável corretivo dos potenciais erros do moderno, ele se absolutiza e prega um niilismo completo. No caso do meu campo de especialidade (a História), isso se apresenta da seguinte maneira em sua versão mais radical: na verdade não existe História (com letra “h”), pois ninguém pode ter certeza de que algo é “verdadeiro”, e sim apenas “estórias” (ou seja, cada historiador tem sua narrativa e não existe um terreno metateórico superior, um “topo de montanha”, no qual possamos julgar se uma narrativa histórica é melhor, mais “verdadeira”, que a outra).

Ou seja, considero que o pós-modernismo é saudável e produtivo como “corretivo” dos erros do moderno, mas se torna um perigo quando quer absolutizar, “tomar o lugar”, do moderno em um projeto completamente niilista em que não existem mais verdades ou objetividade, sendo tudo relativo e subjetivo.

Toda essa introdução “filosófica” é importante, em minha opinião, para entender o fenômeno atual que quero abordar: uma certa sanha reformista em cima de currículos preexistentes. Veremos que isso ocorre tanto em nível de nossa universidade, a USP, quanto em nível nacional. E quero defender que esse reformismo é orientado por um impulso pós-modernista que está sendo misguided (e, pior ainda, utilizando métodos totalistas autoritários que o próprio pós-modernismo critica no moderno).

Peguemos, por exemplo, a recente reforma do Ensino Médio, aprovada em 2017, no governo Temer. O espírito pós-moderno se reflete no fato que ela tirou a ênfase das disciplinas clássicas tradicionais (Matemática, História etc.) e as diluiu em meio a outros “itinerários formativos” que incluem disciplinas não tradicionais de inspiração pós-moderna que podem variar de local para local. Esse espírito de “flexibilização” está sendo criticado por muitos pedagogos pelo perigo de aumentar as disparidades entre as escolas “boas” e “ruins”, gerar desigualdades entre os estudantes etc. Para muitos (inclusive para mim), esta reforma desvia a atenção do problema principal (a desigualdade social e escolar). Entre ela e o ensino antigo, mais tradicional, melhor teria sido manter o modelo antigo (e tentar aprimorá-lo por dentro, em vez de descartá-lo). Mas quero chamar a atenção também para a maneira como a reforma de 2017 foi realizada, bastante impositiva, contrariando o próprio espírito antiautoritário pós-moderno.

Dentro da USP também estamos presenciando esta sanha reformista curricular. Peguemos o caso particular do meu departamento de História. Ano passado concluímos uma reforma curricular a ser implementada a partir do próximo ano. Considero que ela foi animada pelo mesmo espírito “pós-moderno” que estimulou a reforma do Ensino Médio: nela diminuímos as horas em várias das disciplinas obrigatórias tradicionais (História Contemporânea, História Moderna etc.) e aumentamos a carga em disciplinas optativas, transversais, não tradicionais, também estruturadas em “percursos formativos”. Respeitando a opinião dos colegas que pensam o contrário, eu considero que, assim como no caso do Ensino Médio, entre este novo currículo e o antigo, eu acho que o melhor seria manter o currículo antigo (inclusive por uma série de outros detalhes que não cabem aqui).

Mal acabamos de mudar nosso currículo no departamento e fomos atingidos no início deste ano com a notícia de que teremos que modificá-lo, pois há uma nova reforma curricular que vem de cima e que tem que ser obedecida por todos. É o problema da “Curricularização da Extensão na Graduação”, exigência em nível nacional estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (Lei Federal nº 13.005/2014), e pela Resolução CNE/CES Nº 7/2018, que estabelecem que “as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação”.

Essa situação me toca muito de perto. Eu faço parte da Comissão de Cultura e Extensão da minha Unidade na USP. As atividades de Extensão são muito importantes socialmente, pois são quando a universidade passa seus conhecimentos diretamente à sociedade, com cursos, palestras etc. abertas à comunidade em geral. A Extensão na USP é fortíssima. Até devido à pandemia (quando muitos cursos de extensão da USP tiveram que passar a ser on-line e aí puderam atender pessoas não só de São Paulo, mas do Brasil e mesmo do mundo), o número de alunos de extensão da Universidade deu um pulo imenso inclusive chegando a uma situação em que tivemos mais alunos matriculados em curso de extensão que na própria graduação regular. Um sucesso muito útil socialmente.

Com esta experiência, vejo com muita preocupação mais esta exigência de reforma curricular vinda da esfera federal. Atualmente na USP, a maioria dos cursos de extensão são ministrados por alunos de pós-graduação, pois estes são pessoas já formadas e habilitadas para ensinar o assunto. Como será feita uma extensão por alunos de graduação? Eles ainda não são formados e não estão habilitados (adequadamente preparados) para lecionarem sobre aqueles assuntos. Temo uma queda de qualidade nos cursos e tentação para se dar “jeitinhos” para se cumprir esta exigência de 10% da carga curricular de graduação em atividades de extensão. 10% do currículo é muita coisa. Esses 10% novos para extensão significam que adicionaremos 10% mais aos currículos existentes (que já sobrecarregam os alunos) ou que tiraremos 10% dos currículos atuais para colocar essas atividades de extensão? Todas as duas opções são ruins. Na verdade, talvez essa ideia de 10% de atividades em extensão fosse uma boa ideia para a pós-graduação, pois estes alunos sim são habilitados e qualificados para uma atividade de extensão de qualidade.

Mas não para aí a sanha “reformista curricular”. Para entender esta nova exigência da “Curricularização da Extensão na Graduação”, fui assistir on-line o Conselho Universitário (Co) Temático de 25 de abril de 2023 em que (numa excelente iniciativa da Reitoria da USP) o tema da curricularização da extensão seria apresentado e discutido entre outras coisas. Caramba! Neste Co também me familiarizei que, em futuro médio, provavelmente teremos uma outra reforma curricular (esta interna da USP, chamada de “Integração Curricular”) em que o espírito (na minha opinião também “pós-moderno”) será de os currículos deixarem de ser baseados em “disciplinas” (“História Contemporânea”, “Matemática” etc.) para serem currículos baseados em transdisciplinaridade, atividades colaborativas e assim por diante.

Puxa! Mal mudamos nosso currículo na História e agora já temos que mudá-lo para “curricularizar a Extensão”. Mas todo esse trabalho depois será desfigurado, pois teremos que fazer novos currículos não baseados em disciplinas? Além disso, temo que o “espírito pós-moderno” que orienta esse esvanecimento dos currículos tradicionais acabe desembocando não apenas em mais burocracia (com intermináveis reuniões de discussão das novas estruturas não testadas), mas também em perda de especialização produtiva e potencial estímulo à “tudologia”. A importantíssima colaboração interdisciplinar pode ser estimulada de maneira menos radical e impositiva, me parece.

Acho que temos que tomar cuidado com essas sanhas “reformistas curriculares” por várias razões.

Primeiramente, em minha opinião (mas não apenas minha), o espírito “pós-moderno” que guia muitas dessas propostas é um atraso quando se absolutiza. Contrariamente à própria parte que considero saudável da crítica pós-moderna ao potencial autoritarismo totalitário do moderno, essas reformas vêm como uma imposição de cima para baixo. São obrigatórias, “sem volta”. Acho isso um erro. O “moderno” (tradicional, hoje em dia) tem sim seus erros, como apontam os pós-modernos, mas não se deve “jogar fora o bebê com a água suja”. Devem-se corrigir os erros, mas manter o que é bom. Em vez de impor uma reforma totalizante (que não “tem volta”, não possibilita correção de erros), dever-se-iam realizar experimentos localizados e o que nesses experimentos se revelasse produtivo ser generalizado. Isso é importante, pois nem sempre uma coisa que funciona em um lugar pode funcionar em outro e podemos ter modelos plurais, flexíveis sem perder a espinha dorsal já provada tradicionalmente.

Além disso, há uma técnica do bom gerenciamento que está sendo esquecida aqui. Você pode realizar mudanças usando “carrots” ou “sticks” (a cenoura ou o porrete, estímulos positivos ou negativos). As reformas curriculares atuais estão usando os “sticks” (os porretes), ou sejam, são obrigatórias, não possibilitando outra opção (com todos os perigos daí advindos). Na verdade, você pode obter resultados melhores utilizando os “carrots” (os estímulos positivos).

Eu me lembro que quando o governo Lula quis realizar o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) em 2007, ele não impôs o plano de cima para baixo. Ele simplesmente usou a técnica dos “carrots”: a universidade que aderisse ao Reuni receberia dotações extras para realizar as reformas. Todas as universidades aderiram, pois ninguém queria perder esse dinheiro extra (apesar de eu me lembrar claramente que havia críticas internas ao programa em diversas universidades).

Ou seja, o governo conseguiu o que queria, mas não impôs. Teoricamente se alguma universidade não concordasse com o plano, ela poderia se manter fora, assegurando assim o direito à pluralidade e ao dissenso. Igualmente, em vez das atuais reformas curriculares (perigosas na minha opinião dissidente) serem impostas como modelo único, acho que deveria ser adotado o outro caminho que apontei acima dos experimentos localizados e, caso bem-sucedidos, generalizados através de “carrots” (e não “sticks”) de modo a sempre preservar a possibilidade de autocorreção de rota.

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