Cultura espanhola em São Paulo: de Almodóvar a García Lorca

Por João Eduardo Hidalgo, pós-doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 07/11/2023 - Publicado há 6 meses
João Eduardo Hidalgo – Foto: Arquivo pessoal

 

Está em cartaz desde setembro em São Paulo a última obra de Pedro Almodóvar, um curta-metragem de 31 minutos intitulado Estranha forma de vida (2023). Depois de 22 longas, filmes com metragem comercial, Almodóvar se propôs, segundo entrevista que acompanha este atual curta, a fazer três curtas-metragens. Qual o propósito? Não fica claro.

Ele lançou o primeiro destes planejados curtas-metragens em 2020, A voz humana, com um resultado bastante irregular. A voz humana já aparece em La ley del deseo, como uma peça que a personagem de Carmen Maura, Tina, está realizando, com bom resultado para o desenvolvimento da narrativa da obra. Como trilha sonora desta peça aparece pela primeira vez um intérprete musical brasileiro, neste caso Maysa Matarazzo, cantando Ne me quitte pas (1975), versão de um show seu no Olympia em Paris. O segundo curta é Estranha forma de vida, e pelo terceiro teremos que aguardar dois ou três anos, a média de intervalo entre as obras do cineasta.

Mas quem olha com atenção a obra de Almodóvar vai se lembrar que já temos um curta-metragem mais recente, que ele realizou vinte anos depois do seu último exemplar no formato: La concejala antropófaga, de 2009, de meros sete minutos, que parece sequência deletada de Los abrazos rotos (2009), mas saiu de maneira independente.

O último curta de Almodóvar tinha sido o criativo Trailer para amantes de lo prohibido (1985), feito para um programa de TV chamado La edad de oro, comandado por uma figura mítica, Paloma Chamorro (1949-2017), que promoveu muitos dos artistas do movimento de contracultura que ficou conhecido como La Movida.

O termo La Movida foi criado para nomear o movimento de contracultura que aconteceu em Madri, no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Na verdade, La Movida aconteceu em várias capitais espanholas, em Vigo, Barcelona e em Bilbao, com seus grupos de rock. O movimento é herdeiro da pop art americana, e os grandes centros como Nova York e Londres são irradiadores de uma cultura que valoriza a trivialidade, o efêmero e o estereotipado, os subgêneros, as ex-estrelas, principalmente as muito decadentes. A La Movida espanhola é um movimento de renascimento cultural surgido depois de quatro décadas de uma existência cinza e antiquada.

O ditador Francisco Franco morreu depois de causar muitos danos ao povo e ao país, em 1975, deixando uma Espanha pobre, atrasada e perdida numa realidade que remontava ao início do século 20. Esta nova onda trouxe um grupo de pessoas que não tinha experiência com a música, mas estava disposto a montar uma banda e fazer shows-happenings por Madri e pelos outros centros urbanos da Espanha.

Neste cenário new wave e, como eles dizem, Rocanrol (Rock & Roll), surge Pedro Almodóvar que se junta a Fabio de Miguel (ou Fanny MaCnamara, ou Patty Diphusa), nascido em 1957 em Madri, que frequentava a Casa das Costus (diminutivo de Las Costureras, formada pelos pintores Juan Carrero 1955-1989 e Enrique Naya 1953-1989, um local de reunião) e circulava pela cidade assustando os franquistas e os conservadores em geral. Fábio não era músico e, como Almodóvar, não tinha voz alguma, mas a ideia era mais uma questão estética, de parecer, do que realmente ser. A dupla dinâmica lançou um LP de vinil, chamado Como está o banheiro de senhoras! Antes de ser diretor e lançar seu primeiro filme, Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, em 1980, Almodóvar era cantor e performer.

O mundo moderno criou uma rica gama de referências e, com o desenvolvimento dos meios de comunicação, elas puderam ser difundidas pelo planeta, quase todo o Ocidente tem os mesmos ícones. A marca do sabão em pó; o refrigerante que está em cartazes; revistas; as estrelas de cinema cheias de glamour; os grandes milionários; as personalidades do mundo da música; príncipes, reis, nobres; conteúdos simbólicos, pura matéria de construção poética. Elementos que aparecem em obras que retomam, modificam, acrescentam significados, constroem, segundo Linda Hutcheon, o hipertexto, que abrange as técnicas da citação, citação em abismo (mise-en-abyme), referência. O hipertexto paródico incorpora os sentidos do referencial e os transforma em outro elemento cognitivo.

Quanto ao método de criação, faz parte do universo Almodóvar usar argumentos, detalhes, personagens de filmes que ele admira na composição de seus roteiros, fazendo citação, incorporando o elemento parodiado à nova obra. E, a partir de 1995, começa a retomar personagens e histórias de sua própria obra, de outro ponto de vista ou com outro tratamento, recurso que eu chamo de autocitação paródica. Por exemplo, a história de Volver (2006) é o resumo do livro da escritora Amanda Gris (Marisa Paredes), que é rejeitado por sua editora no filme La flor de mi secreto (1995). A enfermeira Manuela aparece como personagem secundário neste mesmo filme, para voltar como protagonista de Todo sobre mi madre (1999).

Como já disse, o cinema, e em segundo lugar a literatura, sempre foram fontes fundamentais na criação de Pedro Almodóvar. Elas podem ser somente uma estrutura, que quase não se percebe, como quando em Átame! (1989) Ricki (Antonio Banderas) apresenta sua vida como pontos num mapa para Marina (Victoria Abril) e depois se declara para ela dizendo, que só tem 50 mil pesetas no bolso e quer ser um bom pai para os filhos dela. Esta estrutura repete as do filme Bus Stop (Nunca fui santa, 1956), da fala de Cherie (Marilyn Monroe) para a sua camareira, mostrando onde estava e para onde queria ir (pontos num mapa) e da declaração do apaixonado Bo (Don Murray) para ela. E devemos lembrar que a personagem de Almodóvar, Marina, era uma ex-atriz pornô, que agora estava no mercado de filmes sérios, os mesmos boatos que pesavam sobre o passado de Marilyn Monroe.

Nos últimos anos, principalmente depois de La piel que habito (2011), as artes visuais passaram a ter importância central na narrativa almodovariana, neste filme o diálogo é com a obra de Louise Bourgeois (1911-2010), Guillermo Pérez Villalta, Goya e Velázquez. Em Estranha forma de vida, vemos um quadro de Georgia O’Keeffe (1887-1986), Black Mesa, paisagem mexicana, que não lembra em nada o cenário do filme rodado em Almería, Espanha. Também vemos logo acima da cama do Xerife Jake (Ethan Hawke, 52, com aparência de 69) uma fotografia de Lillie Langtry (1853-1929), atriz e beldade com amantes influentes e famosos. Almodóvar não tem mais os contatos com bares, casas de ambientes, festas, concertos, exposições que costumava frequentar em sua juventude, agora tem que buscar outras fontes de inspiração poética, que muitas vezes beira a mera pesquisa eficiente de material de época e do contexto da obra realizada. O resultado nem sempre é muito inspirado.

Quando estreia no cinema comercial, em 1980, com Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, Almodova já tinha uma trajetória de mais de dez anos como realizador de curtas-metragens, que eram apresentados em verdadeiros happenings no mundo underground de Madri. Neles se sobressaia o particular senso de humor e de narrativa e suas homenagens aos ícones cinematográficos, como Marilyn Monroe e Liz Taylor.

Relembro que, em La ley del deseo, Tina (Carmen Maura) era a atriz da peça La voz humana, de Cocteau, e, como costuma acontecer dentro da narrativa almodovariana, ele retoma situações. Ele confessa que, em Mujeres al borde de un ataque de nervios (1987), pensou a princípio em fazer um filme em que Pepa (Maura) discutiria a sua relação com Iván, que terminava com ela pelo telefone. Com o desenvolvimento do roteiro, o cineasta sentiu necessidade de acrescentar outros personagens, e de um contexto para a história do casal; nasceu então Mujeres. Pepa e Iván são um casal de atores/dubladores que tem uma relação amorosa há algum tempo. Pepa desconfia que Ivan vai deixá-la e se desespera, tenta de todas as formas falar com ele; deixa recados na secretária eletrônica e passa duas noites acordada, buscando-o por Madri, sem sucesso. No meio disso tudo, chega ao estúdio, para dublar Joan Crawford em Johnny Guitar (1954); Iván deixou gravada a voz de galã, Sterling Hayden. O trecho, além de mostrar a dor dos amantes separados, que talvez não mais se reconciliem, também exemplifica a ligação de Almodóvar com o imaginário do cinema. O diálogo escolhido para integrar o roteiro do filme tinha sido recortado de uma reportagem especial sobre os westerns e a obra de Nicholas Ray (1911-1979). Recortar notícias, guardá-las e imaginar que histórias se escondem por trás delas fazem parte do processo criativo de Almodóvar. Ele aparece retratado no método de Leo em escrever seus romances rosa, em La flor de mi secreto, e retorna com Enrique Goded, de La mala educación (2004), que seleciona notícias de jornal para se inspirar e escrever seus roteiros. No que se refere ao processo de dublagem, em Los abrazos rotos, a personagem Pina (Penélope Cruz) seria Pepa, num filme que agora se intitula Chicas y maletas, e como ela, na cena-chave da trama, dubla uma situação dramática.

Johnny Guitar é considerado o melhor western de todos os tempos, e, se atentamos para o roteiro de Mujeres, podemos notar vários confrontos que simulam duelos entre Pepa e Lucía (Julieta Serrano). A inspiração para a sequência dialogada, que parodia o filme norte-americano, nos esclarece sobre a linha narrativa seguida. Os primeiros confrontos, pelo telefone, da maneira como Almodóvar filma, com as duas olhando diretamente para a câmera, criam a ilusão de que elas estão se olhando olhos nos olhos, e nós estamos assistindo em lugar privilegiado. Pepa está no telefone do Estudio Exa, olhando para a esquerda, Lucía está em casa, a insultando, olhando fixamente para a direita, elas se enfrentam fora de campo. Na segunda conversa, as duas olham diretamente para a câmera, e o espectador se sente no meio das duas, em um mesmo ambiente, numa construção originalíssima de campo-contracampo. Finalmente as duas têm seu duelo, com os copos de gazpacho, e armas verdadeiras, que acaba em tiros reais no aeroporto. A disputa amorosa por Iván é similar à disputa de Vienna e sua oponente Emma (Mercedes McCambridge) no filme de Ray.

Este amor de Almodóvar pelo western é retomado em seu último curta-metragem, Strange way of life (2023). Devemos lembrar que o sul da Espanha, a região de Almería foi um cenário muito procurado, pois lembrava as regiões dos grandes filmes americanos no Arizona principalmente, pelos westerns americanos e italianos dos anos 1960 e 1970; muitos edifícios e pequenas cidades cenográficas estão lá até hoje. O italiano Sérgio Leone foi um mestre deste gênero chamado spaghetti western, e existem algumas citações de sua obra em Estranha forma de vida. No início do filme temos um homem cantando com a voz de Caetano Veloso o fado Estranha forma de vida, de Amália Rodrigues, na versão feita pelo artista brasileiro para o filme Fados, de 2007, do mítico Carlos Saura (1932-2023). Igualmente em Tacones lejanos (1991), Marisa Paredes (Becky del Páramo) canta com a voz de Luz Casal a música Piensa en mí; em 2006 Penélope Cruz (Raimunda), em Volver, canta a música tema com a voz de Estrella Morente; Caetano Veloso canta, ele mesmo, Cucurrucucú paloma, versão de seu disco Fina Estampa (1995), em uma festa dentro do filme Hable con ella (2002); neste mesmo filme ouvimos Elis Regina cantando Eu sei que vou te amar. Todas as músicas inferem, ampliam ideias e sentimentos ligados aos personagens e ao enredo de cada um dos filmes, não são acessórios, fazem parte da trama.

Em Estranha forma de vida, os dois únicos personagens minimamente desenvolvidos são o Xerife Jake, Ethan Hawke, um pouco congelado e sem inspiração, lembrando a participação de outro americano em um filme de Almodóvar, Peter Coyote em Kika (1993). Mas Hawke tem talento, coisa que Coyote tem pouco. Já Silva (Pedro Pascal) é o grande personagem do filme, apaixonado, corajoso, complexo, com dúvidas, é o fio condutor da trama. O final é aberto, com uma possibilidade de convivência entre Jake e Silva, mas, na entrevista que acompanha o curta, Almodóvar esclarece que esta possibilidade é quase nula, os dois não ficarão juntos, seguirão trajetórias separadas; lembra as considerações de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) sobre a impossibilidade de dois homens viverem uma longa história de amor, estranha forma de argumento para 2023.

Almodóvar tem olhado com lente teleobjetiva toda sua obra anterior, retomando constantemente ideas e personagens que ficaram em segundo plano, em histórias passadas. A citação das obras de outros cineastas passou para um segundo plano, agora ele mesmo é o diretor parodiado/citado. Nos últimos anos ninguém é mais almodovariano que o próprio Pedro Almodóvar. Esperemos o terceiro curta-metragem para avaliar o período.

Federico García Lorca e Ainadamar

Também em setembro, entrou em cartaz, pela segunda vez em São Paulo, a ópera Ainadamar, do argentino Osvaldo Golijov, com a Orquestra Sinfonica e o Coro Lírico Municipal, encenação e iluminação de Caetano Vilela, e direção musical do popular maestro Roberto Minczuk. No livro da ópera lemos que a personagem que conduz a narrativa é a celebrada atriz catalã Margarita Xirgu (1888-1969), amiga e incentivadora de Federico García Lorca (1898-1936), que deixa a Espanha e se naturaliza uruguaia após a tragédia ocorrida com o poeta e dramaturgo. Xirgu conheceu García Lorca em 1926 em Madri. O dramaturgo ficou cativado por seu talento e lhe deu para estrear as peças Mariana Pineda (1927), que teve os figurinos desenhados por Salvador Dalí (1904-1989). A peça foi um sucesso estrondoso. Seguiram-se as peças La zapatera prodigiosa (1930); Yerma (1934); Doña Rosita la Soltera (1935) e La casa de Bernarda Alba (1935).

Federico García Lorca, que já era um poeta admirado em sua natal Granada, estudava Direito, por influência do pai, mas mudou-se para Madri para estudar na Residencia de Estudiantes, em 1919, e ficou por lá até 1926. A residência, que existe até hoje, foi fundada em 1910 como um centro de cultura e intercâmbio artístico e científico europeu. Nela estudaram figuras como Luis Buñuel, Severo Ochoa, Salvador Dalí, Rafael Alberti e passaram como palestrantes e professores Manuel de Falla e Miguel de Unamuno. Aqui García Lorca e Dalí ficaram muito ligados, sob o olhar atento e um pouco surpreso de Luís Buñuel. Na residência existem alguns arquivos, como o Arquivo García Lorca, sob a coordenação de Laura García Lorca, sobrinha-neta de Lorca. A última vez que passei pela residência, em fevereiro de 2020, a sala da coleção Lorca estava fechada. Lorca já tinha publicado as poesias de Impresiones y paisajes (1918), mas durante o período de estudos madrilenho publica Libro de poemas (1921) e Oda a Salvador Dalí (1926).

Em seu período de plena maturidade funda La barraca, companhia teatral que se movia pela Espanha em um caminhão, com a qual adaptou várias obras teatrais do Século de Ouro espanhol, especialmente de Lope de Vega e Luis de Góngora; e escreveu Bodas de Sangre e Yerma.

A ópera Ainadamar tira seu nome do local onde, supostamente, García Lorca foi executado durante o levante militar contra a Segunda República espanhola. Fica entre as localidades de Alfacar e Barranco de Víznar, em Granada, na Espanha e seu nome vem de uma fonte construída pelos árabes, chamada “ayn ad-dama’a“, ayn olho, fonte e dama’a, lágrimas, pela forma que a água brota do subsolo em bolas redondas que sobem para a superfície.

A ópera tem três atos, chamadas três imagens. No primeiro ato, Xirgu, octogenária, lembra de seu amigo Lorca ao ensaiar uma nova versão da peça Mariana Pinera. Neste ato, vemos um Lorca menino que se impressionou muito com a história de vida de uma mulher libertária de Granada, Mariana de Pinera Muñoz (1804-1831), enforcada por se opor ao absolutista Fernando VII. Lorca sempre fui muito influenciado por figuras femininas trágicas de seu entorno, heroínas, vizinhas, familiares. Daí sua amizade e admiração por Xirgu, que se casou, viveu e encenou o que lhe fazia sentir bem, uma atriz independente e livre. Neste primeiro ato o coro chora por Pinera e adianta uma tragédia que acontecerá em seguida, com o próprio Lorca.

No segundo ato, as características da obra de García Lorca são evidenciadas, com os bailarinos e o coro flamenco, que apresenta o “duende”, o espírito cigano que impulsiona os corpos e as vozes. A cor vermelha, com um recorte do olhar de Lorca, predomina no cenário; ouvimos cascos de cavalo nas pedras, imagem ontológica do flamenco. Um poeta republicano, sexualmente livre e que tem o respeito internacional, é um risco para o novo regime, que depõe um presidente legalmente eleito. Na confusão de pequenos poderes e pequenos ditadores, alguns literalmente bem pequenos, García Lorca é fuzilado em 18 de agosto de 1936 e colocado em uma fossa anônima, com o professor republicano Galindo Gonzáles Dióscoro e dois banderilleros, toureiros de segunda ordem, Francisco Galadi e Joaquin Arcollas.

Aqui faço algumas elucubrações pessoais. Uma das herdeiras dos direitos de autor de Federico García Lorca, Vicenta Fernández-Montesinos García (1930-2023), com seus dois irmãos, Manuel Fernández-Montesinos García (1932-2013) e Concha Fernándes-Montesinos García (1936-2015), morreu no mês passado, em uma residência para idosos em Madri. Vicenta, conhecida como Tica dentro da família, era a mais velha dos sobrinhos de Lorca que estavam na Huerta de San Vicente, Granada, quando foram prendê-lo em 1936. Tica era a última pessoa que tinha lembranças vivas de seu tio Federico, gostava de dizer que lembrava da voz doce dele. Nossas famílias são ligeiramente próximas: minha avó Adela (nome de uma das corajosas protagonistas de La casa de Bernarda Alba) Peralta Fernández tem proximidade familiar. Em 2004, fiquei hospedado durante um curto período no apartamento de Tica, na rua de Gonzalo de Córdoba, em Madri. Fomos algumas vezes almoçar no Restaurante Anaur, a algumas portas de distância do predio de Vicenta. Na época, ela estava escrevendo um livro de memórias que saiu em 2007 com o título de Notas deshilvanadas de un niña que perdió la guerra, e escreveu mais um em 2018, El sonido del agua en las acequias: o primeiro desenrola as lembranças de uma menina que viveu alguns momentos traumáticos, como a prisão e assassinato de seu pai, prefeito socialista de Granada, e em seguida de seu tio, Federico García Lorca. O segunda traz uma das imagens constantes da obra de Lorca, a água, e faz menções às “acequias“, pequenos canais construídos pelos árabes para conduzir a água até pequenas fontes e jardins. Os dois livros têm em comum uma memória bastante construída, uma valorização excessiva de personagens secundários, que viveram grandes momentos trágicos da história espanhola, por estarem onde estavam, ambos têm pouca naturalidade.

Quando conversávamos em 2004, perguntei do local de morte de Lorca e ouvi uma frase já bem fabricada, “en Granada, en un cortijo, cerca de un olivo”, ou seja, Aynadamar. Hoje o local tem, desde 1986, o nome de Parque García Lorca e no centro dele existe uma velha oliveira e ao lado um monumento de pedra em homenagem a García Lorca e todos os mortos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Nas familias andaluzas, como a minha, que vem de Cogollos de Guadix, a meros 80 quilômetros de Fuente Vaqueros onde nasceu García Lorca, as mulheres tecem uma grande teia de informação, de conversas, conselhos e rezas, que fazem girar o mundo. Ouvi delas a história que a família de Lorca foi convidada pelo idoso ditador Francisco Franco (1892-1975), no início da década de 1960, em 1962 especificamente, para voltar para a Espanha. O cineasta Luis Buñuel, grande amigo de Lorca, também recebeu o mesmo convite enquanto vivia no México: ele voltou, realizou Viridiana em 1961 e teve que ir novamente para o exílio, agora na França. Aqui lanço mão de uma pequena ficção, uma tia que chamarei de Luna (imagem recorrente em Lorca, ligada à morte) pode ter me dito que, neste ano de 1962, uma exumação pode ter acontecido, no local que os executores sabiam do enterro, que era feito em um pequeno buraco jogando os corpos uns sobre os outros, aqui um complicador.

Em 2008, li num jornal espanhol que a neta do professor supostamente enterrado na mesma fossa de Lorca, Nieves García Catalán, estava pedindo a exumação dos corpos no local, surpresa (talvez não para mim), a família Lorca não apoiou a ação. Depois de uma petição no Tribunal de Granada, negada, Nieves tentou o Tribunal Constitucional em Madri, também negada. Sobre a falta de apoio dos Lorca, Nieves declarou: “os Lorca não respeitam ninguém”, palavras dela. Em 2021, Nieves García entrou com uma petição no Tribunal Europeu de Direitos Humanos em Estrasburgo, França; não há na rede o desfecho deste pedido. No dia da apresentação para a imprensa de sua ação, Nieves estava acompanhada de Ian Gibson, o maior especialista sobre Federico García Lorca que existe, um autor que faz uma diferença enorme na recuperação e difusão da obra e da vida do poeta.

Pensando no que “me dijo la Luna“, poeticamente posso imaginar uma urna de madeira, com ossos, sendo levada de Aynadamar ou arredores em direção ao cemitério de Fuente VaVaqueros, para o túmulo de um familiar feminino de Federico. Meu último encontro com Vicenta foi no outono de 2004, quando fomos ao Teatro Español em Madri assistir a Doña Rosita la soltera, com Veronica Forqué, com seu limitado talento, vivendo Rosita; a fantástica Julieta Serrano vivendo a tia de Rosita e uma atriz que era uma força da natureza, Alicia Hermida, fazendo uma criada feroz, ligada às forças da magia, que foi um espetáculo. Tica teve um problema no ouvido que a deixou surda, ela tem um telefone especial para falar e lê os lábios dos interlocutores. Dei o texto durante toda a peça de Doña Rosita la soltera. Reproduzir as falas da estridente Forqué foi muito difícil, ela estava totalmente fora do personagem e seu registro vocal é doloroso para os ouvidos sãos, o resto do elenco estava fantástico. No aplauso final todos foram ovacionados, com uma exceção.

No terceiro ato ou imagem da ópera Ainadamar, Xirgú e Lorca se encontram novamente, na lembrança da atriz ele nunca morre, nem no imaginário ocidental moderno, sua poesia e obra mudaram o cenário de sua época e da modernidade. Granada e a região da Andaluzia, com sua herança moura e principalmente cigana, seus ambientes, sua música, dança, histórias de amores e tragédias, o perfume do limoeiro, do alecrim estão aprisionados em poemas e em cenas de suas peças, prontos para serem libertados pela ação de um novo leitor ou espectador. O ofício do escritor e da atriz que dão sua voz e seu corpo para personagens que se tornam eternos são a base desta ópera Ainadamar, que trouxe um sopro de jasmim, limões e alecrim para as nossas almas. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com seu Departamento de Letras Modernas, sempre foi um irradiador da língua, literatura e cultura espanhola, nela aprendi muito sobre Lorca com os professores Valeria de Marco, Isabel Gretel Eres Fernández, José Joaquim Degasperi, e da literatura latino-americana e muito mais até hoje com a professora e colega Maria Zulma Moriondo Kulikowski.

Viva Lorca, Almodóvar e a cultura espanhola.

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