Beatriz Balzi, pianista

Marcos Câmara de Castro é professor do Departamento de Música da USP,
Eliana Monteiro da Silva é doutora em Música pela Escola de Comunicações e Artes da USP

 20/06/2018 - Publicado há 6 anos

Marcos Câmara de Castro  – Foto: Arquivo Pessoal

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Eliana Monteiro da Silva – Foto: Divulgação / ECA – USP

Na primeira vez que vi Beatriz, duas coisas me impressionaram: seus olhos negros e vivos e sua fantástica leitura ao piano. Ela deve ter entrado alguma vez na sala do Instituto de Artes da Unesp onde era professora, ainda no Ipiranga, em São Paulo, enquanto eu e o Fernando Carvalhaes, por volta de 1985, líamos meu ciclo de canções O Rei Menos o Reino, sobre poemas de Augusto de Campos, na medida em que ia sendo composto; cada semana eu trazendo uma parte nova para ensaiarmos.

Escrevi e dediquei a ela o meu Movimento Eterno, também para piano solo, de três páginas, e marcamos um encontro. Ela colocou a partitura sobre a estante do piano; passou o olho com atenção, sentou e tocou-a inteira como se já a conhecesse, explicando-me que adquirira essa habilidade quando Ginastera chamava-a para ler seus rascunhos, ainda na sua Argentina.

Quando fui curador de música do Centro Cultural São Paulo, ela esteve comigo para marcarmos um recital com seus amados compositores latino-americanos e, já com 60 e tantos anos de idade, falava de seu namorado como uma adolescente.

Depois de examinar minhas partituras para piano solo, escolheu E pur si muove ‒ e não a que eu lhe tinha dedicado ‒ para integrar seu CD número VI, e ela se apropriou de tal maneira da partitura que entendia o final diferentemente de mim, passando a tocá-lo de seu jeito ‒ o que muito me lisonjeou. Quando viu o Caio Pagano tocá-la do meu jeito, veio me pedir desculpas num gesto de tamanha humildade que me comoveu.

Eu respondi dizendo que o seu final já estava incorporado na partitura e que ficaria à escolha do intérprete. Afinal, nunca acreditei na autonomia da obra musical (este “parêntese na história da humanidade”, como diz Roger Caillois) e apenas forneci material para a sua magnífica performance.

Quando ela gravava no estúdio da Companhia do Gato, saudava-o dizendo: “Por quais telhados você tem andado?”. Sempre disponibilizou, generosa, suas partituras raras aos colegas e dizia que o ser humano tinha evoluído muito pouco.

Graças a Beatriz, a Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) resolveu me dar um prêmio, em 1986, quando ela acompanhou o Fernando em O Rei Menos o Reino, no auditório do Conservatório do Brooklin, do saudoso Sígrido Levental, e chamou a Letícia Pagano para assistir e indicar-me para o prêmio de Melhor Obra Experimental. Ela sempre me mandou os programas em que tocava aquelas minhas músicas e também o meu Poema del Cuarto Elemento, no Brasil e no exterior.

Em 2000, foi ela que ganhou o prêmio APCA de Melhor Instrumentista e, no dia da entrega, no Teatro Municipal de São Paulo, fez questão de ficar até o final só para ver o galã Tarcísio Meira.

Em 2001, eu e meu orientador Mario Ficarelli começamos a escolher a banca da minha dissertação de mestrado e fomos unânimes em escolher seu nome para titular. Telefonei, ela relutou; Ficarelli insistiu e ela aceitou, depois de uma longa conversa numa manhã de domingo. Uma semana depois, às vésperas da defesa, sua irmã nos ligou dizendo que ela estava internada e não poderia mais fazer parte da banca. Em poucos dias, um câncer de pulmão recém-detectado matou-a impiedosamente. E ela nem fumava.

Beatriz não teve filhos, mas sua morte foi chorada por muitos e deixou órfã uma legião de alunos que hoje figuram na cena musical profissional ‒ entre os quais, Eliana Monteiro da Silva, autora da tese Beatriz Balzi e o piano latino-americano e colaboradora neste artigo.

 


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