Alegações sobre falhas nas urnas eletrônicas não têm fundamentação e rigor técnico – e qualquer pessoa pode verificar isso

Por Marcos Antonio Simplicio Junior e Wilson Vicente Ruggiero, professores da Escola Politécnica da USP

 15/12/2022 - Publicado há 1 ano
Marcos Antonio Simplicio Junior – Foto: Arquivo pessoal
Wilson Vicente Ruggiero – Foto: Leonardo Bitzki

 

A Universidade de São Paulo e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmaram em 2021 um convênio voltado a testar a segurança das urnas eletrônicas, bem como identificar melhorias de segurança e transparência do processo eleitoral de forma geral. Como parte deste convênio, pesquisadores do Departamento de Engenharia de Computação da Escola Politécnica têm acesso irrestrito:

• a duas unidades do modelo UE2015 e três unidades do modelo UE2020;
• documentação correspondente ao ecossistema das urnas;
• ao código fonte da urna e respectivo código compilado para realizar a carga do equipamento, para fins de testes.

Isso permite à equipe de pesquisadores da USP, em colaboração com pesquisadores de diferentes universidades no Brasil e no exterior (entre outras, Universidade Federal de São Carlos e Universidade Federal do Pará), realizar análises diversas sobre o sistema de forma independente do TSE. Ao mesmo tempo, esse acesso e conhecimento do sistema eleitoral permitem avaliar alegações diversas sobre supostas falhas no processo, verificando até onde elas fazem sentido.Nas eleições de 2022, alegações falsas sobre falhas no processo têm sido extremamente comuns. De fato, uma apresentação dessa natureza, realizada pelo argentino Fernando Cerimedo, foi analisada pouco tempo após sua publicação. Como resultado, demonstrou-se que as conclusões da apresentação são completamente infundadas.

Pedido de anulação de votos com base em relatório do Instituto Voto Legal (IVL)

Mais recentemente, o Instituto Voto Legal (IVL), a pedido do Partido Liberal (PL), apresentou um conjunto de relatórios contendo diversas alegações sobre falhas graves no processo eleitoral de 2022. De alguma forma, as supostas falhas justificariam até mesmo a anulação de parte dos votos computados. As críticas se concentram em um documento específico disponibilizado publicamente pelo TSE: os logs das urnas, uma espécie de “diário de bordo” gerado pelos equipamentos durante sua operação. Com menor foco, também são abordadas outras questões não necessariamente relacionadas aos logs das urnas.

Como esses relatórios do PL/IVL envolvem questões técnicas, docentes da USP, UFSCar e UFPA, bem como pesquisadores independentes interessados no tema, decidiram analisar de forma independente essas alegações. O objetivo central foi avaliar se e até onde elas teriam algum fundamento. O resultado dessa análise, apresentado em relatório detalhado disponível aqui, é que as principais conclusões dos documentos do PL/IVL são infundadas, havendo ainda diversas alegações que carecem de rigor técnico.

Para evitar que essas conclusões possam parecer simplesmente uma divergência de opiniões entre grupos, os pesquisadores que elaboraram o relatório tiverem o cuidado de apresentar referências, exemplos e tutoriais no estilo “faça você mesmo”. Assim, qualquer pessoa pode verificar que não se trata de mera opinião: qualquer pessoa pode simplesmente executar os experimentos apresentados para se convencer das referidas incorreções dos relatórios do PL/IVL. Por exemplo, qualquer interessado pode verificar que algo considerado “impossível de fazer” nos relatórios do PL/IVL, não apenas é perfeitamente possível como sequer é difícil.

As conclusões principais (e incorretas) dos relatórios do PL/IVL

As principais alegações dos relatórios do PL/IVL podem ser resumidas em alegações como:

• “os arquivos Log de Urna são inválidos para todas as urnas eletrônicas de modelos antigos não 2020”

ou que

• “não há como realizar uma associação fiel do arquivo LOG com uma urna específica e, para além disso, também não há como relacionar tal arquivo com os demais elementos de auditoria de votos (BU e RDV) supostamente emitidos pelo mesmo equipamento”

ou ainda que

• “Nos arquivos LOG que não contêm o código de identificação da urna eletrônica correto, é impossível correlacionar univocamente esse arquivo LOG com o arquivo BU, invalidando a garantia de integridade do conteúdo do BU”.

Primeiramente, a equipe de pesquisadores da USP, UFSCar, UFPA e parceiros explica o que é o erro no software das urnas que motivou tais afirmações. Essencialmente, a questão está relacionada com a ausência de um código (chamado “ID_UE”) nos logs de alguns modelos de urna: onde deveria estar esse código, único por urna, aparece o valor fixo 67305985.

Em seguida, são analisadas as conclusões dos relatórios do PL/IVL sobre essa questão. O que se demonstra é que não há qualquer fundamento técnico na alegada impossibilidade de correlacionar um log à urna que o emitiu. Na realidade, o que se comprova experimentalmente é que o “ID_UE” não é o único (ou sequer o mais importante) produto gerado pelas urnas eletrônicas para vinculá-las aos arquivos por elas produzidos, ou para verificar sua integridade. Assim, o que fica demonstrado é que qualquer pessoa pode correlacionar certo log com a urna correspondente, independentemente do modelo do equipamento. Além disso, também é possível verificar a integridade dos dados gerados pelas urnas usando as assinaturas digitais disponibilizadas no site do TSE.

Finalmente, são analisadas algumas afirmações errôneas adicionais dos relatórios do PL/IVL. Essas afirmações envolvem: análises estatísticas que chegam a conclusões incorretas simplesmente por partirem de uma premissa sabidamente incorreta (de que as urnas de modelos UE2020 e anteriores foram distribuídas de forma homogênea pelo país); descrições apresentadas de forma dúbia, podendo levar leitores desatentos a crer que dados nos logs de alguma forma afetam o sigilo dos votos, o que não acontece; e a alegada fragilidade do processo eleitoral pelo fato das urnas não terem certificados chancelados pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), afirmação que faz pouco sentido do ponto de vista técnico – e também soa um tanto seletiva, considerando que sites de grandes bancos, como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, também não usam certificados ICP-Brasil.

O relatório completo dos pesquisadores da USP, UFSCar, UFPA e parceiros, juntamente com os tutoriais que permitem a qualquer interessado verificar as conclusões lá apresentadas, pode ser obtido clicando aqui.

* Eduardo Lopes Cominetti, doutorando na Escola Politécnica da USP, Felipe Kenzo Shiraishi, mestrando na Escola Politécnica da USP, Leonardo Toshinobu Kimura, mestrando na Escola Politécnica da USP, Lucas Lago, mestre pela Escola Politécnica da USP, Paulo Matias, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Rafael Nobre Leite, aluno de MBA em Ciência de Dados na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, Roberto Samarone dos Santos Araújo, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Tiago Barbin Batalhão, doutor pela Universidade Federal do ABC (UFABC)


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