Os desafios do presidencialismo de coalisão no enfrentamento da criminalidade violenta

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 09/11/2023 - Publicado há 6 meses

Se para as novas gerações o avanço da violência no Rio de Janeiro é chocante, para as velhas gerações – especialmente daqueles que frequentaram as reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) há cerca de três décadas – não causa a menor surpresa. Quem naquela época assistiu às palestras de Alba Zaluar, Roberto Kant de Lima, Edmundo Campos Coelho e Sérgio Adorno, por exemplo, e mais tarde as apresentações das pesquisas feitas por Maira Machado, Martha Machado e Carolina Ricardo, já sabia que esse aumento da violência seria inexorável caso não houvesse vontade política e iniciativas do poder público para enfrentá-lo.

Aquela foi uma época de paralisia econômica, de desemprego e de aceleração da inflação. Também foi um período de acesso limitado a serviços governamentais essenciais, de carência de políticas públicas universais e eficazes, de falta de uma rede de proteção social e de níveis explosivos de desigualdade. Foi, por isso, um tempo em que os números do IBGE apontavam um aumento de 95% nas taxas de brasileiros do sexo masculino de 15 a 24 anos mortos por armas de fogo (com o Estado do Rio de Janeiro liderando o ranking) e uma elevação no índice de 11,7 homicídios em 100 mil habitantes, em 1980, para 22,2 em 100 mil em 1991; e de elevação expressiva da população encarcerada. Foi, ainda, uma fase de proliferação de pesquisas e projeções mostrando que, para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas, na outra ponta da linha havia uma redução de 2% nas taxas de homicídios; para cada aumento de 1% na desigualdade de renda, os índices de mortes violentas cresciam em 3%; e que, se o acesso ao ensino médio fosse universalizado, as taxas de homicídio no País poderiam ter uma queda de 40%.

Arquivos oficiais, bibliotecas de universidades públicas estão repletos de levantamentos, de publicações da própria Anpocs, de teses acadêmicas e de documentos – todos de excelente qualidade e muitos bastante atuais e em condições de fundamentar políticas públicas – elaborados por respeitáveis institutos de pesquisa e ONGs, como o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), o antigo Iuperj, o Instituto Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Contudo, os problemas então registrados continuam sem solução à vista por diferentes razões – inclusive por omissão irresponsável das diferentes instâncias do próprio poder público. Desde então, as cidades brasileiras cresceram em termos geográficos, ao mesmo tempo em que – como os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro deixaram claro – fugiram do controle em matéria de segurança pública, com forte efeito cumulativo em termos de violência patrocinada e protagonizada pelo crime organizado.

Apesar de tudo o que já foi dito, há um ponto que a meu ver ainda merece destaque: a falta de qualidade em matéria de formulação de políticas públicas no âmbito da segurança resultante do impacto corrosivo do presidencialismo de coalisão no processo decisório em termos nacionais, dificultando o enfrentamento do problema da violência de modo racional e eficaz. Pela Constituição, policiamento e segurança ficam a cargo dos governos estaduais, cabendo ao governo federal promover coordenação e transferir recursos. No entanto, o que está no papel não funciona na prática. No cotidiano do País, sempre há riscos de competências concorrentes, de duplicação de esforços, de indefinição de responsabilidades e de ausência de uma efetiva coordenação em decorrência de pressões políticas e partidárias de entes subnacionais controlados por feudos, facções e corporações empenhados em apropriar recursos públicos para sua clientela.

A título de exemplo, veja-se o que aconteceu no mesmo dia em que foram encontradas algumas das metralhadoras roubadas do Arsenal do Exército, em São Paulo. Para se garantir politicamente, evitar eventuais pedidos de impeachment e aprovar sua política econômica no Legislativo, o presidente da República foi obrigado a demitir a presidente da Caixa Econômica Federal, substituindo uma profissional técnica oriunda da própria instituição pelo nome indicado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Com um patrimônio superior a R$ 122 trilhões, por suas atribuições funcionais, a Caixa Econômica Federal atua em áreas que vão do financiamento da habitação popular e imóveis para a classe média até o financiamento de infraestrutura urbana, construção civil e agronegócio. Ela exerce, assim, um papel decisivo em matéria de políticas sociais voltadas, entre outros, aos segmentos mais pobres da população – principalmente àqueles de que emergem os membros do crime organizado. Este é um problema nacional mas, apesar do peso e da importância da Caixa Econômica para ajudar o governo federal a enfrentá-lo por meio de programas sociais implementados em comunidades, agora a instituição vai desperdiçar recursos em pequenas obras nos currais de oligarcas municipais e regionais.

Se isso já era um problema grave na época em que o chamado presidencialismo de coalisão funcionava a contento, assegurando padrões mínimos de governabilidade responsável, por causa de sua desfiguração ou corrosão funcional nos últimos mandatos presidenciais, o Executivo federal vem se convertendo em um poder sem objetivos e metas suficientemente bem definidos para a redução da violência nas regiões metropolitanas, por exemplo. Cada vez com menos poder de agenda, torna-se quase impossível para o presidente da República estabelecer diretrizes de amplitude nacional, formular estratégias, coordenar ações e definir prioridades de curto, médio e longo prazo. Com os fufuquinhas e fufucões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal apropriando-se de recursos nacionais para destiná-los às suas respectivas bases paroquiais, a qualidade do processo legislativo e a maximização dos recursos para a coletividade vão para o lixo. A predatória fragmentação de verbas debilita a organicidade das políticas públicas. Independentemente de seus arranjos partidários, o Congresso se torna incapaz de contar com uma visão estratégica para o País e, acima de tudo, de ajudar na formulação de políticas de amplitudes nacionais voltadas para o futuro.

Em um texto que se converteu num dos clássicos da sociologia, Max Weber afirmava há pouco mais de cem anos que o Estado não se define por seus fins, mas por seu meio específico: o uso da coação física. Quando o Estado não consegue se fundar na força, que é o “instrumento normal do poder nos limites de determinado território”, o resultado acaba sendo a anarquia. O exercício do monopólio da força física, contudo, não é arbitrário – pelo contrário, com o avanço da institucionalidade jurídica e política no mundo moderno o Estado passou a ter de seguir regras e se submeter a determinados procedimentos formais. Ou seja, passou a ter de agir com base “na validez de preceitos legais e na competência objetiva fundada sobre normas tradicionalmente criadas”, que lhe confere legitimidade legal-racional.

Levando-se em conta o que disse Weber, a atual incapacidade das instituições governamentais de concentrar recursos em programas destinados a evitar que a miséria, a pobreza, a marginalização, a carência e a desproteção reproduzam as condições em que milícias e narcotráfico possam impor sua vontade e sua ordem, o Estado brasileiro se encontra em crise de identidade. Está minado pelos efeitos corrosivos de um presidencialismo de coalisão que favorece o mandonismo local e atropela a ética e a transparência na gestão da coisa pública, ao mesmo tempo em que compromete a representatividade e funcionalidade do regime democrático e a governabilidade de todo o País. Como se espantar com o assassinato de três médicos formados por universidades públicas e por um pequeno bando de militares que tentaram vender armamento pesado do Exército ao crime organizado, para que tivesse maior êxito em sua confrontação com o poder instituído de um Estado contaminado pelas milícias e pelo narcotráfico?

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