O presidente da República e a transparência do STF

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 12/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 15/09/2023 as 16:30

Para um político que ascendeu ao poder defendendo maior participação da sociedade nos órgãos governamentais, nas organizações empresariais, na mídia e nas diferentes esferas da vida comunitária, a afirmação do presidente da República no sentido de que a sociedade não deveria saber o voto individual de cada um dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, como forma de controlar a “animosidade” contra eles próprios e as instituições, não é apenas uma chocante contradição. É, também, uma perigosa demonstração de absoluta falta de cultura democrática e de desconhecimento da própria Constituição que o presidente jurou cumprir.

Concebido em um período de ampliação do acesso à Justiça liderado por movimentos sociais e de maior sensibilização da magistratura para conflitos coletivos, um de seus artigos prevê, justamente, a publicidade das decisões do Judiciário – independentemente de causarem ou não polêmicas políticas e doutrinárias. Chamo atenção para um caso específico, porém ilustrativo. Trata-se do julgamento, por um Tribunal de Justiça, de uma ação que contrapunha ao direito de propriedade o direito de moradia invocado por movimentos sociais. Eis a ementa da decisão: “Levando a realidade de São Paulo à presunção de que favelados são pessoas comuns, pois favelas cada vez mais se estabilizam nesta cidade e que favelados não são necessariamente vadios ou marginais, mas apenas pobres, não há como se afastar a aplicação do princípio da função social da propriedade, mesmo porque não há nos autos prova de que ocupantes sejam marginais do ponto de vista jurídico-penal”.

Na época em que foi tomada, após acirrados debates entre os desembargadores, essa foi uma decisão que abriu o caminho para colocar em novo patamar a interação entre conflitos sociais e decisões judiciais envolvendo ocupação de propriedades privadas. Divulgada por jornais, rádios e tevês, ela se converteu em um dos principais temas das aulas de Teoria do direito, Sociologia do direito, Direito constitucional e Direito civil dos cursos jurídicos. Causou sucessivos debates em entidades de operadores jurídicos. E estimulou ainda a abertura de observatórios de sentenças e acórdãos judiciais criados com base na premissa de que conflitos sociais, econômicos e políticos podem ser funcionais à sociedade, uma vez que constituem o motor transformador da história.

Ao mostrar a instabilidade como traço distintivo da sociedade, os julgamentos desses conflitos evidenciam a importância da função dos tribunais – e, quanto mais públicos forem, mais legítimos e transformadores serão. Na corte do País mencionada pelo presidente da República, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, que é a instância privilegiada de controle da legalidade e da constitucionalidade em situações-limite, essa publicidade já começa na arguição pública – feita no Senado – de cada um dos nomes indicados para ministros da corte por parte do Executivo.

As sabatinas são importantes por mostrar para toda a sociedade as diferenças entre os 11 ministros em matéria de visão de mundo, formação teórica, rigor metodológico, consistência doutrinária e compreensão do alcance das atribuições funcionais que pretendem assumir. Igualmente, a transparência em seus julgamentos é fundamental para assegurar a credibilidade e a recepção das decisões colegiadas como algo constitutivo da ordem social, econômica e política. Também é decisiva para fortalecer a democracia, na medida em que, ao explicitar as motivações das decisões de cada ministro, ela permite que a sociedade compreenda como elas foram tomadas, permitindo assim o aumento de seu nível de maturidade política.

A transparência ou publicidade dos julgamentos também ajuda a compreender que uma corte da importância do Supremo já não se limita mais à resolução dos conflitos. Ao lado de suas tradicionais funções instrumentais, que envolvem o controle social e a segurança do direito, a corte – a exemplo dos demais tribunais do Poder Judiciário – atualmente também exerce funções políticas e simbólicas. As funções políticas provêm de sua condição de órgãos de soberania, de controle social e de garantidores das liberdades e dos direitos fundamentais. Já as funções simbólicas, que incorporam as funções instrumentais e políticas, constituem a reserva de confiança da sociedade na realização de justiça.

Assim, por serem seus julgamentos presenciais transmitidos ao vivo pela TV Justiça, o Supremo veio, nos últimos anos, perdendo sua sacralidade. Se, de um lado, isso levou a uma perda de qualidade das deliberações e submeteu a corte ao que alguns juristas chamam de “cacofonia de 11 opiniões”, dada a preocupação de cada ministro com sua imagem pública e o empenho em brilhar retoricamente na tela, de outro, essa inovação permitiu à sociedade avaliar o desempenho funcional da corte e a qualidade de suas decisões. Entre os sociólogos do direito e as novas gerações de constitucionalistas, a opinião é de que a transparência dos julgamentos transmitidos ao vivo escancarou, entre outros pontos, uma profusão de votos contraditórios, decisões sem rigor conceitual e analítico, argumentos rasos ou inconsistentes, conhecimento insuficiente de doutrina e critérios discutíveis em matéria de impedimento e suspeição.

Qualquer que tenha sido a motivação do presidente, no plano jurídico-constitucional sua proposta de substituição do voto aberto pelo voto sigiloso, como modo de pôr fim à “animosidade” contra os ministros e permitir que possam andar em espaços públicos sem serem provocados e até agredidos, não se sustenta. Algum assessor podia tê-lo informado de que, no plano internacional, há em países democráticos experiências de despersonalização do voto nas cortes supremas, o que permite aos seus ministros debater os casos a eles submetidos e construir um voto majoritário, evitando a simples somatória de votos individuais, como ocorre no STF. Já no plano político, a fala do presidente – cuja primeira indicação de ministro para o Supremo foi de seu advogado pessoal, um profissional sem estatura intelectual e sem envergadura nos meios jurídicos – é mais uma demonstração de que ele vem perdendo rapidamente, em apenas pouco mais de sete meses de mandato, seu capital político.

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