Ameaças à Fapesp e as estratégias de desmonte da democracia

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 24/05/2024 - Publicado há 6 meses

A Fapesp, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, criada em 1960, pelo governador Carvalho Pinto, é o marco inicial do desenvolvimento científico, tecnológico no Brasil.

Qual a origem das políticas científicas no Brasil?

As Forças Armadas, em razão da Segunda Guerra Mundial (1939-45), saíram na dianteira, percebendo a sua importância.

De acordo com Oscar Sala, Diretor Científico da Fapesp, entre 1969-1975,

(…) de forma global, foi após a Segunda Guerra Mundial, primeiro por razões estratégicas e depois, em nome do crescimento econômico e da competição de mercado, a ciência se tornou, de forma irreversível, um assunto de Estado. Este passou a preocupar-se com a integração da pesquisa científica, objetivando, primordialmente, o desenvolvimento tecnológico.

Sala explica as relações entre pesquisa científica e ação política, de acordo com a visão dos anos 1950 e 1960 da década passada. Passados 25 anos do fim do conflito mundial, sobrevivia, nas décadas de 1970 e 1980, um olhar bélico, estimulado pela Guerra Fria.

O imenso esforço de pesquisa acionado durante a Segunda Guerra Mundial em particular o projeto Manhattan, dedicado à produção em particular do primeiro artefato nuclear, e também o radar, sistemas teleguiados, computadores, penicilina tornou a ciência “uma propriedade nacional”, que pode determinar a relação de poder entre as nações e pode contribuir na perseguição de seus objetivos, especialmente nos campos militar e econômico. Torna-se, portanto, importante explorar os resultados da pesquisa científica como mais um meio de ação política: a ciência é então tratada como uma ferramenta ou, mesmo, como mais uma commodity.

A Constituição cidadã

Com a promulgação da Constituição de 1988, encerrava-se o período ditatorial, dando início à Nova República. A Constituição cidadã permitiu a participação de organizações da sociedade civil nas decisões políticas, o Estado interagindo com os movimentos sociais: ONGs, fundações e institutos.

Em 1989, o Estado de São Paulo fortaleceu a Fapesp, destinando 1% da renda liquida tributária do Estado para a instituição.

Mas, o preço da democracia é a eterna vigilância. Perigo à vista 35 anos depois de promulgada a Constituição cidadã.

O projeto de Lei das Diretrizes Orçamentárias para 2025, enviada à Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), no dia 2 de maio de 2024, pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos/SP) não é um fato trivial. Ele permite desvincular 30% das receitas de órgãos e fundações, enfraquecendo a autonomia destas instituições como, por exemplo, da Fapesp e de outros centros de pesquisa ligados às universidades.

A proposta é um indício de uma outra política científica pouco afeita as instituições da sociedade civil, ao Estado Democrático de Direito. Razão que levou diversas instituições da sociedade civil, como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), a Anpei (Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras) e a ABC (Academia Brasileira de Ciências) demonstrarem preocupação com o projeto.

A manifestação de Helena Nader, publicada na Folha de S. Paulo, em 11 de maio de 2024, expressa a gravidade da ameaça:

O novo projeto de diretrizes orçamentarias apresenta uma gravíssima ameaça às pesquisas e iniciativas inovadoras de empresas e instituições apoiadas pela Fapesp.

Justa preocupação.

Liberdade de investimentos: Ciência, tecnologia e humanidades

A política cientifica e tecnológica da Fapesp, ao longo de sua história, foi democrática, apesar das dificuldades enfrentadas. Durante o período da ditadura brasileira (1964-1985) a Fundação sofreu pressões. O relatório produzido pela AESI/USP, para o SNI, sobre a Fapesp, comprovam interferências na instituição por setores vinculados ao regime ditatorial.

Um dos investigados foi diretor-científico da Fapesp, Oscar Sala, físico e professor da USP. A perseguição, constatada em documentos da época, expõe às políticas científicas defendidas por diversos grupos no interior das Forças Armadas. Alguns setores das Forças Armadas, em relação à Fapesp, eram favoráveis às formas de atuação do professor Oscar Sala. Lembravam da sua participação, como físico, na construção de transmissores de rádio portáteis utilizados durante a Segunda Guerra e o defendiam. Já, os setores obscurantistas das Forças Armadas, o acusavam de comunista e defendiam o controle financeiro da Fapesp e a eliminação de pesquisadores e assessores, acusando tanto o professor Sala, como seus assessores, de comunistas.

Utilizar a palavra comunista para acusar, vigiar e perseguir é velha estratégia de guerra. Na verdade, o foco eram as políticas científicas, tecnológicas e culturais levadas à frente pela Fapesp.

As Forças Armadas, em razão da segurança nacional, sempre estiveram alertas para as inovações cientificas e tecnológicas. Com clareza de objetivos defendiam uma política nacionalista de defesa do território e de homogeneização das populações. O DNA desta política é o domínio da tecnologia, a unidade nacional, forjada a ferro e fogo, envolvendo políticas de extermínio das populações originárias, em nome do controle do território.

Não é de se estranhar o fato da extrema-direita, em seus avanços estratégicos atuais, procurar o lastro científico-tecnológico nas Forças Armadas para questionar as urnas eletrônicas. Em razão de sua formação – defesa do território – elas (Forças Armadas) foram as primeiras a compreender, do ponto de vista da tecnologia, as novas formas de manipulação da população, utilizando as redes sociais, as estatísticas, vinculadas a Banco de Dados e a IA, para alcançar seus objetivos.

Controle tecnológico e mentira são armas de guerra

Nota sobre conhecimentos “uteis” e “inúteis”

Estados democráticos constituem politicas cientificas e culturais de forma aberta, diferentemente dos regimes autoritários e ditatoriais. Democracias permitem que diversas instituições, com autonomia financeira e de pesquisa, definam seus diferentes campos de interesse.

Embora a Fapesp, no início do seu funcionamento, tenha dado destaque para as ciências exatas e biológicas, com o passar dos anos incorporou projetos voltados para as Ciências Humanas. Financiou pesquisas em disciplinas vinculadas ou desvinculadas do mercado. Não esqueceu do grego, do latim, do sânscrito, da literatura, da história e tantas outras áreas do saber, com foco nas humanidades.

Mesmo em tempo de democracia são poucas as universidades brasileiras com professores especializados em História Antiga (Grécia e Oriente Médio), arqueologia, latim, grego, sânscrito (entre outras) capazes de formar especialistas em nível internacional. É mérito da Fapesp ter se preocupado com as mais diversas áreas do saber.

A política cientifica da Fapesp foi e é democrática. Feita prioritariamente com fundos públicos. Vários colegas norte-americanos observam, valorizam a autonomia financeira e política da pesquisa no Brasil.

Para fazer um exercício de comparação, relembrem os problemas enfrentados pelas universidades americanas, dependentes de investimentos privado. Observem, diante dos conflitos atuais entre Israel e os palestinos, a pressão dos investidores nas universidades no caso das suas demandas não sejam respeitadas.

Imaginem outras situações similares. Um perigo.

Linguagens, tecnologias e pensamento crítico

Nem sempre é fácil explicar a importância de financiar pesquisas de traduções do latim, de grego, estimular as leituras das fábulas de Esopo, ou justificar a pesquisa pura, sem utilidade aparente. Estes são alguns exemplos. Existem outros. Parábolas, cuja narrativa parte de uma afirmação, e não da dúvida, favorecem a compreensão dos limites do debate atual.

Explico. As fake news começam com uma afirmação. As fábulas (e as parábolas) também partem de uma afirmação, seguida de ensinamentos de ordem moral. Seduzem corações e mentes. Este tipo de narrativa é utilizado nas fake news. Uma narrativa que caminha em sentido inverso é a retórica argumentativa, lugar da dúvida, da construção de hipóteses. As duas linguagens funcionam bem juntas (a narração e a retórica argumentativa), mas exigem treino de construção e de construção.

É grande a importância das linguagens em tempos de celular, tanto a escrita como a visual. Compreender os seus significados exige estudo, praticas educativas, desconstrução sistemática do TikTok, do X (antigo Twitter), do Instagram, entre outras mídias sociais.

Em tempos de cegueira, é bom refletir com gregos. Eles usavam a tragédia (uma forma de narrar) para trazer consciência dos problemas existentes. Uma espécie de tratamento de choque por meio do teatro.

Hoje, inundação, imagem e celular (tecnologia) agem da mesma forma, produzindo uma catarse.

As inundações no Rio Grande do Sul mostram como as tragédias, às vezes, são o único caminho para fazer ver, à moda dos gregos. Sem a tragédia as prioridades dos investimentos no estado provavelmente seriam plantar, colher e vender.

Um exemplo atual da importância da linguagem visual, em tempos de tecnologia, é esclarecedor. No meio da tragédia ambiental no Rio Grande do Sul um cavalo subiu no telhado (letramento visual). O cavalo falou alto. Os cachorros cumpriram o papel do coro, como na tragédia grega: uivaram e choraram durante a noite. A tragédia mostrou as prioridades dadas para os investimentos e o que ficou de lado: gente e bichos. Além do cavalo, resgatado pelos militares, com arte, a tragédia também serve no combate à fake news. Faz ver.

Elon Musk e muitos tecnólogos com bons salários não perderiam tempo com eles, com os cavalos, com os cachorros, com os gregos, com os humanos. Já, os extremistas provavelmente os eliminariam da cena, como sugeriu o informe produzido na USP pela AESI, em 1973, sobre o professor Sala e outros 400 assessores da Fapesp.

Como é bom perder tempo com os gregos.

Viva a Fapesp democrática em seus financiamentos, atenta a construção e desconstrução das linguagens digital, matemática, escrita, sonora, visual, artística, científica, tecnológica, entre tantas outras.

A arte fapespiana da Governança

A Fapesp fez um bom serviço para o Brasil. Reuniu cientistas de porte internacional voltados para uma política científica, rigorosa em termos e metodologias e pesquisa. A instituição não abriu mão da coisa pública. A sua autonomia financeira e a liberdade para gerenciar os projetos são garantidas constitucionalmente. Desde 1989 a Fapesp recebe 1% da receita estadual. Sua governança tem como regra gastar apenas 5% do seu orçamento com atividades meio. Dentre as instituições brasileiras, a Fapesp tem se mostrado, desde a fundação, uma instituição modelo no Brasil e no exterior.

Cito três exemplos, em curso no ano de 2024, para demonstrar a importância de projetos e a sua capacidade de interferir, de forma inovadora, na pesquisa, na ciência e na tecnologia resguardando, cuidadosamente, o lugar das humanidades.

1. A FAPESP lançou no início de abril o Programa para o Atlântico Sul e a Antártida (Proasa), inicialmente com a participação de pesquisadores do Brasil, da Argentina e da França. O objetivo do novo programa é estabelecer uma nova estratégia de financiamento à pesquisa sobre a porção sul do oceano Atlântico e sobre o continente mais frio do planeta. A expectativa é que isso contribua para o fortalecimento e o aumento do financiamento de projetos de pesquisa científica e tecnológica sobre os dois ambientes, realizados por pesquisadores vinculados a universidades e instituições de pesquisa no Estado de São Paulo em colaboração com cientistas de outras regiões do Brasil e de outros países. Outras metas do Proasa são criar uma infraestrutura de pesquisa compartilhada entre pesquisadores de São Paulo e de outros Estados, formar novos cientistas em áreas correlatas e atuar no campo da diplomacia científica.

2. A Fapesp integra a coalizão formada por 16 instituições de pesquisa de todo o mundo e liderada pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, França) para criar um painel científico internacional para subsidiar decisões políticas em defesa do oceano. O Proasa deriva de iniciativas internacionais anunciadas nos últimos anos e voltadas a promover uma agenda transdisciplinar de ciência e ação para a sustentabilidade dos oceanos, impulsionadas pela Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (Década do Oceano), proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para os anos de 2021 a 2030.

3. Em março de 2024, a Fapesp promoveu a Fapesp Week Illinois, na Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, para promover novas oportunidades de cooperação científica e tecnológica entre pesquisadores do Estado de São Paulo e do centro-oeste norte-americano em áreas como saúde e medicina, cidades sustentáveis, agricultura inteligente, clima e bioenergia. Durante a abertura da Fapesp Week Illinois foi lançado o programa Brasillinois, um novo modelo de colaboração em pesquisa entre o Brasil e o Sistema de Universidades de Illinois por meio da construção de conexões em áreas como clima e sustentabilidade, medicina e saúde pública e inclusão social. As apresentações dos pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos trataram de controle de trânsito urbano, práticas de intervenção comportamental em saúde, democracia na América Latina, previsão do clima, controle biológico de pragas, poluição na baía de Santos e outros tópicos. (De Notícias Fapesp/ODS)

Em time que está ganhando não se mexe.

Errar é humano. Repetir o erro, burrice

Embora todo o brasileiro repita a frase, alguns estão decididos, conscientemente, a optar pela burrice. Interferir no que funciona bem no Brasil. Desestabilizar a política cientifica, desvirtuar os usos das tecnologias e desagregar a vida cultural. Trata-se de um projeto da extrema-direita, autoritário. Não é a primeira vez que isto acontece. Ocorreu durante o regime militar.

O SNI expressava os interesses políticos controlando a política científica. Da mesma forma a Abin utilizou, recentemente, mecanismos semelhantes de vigilância para desqualificar a tecnologia das urnas eletrônicas, desmontar políticas de saúde pública (covid), projetos de cultura e artes, bancos de dados (estatísticas) e educação. O objetivo era e é implantar uma política científica sem lugar para os povos originários, para o meio ambiente, para as populações mais pobres, evitando a implantação de um Estado de bem-estar social, com a presença de instituições como o SUS, a Funai, o Inpe entre outras. Os objetivos estratégicos deste projeto era e é “progresso” a qualquer custo.

Estratégias antigas e atuais para desmontar a democracia

1. Perseguir pessoas já contratadas, buscando, por meio do direito administrativo, formas legais, porém ilegítimas, de eliminá-las da máquina pública. O mecanismo foi utilizado pela ditadura e, de forma equivalente, no governo anterior (2018-22). As maiores vítimas foram às populações originárias e o meio ambiente. As mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari, no extremo oeste da Amazônia, expressam esta política.

O relatório da Comissão da Verdade da USP, ao tratar das violências ocorridas nos tempos da ditadura, realizou uma análise destes mecanismos , nomeando as vítimas e os agressores. Método semelhante utilizado atualmente pela extrema-direita.

2. Vigilância de pessoas e instituições é outro exemplo. Antigamente as pessoas eram fichadas e suas histórias detalhadas em milhares de fichas. A ficha do professor Oscar Sala, diretor-científico da Fapesp, que consta da página 341 do Relatório da Comissão da Verdade/USP, Vol 1, incluía sua história de vida, controlada pelos órgãos de investigação.

Hoje, o combate aos “inimigos” é feito mediante o uso das redes, das fake news e de alta tecnologia para espionar. A compra de equipamentos de ponta permite, como no passado, controlar a vida de alguns brasileiros. Trata-se de reprodução de uma antiga estratégia. Para lembrar:

Policia Federal apura suposto monitoramento ilegal durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). O programa espião de monitoramento de celulares FirstMile usado pela Agencia Brasileira de Inteligência (Abin) armazenava dados de alvos no Brasil em um servidor em Israel, sede da empresa responsável pela tecnologia.

3. A mais eficiente das estratégias de ontem e de hoje: controlar o dinheiro. Cortar as verbas para projetos, eliminar técnicos especializados, em razão do termino do contrato e não colocar ninguém no lugar, desmantelando a instituição que se pretende eliminar “democraticamente”.

Estratégia utilizada, durante o governo de Bolsonaro, com instituições voltadas para a preservação dos povos originários, do meio ambiente e eventos culturais voltados para as diversas formas de valorização da cultura brasileira.

Um bom exemplo é o Prêmio Luiz Vaz de Camões de Literatura. Chico Buarque ganhou o prêmio, mas não recebeu. Posteriormente, no governo Lula, o prêmio foi entregue com a assinatura do presidente Lula.

A manifestação de Chico Buarque é um biotônico, fortalece:

Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula.

Evitar a premiação de Chico era um exercício cenográfico da extrema-direita. Estilo grosseiro para chamar atenção e reconfigurar os marcos da cultura brasileira.

Com a palavra, Chico Buarque:

“Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço o gosto de ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como gajo [moço] que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e o cheirinho de alecrim”, disse Chico Buarque, em referência à canção de sua autoria, Tanto Mar.

O desmantelamento das democracias: Universidades e instituições de pesquisa, o primeiro passo

Todos estes procedimentos fazem parte de uma estratégia antiga e atual, utilizadas para fragilizar as democracias e fortalecer as autocracias. Controlar as instituições de ensino, de pesquisas e universidades limitando usos e costumes dentro de parâmetros conservadores. Um cala boca nos educadores, cientistas e artistas por meio de artifícios legais, mas não legítimos.

Fatos ocorridos em 1964. Política científica de exclusão

Em 1964, quando era governador em São Paulo, Ademar de Barros, mediante um dispositivo legal, porém ilegítimo (Ato Institucional), demitiu diversos docentes da USP. O foco era o Departamento de Parasitologia. Um “tiro” nos estudiosos de doenças tropicais.

O professor Erney Felício Plessmann de Carvalho, em seu depoimento à Comissão da Verdade da USP, relembra a política de Saúde Pública desmontada nesta época. Diz ele com relação ao Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP, voltado para políticas públicas de saúde:

Foi o envolvimento do Departamento no combate às endemias brasileiras que lhe deu a fama de comunista, uma vez que o combate e essas endemias envolvia à denúncia da pobreza e das precárias condições sanitárias da população.

Fatos ocorridos em 1974.Política científica de silenciamento da meningite

Segundo o estudo A doença meningocócica em São Paulo no século 20: características epidemiológicas, de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, o período epidêmico da meningite durou de 1971 a 1976. Foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1.600 óbitos. A edição de 30 de dezembro de 1974, do jornal O Globo, divulgou: só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2.500 mil em São Paulo.

O governo militar nos anos 1970, para não ferir a sua imagem optou por esconder uma epidemia de meningite, iniciada em Osasco. O governo proibiu a divulgação dos dados, evitando que a população pudesse se proteger do contágio.

Fatos ocorridos em 2020. Política de silenciamento da covid

O número (aproximado) de mortos na epidemia de covid é conhecido graças a um consórcio da imprensa responsável pela publicação diária dos números de mortos. (Mortos pela covid no Brasil: 712.090, taxa por 100 mil habitantes 1,64).

Foi possível montar um consórcio da imprensa em razão das instituições democrática vigentes no Brasil.

O gerenciamento dos insumos necessários para os hospitais (crise de oxigênio na Amazônia) e a divulgação de uso de um medicamento, a hidroxicloroquina, comprovadamente ineficiente, foram aspectos da política científica levada à frente pela extrema-direita, tendo à frente um militar. Cientistas reconhecidos pela comunidade internacional, comprovaram por métodos reconhecidos pelos pares, a ineficácia deste medicamento.

Política científica em 1973: Vigilância do governo militar na Fapesp

Em 13 de novembro de 1973 foi elaborado um documento sobre as investigações realizadas na Fapesp pela AESI (assessoria Especial de Segurança e Informação). As informações visavam o desmonte da Fapesp e a eliminação de pesquisadores cujo pensamento colocasse em questão a legitimidade do governo militar.

O informe da AESI/USP acusa o professor Sala, diretor-científico da Fapesp, de contar com o apoio de 400 assessores científicos secretos para “dinamizar o trabalho de infiltração marxista no pais”. Dentre os auxílios concedidos pela Fapesp foram nomeados, neste informe, para fins de perseguição vários cientistas e pesquisadores.

Exemplifico a perseguição com alguns tópicos de relatório:

Caso 1:

Auxílio de Cr$ 115 000,00 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieesi), para a obtenção de informações sobre a situação familiar, nível de vida, ocupação e rendimento dos trabalhadores de S. Paulo, a posteriormente divulgar de maneira tendenciosa a situação do trabalhador brasileiro. O referido Departamento é dirigido por Paul Singer, atingido pelo AI-5.

Observe-se como a intenção era desmontar as bases estatísticas e as metodologias de análise de políticas sociais. Atualmente a desqualificação de instituições de pesquisa foi, igualmente, uma da estratégia utilizada para a fragilização do processo eleitoral no Brasil. Trata-se de política científica para desmonte dos Bancos de Dados, utilizada pela extrema-direita.

Caso 2:

Maria Isaura Pereira de Queiros (1918- 2018) é outro exemplo de como se constrói a cegueira. Incomodava a luz do cinema, o retrato da fome ou pesquisas sobre condições de vida na zona rural brasileira. Quanta coisa precisava e precisa ser escondida pela extrema-direita para fortalecer o governo:

“Auxílio ao Centro de Estudos Rurais e Urbanos, que funciona irregularmente junto ao Departamento da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP, dirigido pela marxista Maria Isaura Pereira de Queiros, docente da USP, que através deste órgão difunde ideologias marxistas às outras unidades universitárias e órgãos públicos, para atuação no meio rural. Realizou também pesquisa nos municípios de Santa Brígida, no interior da Bahia, divulgando através de livros e filmes as condições de vida da população local nos seus aspectos negativos”.

Observe-se os mecanismos utilizados para construir o pensamento único, prejudicando as pesquisas sobre a pobreza, a fome, o rendimento dos trabalhadores no Brasil daquela época.

Caso 3:

A Universidade de São Paulo e a Fapesp, no início, contaram com a participação de inúmeros intelectuais europeus. Eles auxiliaram a formação da primeira geração de pesquisadores e fortaleceram os vínculos com instituições estrangeiras, definindo padrões de qualidade. Criaram oportunidades para centenas de estudantes aprofundarem sua formação em instituições estrangeiras.

Jean-Pierre Vernant, professor honorário do Collège de France, membro da resistência antinazista, professor visitante na Universidade de São Paulo e referência indispensável no pensamento historiográfico. Ele era um grande entendido dos gregos e dos seus mitos. Vernant, como todos os membros da comunidade uspiana, foi igualmente fichado pelos órgãos de segurança.

No ano de 1975, o filósofo francês Michel Foucault havia acabado de lançar sua obra, Vigiar e punir e, justamente no mês de outubro daquele ano, estava na USP, ministrando um curso na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. Em função do aumento da repressão e, sobretudo, do assassinato de Vladimir Herzog, Foucault interrompeu o curso que estava ministrando e deixou o Brasil, em um misto de protesto e receio do que poderia acontecer com um francês amante da liberdade em um país que assassinava seus opositores políticos.

Fatos ocorridos em 2019

Em 2019, o então diretor Ricardo Galvão foi demitido do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ao divulgar o aumento do desmatamento na Amazônia naquele ano. Bolsonaro criticou a publicação dos dados científicos e acusou o pesquisador de estar a serviço de alguma ONG. O professor da Universidade de São Paulo (USP) revelou, nas redes sociais, os bastidores de sua demissão. Segundo Galvão, o governo passou a investigá-lo secretamente com o intuito de encontrar algo que justificasse sua queda. (Infoamazônia)

Receita antiga.

“Nessa época, recebi a ligação de uma funcionária do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações]. Ela estava chorando, e disse que um grupo de trabalho do governo estava levantando toda minha vida. Ela também disse que até meu telefone estava grampeado. Não encontraram nada e foram obrigados a me demitir, passando pela vergonha de ser um governo que agride a ciência”, escreveu Ricardo Galvão. (Infoamazônia)

Alguma coincidência entre presente e passado no que diz respeito à política científica do Estado de S. Paulo?

Fatos ocorridos em 2024 com a Fapesp

Segundo artigo publicado na Folha de S. Paulo, foi enviado à Assembleia Legislativa pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos/SP), o artigo 22 do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentarias, colocando a Fapesp e outras instituições em perigo, por meio de redução orçamentaria.

Velha estratégia.

Trata-se de não apenas levar em conta a dotação de 1% na Constituição Estadual, mas também considerar um dispositivo das Disposições Transitórias da Constituição Federal que permite desvincular até 30% das receitas de órgão e fundações.

Para estimular os sentidos, recordar, uma música com cheiro de cravo, com a cor de canela e uma pitada de alecrim:

Tanto Mar

(De Chico Buarque. Música escrita e censurada no Brasil, em 1975. O tema é a Revolução dos Cravos, em Portugal, movimento que derrubou o ditador português Antônio De Oliveira Salazar)

Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

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