Uma homenagem a José Eduardo Faria, que nos ajudou a ser juristas melhores

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 12/01/2024 - Publicado há 4 meses

Quem foi bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) de Sociologia Jurídica nas três décadas em que esteve coordenado pelo professor José Eduardo Faria, como eu fui, se lembra de algumas perguntas presentes em todos os processos seletivos para entrada no grupo:

Você lê jornal diariamente? Qual?
De que articulistas você gosta?
Quais seções você costuma ler?
Alguma reportagem recente chamou sua atenção?

Ao formular essas perguntas, Faria obviamente valorizava a leitura dos jornais. E valorizar estar bem informado sobre o mundo para entender e ser um pesquisador em direito queria dizer que… para entender o fenômeno jurídico é inescapável: é preciso entender a sociedade. Porque o direito faz parte da sociedade, é prática social discursiva (para usar um conceito que me é caro).

Essa aparente obviedade pode parecer pequena para quem não foi estudante de uma faculdade de direito. Entre tantas disciplinas ocupadas em entender a organização dos códigos, suas normas e saber quais são as interpretações majoritárias, o olhar histórico, sociológico e político para o fenômeno jurídico é realmente revolucionário.

As aulas, as orientações, a presença do professor Faria na Universidade sempre foram um convite para olhar o direito de uma maneira não puramente normativista ou dogmática. O direito não é só texto normativo, e não pode ser compreendido, analisado e pesquisado assim.

Fui convidada a participar da homenagem às vésperas da aposentadoria compulsória do professor Faria da Faculdade de Direito (FD) da USP, no final do ano passado. Certamente a FD ainda terá a presença do Faria por muitos e muitos anos como professor sênior. Este texto é uma versão reformulada da fala que preparei para a homenagem. Ao pensar no que eu diria, refleti sobre que grandes marcas aquele que foi meu orientador durante a graduação (junto ao PET), mestrado e doutorado tinha deixado na minha forma de realizar pesquisa em direito, na minha forma de ser professora de direito no curso de Gestão de Políticas Públicas. O pensamento flanou por reflexões assim:

Se não fosse o professor Faria, como eu seria capaz de explicar aos meus alunos que a sociedade brasileira pós-Constituição de 1988 e em pleno Estado Social Democrático de Direito (Constituição e Estado de Direito que eu tanto defendo) têm mais pessoas torturadas e presas ilegal e injustamente do que durante a Ditadura? Só a partir da política internacionalmente organizada de “guerra às drogas” e o hiperencarceramento em toda a América Latina ajudam a explicar. Direito e sua aplicação imersos na realidade política e social.

Se não fosse o professor Faria, como eu poderia entender o golpe militar de 1973 no Chile e a interrupção da chamada via chilena ao socialismo do Allende? Como eu saberia que os limites impostos a projetos transformadores e respeitosos às instituições do Estado de Direito são diferentes nas sociedades do centro e da periferia do capitalismo?

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Se não fosse o professor Faria, como eu poderia entender o porquê de, em um período de cinco anos, oito países da América Latina terem aprovado Leis de Acesso à Informação muito semelhantes entre si? Saber que órgãos e articulações políticas internacionais (como é a Parceria para ao Governo Aberto ou OGP na sigla em inglês) formulam normas de “soft law” que promovem mudanças legais quase concomitantes nas regiões em que atuam?

Se não fosse o professor Faria, como eu poderia ter escolhido como objetos de estudo no mestrado, no doutorado, e agora, em um projeto de pesquisa em curso, os ambientes históricos que geraram as constituições de Weimar (Alemanha 1919); Mexicana (México, 1917); Constituinte Brasileira de 1987-88; e Chile (2021-2023)? Já ouvi de constitucionalistas que processos constituintes não são Direito Constitucional porque… afinal de contas ainda não há uma constituição. Que bom que a história e a sociologia do direito (e uma visão interdisciplinar para esse objeto de estudo) possibilitam a pesquisa sobre contextos históricos que geraram novas constituições e as marcas que esses contextos históricos deixam em seus textos.

Além disso, eu especificamente compartilho de algumas perguntas fundamentais com meu querido orientador:

Como muda o direito quando a sociedade muda?

O direito pode ser ele mesmo um vetor de mudança, uma trincheira de luta, uma forma de dizer desejos de transformação social? É a forma jurídica – e as instituições competentes para fazer novo direito e interpretá-lo – lugares para fazer a disputa por uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais garantidora de direitos e dignidade?

De tudo que estudei até hoje, acho que o direito – normas jurídicas produzidas e interpretadas pelas instituições do Estado de Direito moderno – guarda sim essa pretensão altiva, a de fazer parte de complexos processos de mudança social.

Por isso e por muitas outras reflexões que ele suscitou nos processos de ensino e orientação que digo ser uma responsabilidade e um orgulho poder escrever um texto em homenagem ao professor José Eduardo Faria.

Sei que faço essa homenagem não apenas em meu nome, mas em nome de muitos de seus estudantes e orientados, com quem você compartilhou esta forma específica, ampliada, interdisciplinar e complexa de olhar para o fenômeno jurídico:

Muito obrigada por ter nos convidado a ser juristas (professores, promotores, advogados, defensores, pesquisadores, jornalistas…) capazes de olhar e pesquisar a complexidade, juristas melhores.

Muito obrigada.

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