A cooperação e a solidariedade na elaboração de um projeto de bem-estar coletivo para o Brasil

Por Alexandre Macchione Saes, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 07/11/2023 - Publicado há 6 meses

Há cerca de um mês, a Universidade de São Paulo se reuniu para a segunda edição do evento USP Pensa Brasil, um evento com intensa programação, reunindo atividades de Pró-Reitorias, museus, unidades, corpos artísticos-culturais e coletivos da Universidade.

Em 2022, no contexto da celebração dos 200 anos da Independência do Brasil e dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, inauguramos a série USP Pensa Brasil recuperando a tradição de nosso pensamento social brasileiro, mas sugerindo ressignificar as interpretações do País à luz dos desafios do presente, por meio da questão: “como pensar o Brasil no século 21?”.

Um ano desafiador, em que o processo eleitoral ressaltou ainda mais as crises vividas por nossa geração, de sua dimensão econômica, social, política, ecológica, em que o violento discurso contra a ciência, a democracia, a cultura e o meio ambiente exigiu uma resposta da Universidade. Foi assim que a USP se colocou no debate, defendendo o Estado democrático de direito no Largo São Francisco em agosto e ressaltando seu papel na produção de conhecimento científico e de pensamento crítico. Nesse sentido, o USP Pensa Brasil foi um dos importantes ambientes, tanto de disseminação de algumas das relevantes contribuições da Universidade para a sociedade, mas acima de tudo, de construção de um espaço de diálogo para a troca de saberes e ideais sobre o futuro do Brasil.

Para o seminário USP Pensa Brasil de 2023 foi lançada uma nova temática para a reflexão: “A produção do comum numa sociedade fraturada”. Reconhecendo que no Brasil e no mundo os processos políticos tem construído sociedades cada dia mais polarizadas; reconhecendo que a ampliação da desigualdade econômica tem produzido cenários de crescente de anomia social; reconhecendo que as mudanças climáticas estão resultando em violentos impactos na vida cotidiana da população, especialmente na vida dos mais vulneráveis; e reconhecendo a dificuldade de construir projetos coletivos, ao longo da semana o evento percorreu propostas de caminhos para superar as fraturas de nossa sociedade.

O “comum” como conceito no campo político, portanto, emerge com força no debate social nas últimas décadas, quase como uma resposta ao processo de expansão das reformas neoliberais e da mercantilização de todas nossas esferas da vida. A ampliação de projeto de Estado mínimo, da cultura do individualismo e do mercado como regulador social estimulou que novas respostas para a organização da sociedade fossem percorridas em espaços e tempos distantes das experiências do capitalismo.

Assim, o conceito do “comum” nos remete aos common fields dos campos medievais, cuja ausência da noção de propriedade privada proporcionava espaços coletivos de produção e acesso às terras e aos bens comuns – das florestas, pastos, rios etc. Mas o comum também pode ser identificado em expressões como da cultura do “bem viver”, dos saberes dos povos indígenas, da economia solidária, da sociabilidade em ambientes comunitários, em que as escolhas se pautam pelos valores coletivos de cooperação e solidariedade, pelo cuidado com a natureza e pela diversidade cultural.

Numa apropriação contemporânea, exigir a retomada dos espaços de produção “comuns”, da existência de práticas, lutas e direitos coletivos, é se opor ao cercamento dos espaços, aos processos de privatizações de bens, serviços e relações sociais. Nesse sentido, a acepção de comum deve ser amplificada e radicalizada, superando a proposição da teoria econômica dominante, de uma “economia do bem comum”, de “bens públicos”, em que setores e atividades seriam regulados e atendidos pelo Estado.

A dimensão crítica do comum nos leva para além da oposição entre Estado e mercado, mas coloca em questão o modelo econômico e social vivido. A racionalidade econômica dominante, de valorização extremada do individualismo, que saiu dos livros de economia e tomou conta da vida cotidiana. Por meio de uma potente ideologia do progresso e da modernização, a varinha mágica do mercado liberou o indivíduo de sua existência como ser social. A métrica da maximização do lucro para a empresa se materializa como bem-estar material e consumismo para avaliar o suposto sucesso deste indivíduo-empresa.

Lá se vão 50 anos da publicação do relatório Os limites do crescimento do Clube de Roma e 30 anos da Eco 1992, no Rio de Janeiro, e teimamos em acreditar na promessa de um crescimento ilimitado; teimamos em acreditar que o desenvolvimento tecnológico pode driblar os impasses ambientais; teimamos em acreditar que as decisões individuais mediadas pelo mercado produzem os melhores resultados para o bem-estar coletivo. Por um lado, a aceleração da degradação ambiental e, por outro lado, a ampliação da desigualdade econômica mundial, que vai produzindo no mundo quase duas sociedades em termos de riqueza (a do 1% versus a do restante da população), são claros indícios que os impasses para o futuro são enormes e urgentes.

Em suma, a segunda edição do USP Pensa Brasil defendeu que, somente pelo compartilhamento de saberes, da cooperação e da solidariedade, e por meio da construção do comum na diversidade, da corresponsabilidade e da experiência de pertencimento, será possível elaborar um projeto de bem-estar coletivo para os brasileiros, com respeito às diferenças sociais e culturais.

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