As 17 maravilhas: onde o humano se sobrepõe aos objetos

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 21/12/2023 - Publicado há 5 meses

Detalhe da instalação as maravilhas*, na Clareira do MAC-USP – Foto: Elaine Maziero

Hoje, as artes visuais convocam à discussão acerca dos modos de ser, pensar e agir no mundo contemporâneo. O fazer de alguns artistas retoma narrativas, reelabora as trajetórias de agentes sociais e, sobretudo, tem como fonte as memórias de grupos que sofrem um permanente processo de apagamento. As práticas de reparação desses criadores despertam pertencimento; colocam em xeque as epistemologias sustentadas pelo universalismo, patriarcado e colonialismo.

Acima de tudo, suas proposições nos ensinam a “desaprender” os princípios das obviedades que são atribuídas às coisas. E, nesse quesito, as propostas de Laercio Redondo revolvem questões sensíveis e complexas; dão a ver citações arquitetônicas, históricas, políticas e sociais; apresentam camadas interpretativas que, aos poucos, se revelam, mas igualmente inquietam.

Suas propostas “brincam” com os sentidos dos objetos. A partir de referências da história, da arquitetura e, sobretudo, da memória coletiva, suas criações lidam, de modo simultâneo, com conceitos que tratam sobre a volta, a reviravolta, a ausência, a presença, a fragmentação e a acumulação. Dividido entre Rio de Janeiro e Estocolmo, o artista tem se dedicado à pesquisa sobre as dinâmicas culturais, jogando luzes sobre personagens e memórias postos à margem pelos discursos oficiais. Cada instalação de sua autoria revela a fusão arte-vida sempre mediada por recursos próprios da arte contemporânea, entre eles, o trabalho colaborativo.

A parceria com o arquiteto Birger Lipinski tem resultado em instalações como The Phantom Collection (2021), no Södertalje Konsthall, na Suécia. A “Coleção Fantasma” fez menção ao projeto Folkhemmet, que nos anos de 1930 aproximou a linguagem do design à sociedade sueca. Composta de displays e projeções coloridas, a instalação convidava o visitante ao espaço expositivo. Ao entrar, a descoberta: as grandes projeções eram, de fato, provenientes das prateleiras iluminadas e preenchidas com peças de vidro e cerâmica – uma coleção de utensílios que contavam a história do design sueco nos últimos 100 anos. Somando-se aos artefatos e às sombras, a voz de um colecionador fictício que, no fundo, atribuía mais significados ao ambiente.

Em as maravilhas* (2023), tem-se nova colaboração entre os artistas. A instalação integra a programação A Clareira, presente no térreo do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, até o fim de janeiro de 2024. É um convite a refletir sobre tantos temas e formas que acaba por renovar o conceito de “obra aberta” de Umberto Eco – são referências mais do que sobrepostas; são emaranhadas. São dimensões que evocam, por exemplo, a tradição do retrato, o corpo, os objetos, as memórias afetivas, o movimento, o fino equilíbrio, a relação espaço-obra-público, enfim, indeterminações poéticas (e que não necessariamente surgem nesta ordem).

À primeira visada, encontra-se a descrição da proposta. São 17 esculturas móveis (móbiles) que distinguem personagens do nosso cenário cultural: Anitta, Bidu Sayão, Brenda Lee, Clara Nunes, Chiquinha Gonzaga, Clementina de Jesus, Clóvis Bornay, Elke Maravilha, Elza Soares, Hélio Oiticica, Leila Diniz, Linn da Quebrada, Luz del Fuego, Madame Satã, Maria Bethânia, Ney Matogrosso e Simone Mazzer. São corpos performáticos e disruptivos que se relacionam com o gênero, orientação sexual, racialização e diversidade. São corpos públicos e políticos que desafiaram (e continuam desafiando) os conservadores padrões sociais e os códigos heteronormativos; sem haver, no entanto, qualquer representação de um corpo no espaço expositivo, a discussão se coloca diante do público.

As 17 esculturas dinâmicas promovem a participação do visitante, envolvendo as tessituras de personagens da vida cultural brasileira. Nesses móbiles, a lembrança dos corpos (sem o corpo presente); a profusão de objetos em equilíbrio em varetas de madeiras; a suspensão de memórias, dos embates e subversões de corpos-políticos insurgentes da história e da cena atual do Brasil.

Os móbiles apresentam diversos e delicados objetos distribuídos no suporte de madeira – cada objeto, seu peso, sua forma, suas cores – num sensível jogo de equilíbrio. São contas, conchas, búzios, penas, plumas, taças, bolas de vidro, simulacros de plantas e frutas, entre outras peças. Para cada personalidade, seu móbile, seus objetos – que estão longe de serem óbvios ou caricatos, mas a referência dos objetos leva à memória da essência daquela corporeidade.

A inspiração para esses retratos dinâmicos veio de experiências anteriores dos artistas, tais como os móbiles dedicados a Carmen Miranda e a Josephine Baker – personalidades unidas pela relação com a música, com a voz e a dança, o que no fundo tornou-se critério de seleção para os 17 novos sujeitos. E como não achar interessante que, destes, ao menos declaradamente Leila Diniz e Madame Satã, reverenciavam “a pequena notável”.

Completam a instalação 17 biografias. E aqui peço desculpas por não ter mencionado antes: me conecto às maravilhas* porque escrevi esses pequenos textos. A cada novo personagem selecionado, o frio na barriga em ser responsável pela descrição textual daquele corpo-vida. Mas a sensação foi logo dirimida quando vi a soma (textos e móbiles) capaz de contar narrativas tão densas. Ao menos, as minhas memórias afetivas ligadas aos 17 personagens estão lá. E parece que as de muitas outras pessoas também se fazem presentes.

Numa segunda visada, observam-se as alusões espaciais: as maravilhas* estão, como já adiantamos, no térreo do MAC – mesmo lugar onde estava exposta meses atrás a escultura móvel A viúva negra (1948), de Alexander Calder – um grande móbile pairando sobre as cabeças do público do museu. O equilíbrio, a fantasia e o lúdico são ecos das propostas deste artista. Permeia, em seus móbiles, a vibração de elementos que se movimentam com as correntes de ar, contribuindo para o onírico, como se suas partes estivessem imersas no éter de um universo sonhado. Marcel Duchamp, em 1949, no catálogo da exposição de Calder, na Société Anonyme, escreveu que suas esculturas móveis são “a sublimação de uma árvore ao vento”.

as maravilhas* estão dispostas como um delicado ambiente imersivo – quase como um jardim. O corpo do visitante está entre as maravilhas* – por um instante arrisco-me a pensar numa estética relacional, mas o térreo, apesar de mais livre do que as salas expositivas, ainda é museu; há limites impostos por essa condição. Notadamente, a presença do corpo do visitante apoia o olhar que perscruta – de fato, a instalação respeita a dimensão humana, os móbiles estão suspensos à altura dos olhos e, sendo assim, uma camada de beleza da instalação está na descoberta dos detalhes em meio à profusão de objetos.

As esculturas são acompanhadas por números ao chão e para cada uma delas, como já dito, há notas biográficas sobre aquele sujeito. As memórias habitam as peças, mas também o texto. E nesse encontro, o corpo do visitante é convocado à coreografia da descoberta. Os números não são sequenciais e tão pouco ordenados por qualquer aparente lógica – o processo é: ver os móbiles, notar os números; na sequência ler as biografias, e retornar às esculturas dinâmicas. No fim, o visitante ganhou um corpo dançante – coincidência ou não, do outro lado da avenida, de onde estão as maravilhas*, encontrava-se a 35ª. edição da Bienal de São Paulo, com o tema Coreografias do impossível.

No térreo do museu, as maravilhas* proporcionam a imersão do visitante num espaço de fantasia e encantamento – algo lúdico porque, entre as esculturas dinâmicas, o olhar perde-se nos detalhes, nos objetos que deslocam a materialidade para o reino dos sentidos. Ao mesmo tempo, os objetos vistos isoladamente nos devolvem ao cotidiano, mas juntos rompem todos esses territórios e, sobretudo, reivindicam memórias de corpos-vidas, de um tempo (que ainda não passou) e de um país, como o Brasil.

A terceira visada não é tão direta, mas é fascinante. A fartura de objetos nos leva aos gabinetes de curiosidades do século 16 – uma referência compartilhada com Laercio Redondo e Birger Lipinski. A formação desses gabinetes, também chamados de “câmaras das maravilhas”, de certa forma, proporcionou maneiras de organizar, ver e sentir o mundo, em especial na expansão ultramarina e, consequentemente, na colonização. Categorias tais como “ raridades do homem”, “bestas de quatro pés” e “outras maravilhas marinhas” sistematizaram um “microcosmo” – um compêndio do universo que se poderia ver de um só golpe, ou ainda, como diria o museólogo Krzysztof Pomian: “um universo reduzido por assim dizer à dimensão dos olhos”.

Nesses gabinetes, os objetos carregavam o maravilhoso, o fabuloso e – talvez, o termo mais adequado, o curioso. À época, inserem o “Novo Mundo” no imaginário europeu pelo viés da alteridade e do exótico. Eram objetos recolhidos não por seu valor de uso, mas por causa de sua invenção ou, ainda, por ser o tangível daquele desejo de domínio da totalidade do Universo. Nesse ato de colecionar as coisas do mundo, quantos objetos perderam o significado porque foram arrancados de suas culturas de origem!? Na África, por exemplo, populações inteiras foram dizimadas, tornando seus objetos enigmáticos.

Dos gabinetes, formam-se os museus como são conhecidos agora. No passado, o termo mouseîon atribuía sentido à tentativa de coligir conhecimentos produzidos pelo homem. Os artefatos que eram reunidos, colecionados e exibidos estavam voltados à busca de um saber universal. No Renascimento, a prática das coleções de antiguidades já se relacionava com a pilhagem e, durante o Iluminismo, então, os “museus universais” tornaram-se os mensageiros e os guardiães da “missão civilizadora” das nações europeias – algo que, atualmente, passa por intensa revisão.

Em as maravilhas*, os artistas “mexem” com pressupostos sérios da história e da história da arte, como, por exemplo, a tradição do retrato, a interação obra-público, o espaço expositivo, as relações sociais, os apagamentos, as narrativas, e ainda mais: garantem as memórias de sujeitos dados às ousadias – aqueles que quebram regras, resistem e insistem em ser e estar no mundo.

As 17 maravilhas de Redondo e Lipinski reparam o processo de expropriação e de apaziguamento das memórias a partir dos objetos – provocam a reviravolta: seus retratos insurgentes descolonizam os corpos-vidas justamente a partir dos objetos; no espaço do museu – fazem o que parece paradoxo – eles asseguram o direito à memória, assim como os modos de ser e de estar no mundo daquelas personagens.

Assim, o humano sobrepõe-se aos objetos.

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