Artistas de erudição popular: primitivismo e colonialidade

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 17/11/2022 - Publicado há 2 anos

“Se você me perguntar o que eu vim fazer neste mundo, eu, um artista, te responderei: estou aqui para viver em voz alta.” Émile Zola.

São muitos os silêncios no universo da arte – e essa, como parte constituinte da sociedade, tem regras que legitimam uns indivíduos e excluem outros. Hoje, alguns artistas e pesquisadores discutem, com rigor e poesia, a história da arte brasileira. Observa-se, especialmente, o crescimento de proposições artísticas e teóricas voltadas às questões que envolvem etnias, gêneros e as relações homem-natureza. Distintos do padrão estabelecido e por isso negligenciados pelas narrativas sobre a arte nacional, esses indivíduos trazem o registro de uma história a contrapelo. Suas trajetórias evidenciam as violências que advêm da narrativa única, que serve à subalternização daqueles entendidos como desviantes da normatividade estabelecida.

No campo das artes, repensar os paradigmas que envolvem a produção, a fruição e a circulação das novas proposições vem sendo exercício árduo frente à complexidade dos sistemas simbólicos que definem os dispositivos sociais. Adjacente, está a premente reconfiguração do mundo sensível, na qual o conceito de “aesthesis” recupera valores relacionados aos processos de percepção, enfatizando a sensação visual, gustativa e auditiva – atributos esmaecidos no século 17, quando “aesthesis” torna-se, sobretudo, a sensação do belo (e, mais ainda, um belo universalizante). Simultaneamente, questionam-se a definição de “arte universal” e colocam-se em xeque as dicotomias entre arte popular e erudita, entre artista e artesão. Então, são cada vez mais frequentes estudos e propostas que examinam os padrões condicionados pela colonialidade. Assim, a história, a crítica e a teoria da arte trazem à luz agentes marginalizados.

No contexto dessa “desobediência epistêmica”, o conceito de primitivo traz diferentes interpretações e grande debate. Somado às investigações etnológicas, no século 20, o termo designa a produção artística que permanece, de algum modo, isolada das “escolas de arte”. Igualmente, é considerada primitiva a arte das crianças, dos doentes mentais, a popular, a pré-história, a naïf, bem como a arte produzida fora da Europa, tais como a africana, a pré-colombiana, a indígena e a das ilhas do Pacífico. Em última análise, essa é uma chave de pesquisa polêmica porque é cercada pela colonialidade que considera primitiva toda manifestação portadora de valores diversos aos vigentes nas sociedades até então hegemônicas.

Caixa de exclusão, o título “arte primitiva” é um desafio espinhoso para críticos, historiadores e teóricos (e não é de hoje) – e isso está menos presente na produção artística em si e mais no modelo adotado para a reflexão acadêmica dirigida ao campo das artes visuais. Algumas denominações, tais como arte incomum, arte bruta, arte ingênua e naïf, não se prendem às poéticas, às temáticas ou aos estilos (algo vinculado ao circuito oficial da arte). Essas categorizações funcionam muito mais como indicador de procedência dos artistas.

A construção de categorias, como “primitivo” e “naïf”, para designar a produção de artistas de erudição popular, na maioria autodidatas ou com pouca educação formal, tornou-se solução imediata voltada à ambição universalizante e à disposição hegemônica da experiência europeia. Faz-se aqui presente a ideia de que somos incapazes de sobreviver sem as conquistas teóricas e culturais europeias – esse pressuposto tornou-se amparo da modernidade e, ao mesmo tempo, é lógica aplicada ao mundo colonial. Colocada sob a chave do “primitivo” ou do “naïf”, as proposições desses artistas não ameaçam o Modernismo, particularmente na sua função de “educar” o olhar e o sentir.

Historicamente, o termo “naïf” (naife adj. do francês. nativo, grosseiro, que está por se aperfeiçoar, bruto; naif, adj. ingênuo) surgiu no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, produzida por autodidatas que não têm formação culta no campo das artes. A produção colocada sob essa chave não se enquadra nos moldes acadêmicos, nem nas tendências modernistas. É instintiva e, nela, o artista expande seu universo particular. O percurso da pintura naïf liga-se ao Salão dos Independentes (1886), organizado a partir das obras desprezadas pelo Salão Oficial, em Paris, em particular com a exibição de trabalhos de Henri Rousseau (1844-1910).

Rousseau, homem de pouca instrução geral e quase nenhuma formação em pintura, em sua primeira exposição, foi acusado pela crítica de ignorar regras elementares de desenho, composição e perspectiva, além de empregar as cores de modo arbitrário. Ele estreou com a obra Noite de Carnaval (1886), no já citado Salão dos Independentes. Nas suas telas, o registro de paisagens que lembram sonhos. Sua produção obtém reconhecimento dos artistas das vanguardas: Gauguin (1848 – 1903); Delaunay (1885 – 1941); Apollinaire (1880 – 1918); Picasso (1881 – 1973), entre outros. Esses artistas veem nele a expressão de um mundo exótico, símbolo do retorno às origens e das manifestações da vida psíquica livre e pura. Reconhecido em Paris, seu trabalho posteriormente influenciou o Surrealismo.

No Brasil, em especial, uma série de artistas aparece diretamente ligada à pintura naïf, como Cardosinho (1861 – 1947), José Antonio da Silva (1909-1996), Chico da Silva (1910-1985), Mestre Vitalino (1909-1963), J. Borges (1935 – ), Djanira da Motta e Silva (1914 — 1979), Heitor dos Prazeres (1898 — 1966), Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974), Waldomiro de Deus (1944 – ), entre muitos outros. Em todas essas trajetórias, a crítica modernista, guardando raras exceções, enfatizou o grupo social desses artistas, em detrimento do fato artístico – a todo momento a reafirmação da sua origem popular. No fundo, uma subestimação de suas potencialidades; sob o pretexto da suposta “simplicidade” e/ou “ingenuidade”, esses artistas foram postos às margens das artes oficiais. Eles foram “acomodados” no âmbito das categorias “primitivo” e “naïf”. Porém, tal como Rousseau, vez ou outra, são resgatados porque é justamente seu uso das cores, das formas ou a escolha dos motivos (ou seja, os índices de sua inadequação) que os tornam autênticos perante o Modernismo.

Sobre esse jogo de validação, evoca-se aqui o percurso de Djanira da Motta e Silva. Aos 23 anos, ela é internada em um sanatório, em São José dos Campos. Continua o tratamento no Rio de Janeiro, e reside em Santa Teresa. Em 1930, instala uma pensão familiar. Torna-se aluna de Emeric Marcier (1906-1990). Frequenta, à noite, o curso de desenho no Liceu de Artes e Ofícios. Nesse período, tem contato com o casal Árpád Szenes (1897-1985) e Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), com Milton Dacosta (1915-1988) e Carlos Scliar (1920-2001). Na sua obra, coexistem religiosidade, diversidade de cenas e paisagens brasileiras. Seus temas são apresentados em desenhos, pinturas e gravuras. Inicialmente nomeada como “primitiva”, gradualmente sua obra alcança reconhecimento da crítica. Como aponta Mário Pedrosa (1900-1981), “Djanira é uma artista que não improvisa, não se deixa arrebatar, e, embora possuam uma aparência ingênua e instintiva, seus trabalhos são consequência de cuidadosa elaboração para chegar à solução final”. De fato, a crítica de Pedrosa recoloca o trabalho da pintora em outro patamar no campo das artes nacionais.

Porém, o resgate das poéticas desses artistas de erudição popular ainda está em processo. E artistas negros presos à chave da “arte primitiva” e “naïf” encontram ainda mais obscuridade. Durante esse ano de 2022, a partir das reflexões que emergiram sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, a mundividência de Heitor dos Prazeres (1898 – 1966), por exemplo, surge como o lado B (aquele menos tocado) dos desdobramentos do “Modernismo heroico”. Filho de um marceneiro e clarinetista da banda da Guarda Nacional e de uma costureira, Heitor dos Prazeres fica órfão de pai aos 7 anos. Sobrinho do pioneiro dos ranchos cariocas, Hilário Jovino Ferreira (1873-1933), ganha do tio seu primeiro cavaquinho.

Aos 12 anos, trabalha como engraxate, jornaleiro e lustrador, vive em companhia do tio Hilário e frequenta a casa das tias baianas, entre elas, Tia Ciata (1854-1924), onde tem contato com músicos, como Donga (1889-1974), João da Baiana (1887-1974), Sinhô (1888-1930), Pixinguinha (1897-1973), entre outros. Apesar dos trabalhos informais, o jovem é preso aos 13 anos, por vadiagem, e passa algumas semanas na colônia correcional de Ilha Grande.

Aos 20 anos, é conhecido como Mano Heitor do Cavaco e, depois, Mano Heitor do Estácio. É um dos pioneiros na composição dos sambas, participando da fundação das primeiras escolas de samba do Brasil. Por volta de 1937, dedica-se também à pintura, tendo alcançado em 1951 o terceiro lugar para artistas nacionais na 1ª Bienal de São Paulo, com a tela Moenda. Ganhou uma sala especial na 2ª Bienal de São Paulo, em 1953. Cria ainda cenários e figurinos para o Balé do IV Centenário da cidade de São Paulo. Todo esse reconhecimento só é permitido porque críticos, tal como Clarival do Prado Valladares (1918-1983), inserem (acomodam) a produção de Prazeres na categoria naif.

No seu repertório, o retrato da vida nas favelas cariocas: crianças brincando de soltar balões e pipas, pular corda, homens jogando sinuca e baralho, jovens em festas juninas. Rodas de samba são temas frequentes em sua tela. Todo o léxico de Prazeres tem sido passado em revista nos últimos anos – a crítica e a teoria têm jogado luzes sobre as preocupações temáticas e o “fazer artístico” deste artista. Ainda hoje sua produção encontra obstáculos em ser reconhecida como pintura afrodiaspórica. Há grande resistência por parte da crítica em reconhecer Prazeres como artista, sem incluí-lo na categorização colonialista, que o reduz ao negro primitivo. Mas artigos, teses e novos estudos já aprofundam essa reflexão e evidenciam sua obra para além dessa categoria.

Sob iguais motivações, encontram-se em pesquisas centradas na produção de Maria Auxiliadora da Silva. De origem humilde, descendente de escravizados, essa pintora passou pelas feiras de artes da Praça da República, no centro de São Paulo, e da cidade de Embu das Artes — lugares de intercâmbio entre aqueles que não encontravam espaços e oportunidades em museus e em galerias. Em 2018, a exposição Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp), trouxe os meandros da vida e obra dessa artista e, especialmente, explorou sua técnica singular: uma combinação de tinta a óleo, massa plástica e mechas do seu cabelo. A partir dessa mistura, a artista construía relevos na tela – sua experiência com o bordado transparece em muitos dos seus trabalhos. Porém, suas origens e o fato de ter sido empregada doméstica eram os condicionantes mais fortes para o enquadramento no primitivo. Os novos estudos somados à visibilidade da mostra no Masp comprovam que seu “fazer artístico” está além da crítica sustentada pelo viés colonial.

Os casos de Heitor dos Prazeres e Maria Auxiliadora são sintomáticos, quando se pensa que novas proposições e abordagens buscam esses hiatos na escrita da história da arte brasileira – reflexo também de um novo perfil de pesquisador que investiga suas memórias e as de sua coletividade. Nessa empreitada, descobre-se que são muitos os artistas silenciados pela história da arte brasileira, seja por sua origem social, seja porque foram rotulados como “primitivistas”. Antes de tudo, a arte é uma experiência da diversidade – admitir isso é ir contra a colonialidade. Busca-se, então, uma arte plena de sentido, extraída de modelos culturais e valores atuantes e comunitários. Enfim, entende-se que a sensibilidade emerge quando estimulada por diferentes propostas.


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