Pós-verdade homeopática: evidências científicas? Nem um pouco

Beny Spira é professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP

 26/05/2017 - Publicado há 7 anos

Beny Spira – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Em resposta à carta enviada pelo médico homeopata Marcus Zulian Teixeira, venho tecer os seguintes comentários.

Em sua carta, Marcus Zulian Teixeira gasta dois parágrafos ameaçando a minha pessoa com argumentos jurídicos. Essa atitude é típica de quem não tem provas científicas para contra-argumentar. Tenta me silenciar com ameaças, diz que eu infringi as leis de calúnia, difamação, injúria e honra, quando tudo o que fiz foi criticar uma velha pseudociência. Isso caracteriza uma covardia intelectual.

Talvez, o motivo de tanta fúria é o título dado à minha carta ao Jornal da USP, que define a homeopatia como “farsa criminosa”. Apesar do conteúdo da carta ser de minha inteira autoria e responsabilidade, o título foi adicionado pela editoria do Jornal da USP. Eu não tive participação nessa escolha, e quando o vi, protestei e o título foi alterado. Apesar de ter absoluta certeza de que a homeopatia é uma pseudociência que beira o charlatanismo, não acho que seja criminosa.

Mas, vamos aos argumentos científicos. Marcus Zulian Teixeira traz dezenas de citações de artigos e livros para tentar comprovar que a homeopatia funciona. Essa massa de referencias pode impressionar e até convencer um leigo, mas não a um cientista ou a um cidadão bem-informado.

Como dito em outra ocasião, a palavra escrita é, hoje em dia, muito barata. Qualquer um pode escrever qualquer bobagem e publicá-la. Em tempos de internet, o desafio é saber separar o joio do trigo, saber diferenciar entre um artigo científico respaldado por evidências e outro vazio de conteúdo significativo, ou pior, de conteúdo falso.

Em sua carta, Marcus Zulian Teixeira gasta dois parágrafos ameaçando a minha pessoa com argumentos jurídicos. Essa atitude é típica de quem não tem provas científicas para contra-argumentar. Tenta me silenciar com ameaças[…]

Para o leitor que não está familiarizado com a prática atual de publicação de artigos científicos, darei uma breve explicação. Para que os resultados de uma pesquisa científica cheguem aos olhos e ouvidos da comunidade científica e dos demais interessados, eles devem ser publicados em uma revista especializada. Há milhares de revistas de divulgação científica em todos os campos da ciência. O que interessa para nós aqui é o fato de que essas revistas variam muito em relação ao seu prestígio. Por exemplo, nas boas revistas, o rigor de avaliação é tão grande, que os artigos são escrutinizados minuciosamente por 2, 3 ou mais cientistas da área, de forma anônima. Essa é a chamada “avaliação por pares”. De acordo com a avaliação dos pares, o editor da revista decidirá sobre o aceite da publicação. Revistas top, como Science e Nature têm uma porcentagem de aceite de menos de 10%. Ou seja, somente 1 em cada 10-20 artigos submetidos à revista são aceitos e publicados. Isso não significa, que todos os artigos recusados sejam de má qualidade. Alguns são, outros simplesmente não atingiram o rigor ou a importância necessária para que sejam aceitos por uma revista de alto conceito como as duas mencionadas acima. De uma forma geral, quanto maior o rigor para a aceitação de um artigo em uma revista científica, maior o seu impacto. Muitas revistas menos famosas do que Science e Nature também têm uma política editorial rigorosa e são tão boas quanto as supracitadas.

Por que contei toda essa história? Porque o médico homeopata Marcus Zulian Teixeira traz em seu artigo no Jornal da USP dezenas de links de artigos científicos, sendo boa parte deles, de sua autoria. A minoria desses artigos foi publicado em revistas com algum rigor de avaliação. Uma exceção, talvez, é o artigo recentemente publicado na revista European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology, que não é uma revista das mais conceituadas na área médica, mas que obedece ao sistema de revisão por pares. Mesmo assim, um comentário bastante crítico sobre o artigo de Teixeira et al. já foi publicado na mesma revista. Os autores espanhóis do comentário, criticaram diversos pontos do desenho, implementação e divulgação do artigo e terminam o comentário reclamando que todos esses pontos deveriam ter sido abordados pelos pares avaliadores, insinuando, portanto, que o artigo não deveria ter sido aceito e publicado pela revista. Até o momento, essas críticas não foram respondidas por Teixeira et al.

A grande maioria dos demais artigos mencionados na carta do médico homeopata Marcus Zulian Teixeira foi publicada em revistas de homeopatia (refs. 18-27, 31-33, 35, 40-44, 49), cuja política editorial parte da premissa de que os efeitos homeopáticos são verdadeiros e onde a avaliação do artigo é feita por…homeopatas, é claro. Essas revistas carecem de credibilidade perante a comunidade médico-científica, sendo apreciadas somente pelos seguidores da prática da homeopatia.

Há diversos artigos sobre a teoria do “rebote” (refs. 18-34), que é um fenômeno farmacológico no qual a descontinuação de determinados medicamentos causa fortes efeitos negativos relacionados à condição original. A utlização do rebote como forma de tratamento pode ser uma hipótese válida, exceto quando a droga utilizada for homeopática, pois nesse caso, seria o mesmo que tratar o paciente com água. O autor quer que acreditemos que o princípio do rebote é o mesmo “similar cura similar” proposto por Hanneman há mais de 200 anos. Porém, essa é uma mera semelhança, assim como a vacinação tem uma semelhança vaga com esse mesmo princípio. A vacina geralmente contém o microrganismo causador da doença ou parte dele, mas aí terminam as semelhanças com “simila similibus curentur”. As vacinas não são ultradiluídas, e o princípio de indução do sistema imunológico com um antígeno, para a produção de anticorpos específicos é bem conhecido, e não tem nada a ver com a homeopatia.

Voltemos à lista de referências, alguns artigos não foram publicados em revistas de homeopatia. Um deles é uma meta-análise publicada na revista Lancet em 1997 (ref. 45), no qual foi dito que “os resultados da meta-analise não são compatíveis com a hipótese de que os efeitos clínicos da homeopatia são completamente devidos ao efeito placebo. Porém, as evidencias encontradas foram insuficientes para demonstrar a eficácia da homeopatia para cada condição clínica”. Vale lembrar que a mesma revista publicou uma meta-análise posterior, em 2005, na qual sugeriu que “a homeopatia acabou”. Um outro artigo “demonstrou” que drogas homeopáticas diminuíram o período de diarreia em crianças de 4,1 para 3,3 dias (uau!) (ref. 46). O artigo da ref. 47, publicado pela confiável Cochrane collaboration, concluiu que “há poucas evidências de eficácia da homeopatia para o tratamento de deficit de atenção/hiperatividade”. Uma revisão da literatura sobre o uso de homeopatia para o tratamento psiquiatrico, concluiu que “o número de estudos sobre o assunto é muito limitado, mas os resultados não impedem que haja algum benefício” (ref. 48). Ffinalmente, uma meta-análise sobre tratamento homeopático individualizado concluiu que “medicamentos homeopáticos  prescritos individualmente podem ter um efeito pequeno e específico.” Os autores ainda concluem que “a qualidade baixa ou desconhecida das evidencias sugere que a conclusão acima seja tomada com cautela”.

A grande maioria dos demais artigos mencionados na carta do médico homeopata Marcus Zulian Teixeira foi publicada em revistas de homeopatia (refs. 18-27, 31-33, 35, 40-44, 49), cuja política editorial parte da premissa de que os efeitos homeopáticos são verdadeiros e onde a avaliação do artigo é feita por…homeopatas, é claro

Uma das alegaões do médico homeopata Marcus Zulian Teixeira e de outros defensores dessa prática é a de que “a seleção de ensaios clínicos que desrespeitaram a individualização medicamentosa foi importante viés na segunda análise da metanálise publicada no Lancet em 2005 e no relatório do governo australiano, estudos citados pelo pesquisador como norteadores para a (falsa) conclusão de que o tratamento homeopático equivale ao tratamento com placebo.”

É interessante notar que no artigo publicado na revista  European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology de autoria de Marcus Zulian Teixeira et al., foi realizado, segundo os autores, um teste clínico duplo-cego e randomizado. Nesse caso, os pacientes do grupo teste receberam todos a mesma medicação, sem possibilidade de individualização (apesar dos autores afirmarem que houve individualização). Quer dizer que se os resultados do ensaio forem “compatíveis” com a premissa homeopática, não é necessária a individualização, mas se os resultados demonstrarem a ineficiencia do tratamento homeopático, então não vale, porque não foram individualizados!?

Não devemos esquecer que as principais alegações da homeopatia, a de que “similar cura similar” e principalmente a da “potenciação por ultradiluições” é tão fantástica que requer evidências extraordinarias. Isso é algo que todo cientista sabe. Se amanhã eu quiser alegar que há seres vivos nos quais o código hereditário é uma molécula lipídica, ao invés de DNA, terei que apresentar evidências extremamente bem fundamentadas, pois esta seria uma alegação fantástica.

A regra que diz que “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias” foi popularizada por Carl Sagan em seu livro O mundo assombrado pelos demônios. A ciência como uma vela no escuro. Em minha opinião, esse livro deveria ser leitura obrigatória a todas as pessoas que se interessam por ciência. Se fosse, talvez não estivéssemos tendo essa discussão sobre homeopatia.

 


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