“Falta racionalidade na alocação de recursos no campo da saúde global”

Deisy Ventura defende ainda ser preciso descolonizar e descentralizar os processos decisórios, não os deixando nas mãos de quem não tem interação direta com a situação

 24/05/2023 - Publicado há 11 meses
Um dos principais marcadores do problema da dispersão de investimento é onde o dinheiro está – Ilustração: Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
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A comissão da revista científica The Lancet abordou o tema Sinergias entre Cobertura Universal de Saúde, Segurança Sanitária e Promoção da Saúde. “A gente já diagnosticava a falta de racionalidade na alocação de recursos no campo da saúde global em cooperações internacionais. A gente já notava que aquele dinheiro, que era investido em segurança, não necessariamente estava levando em conta aspectos de promoção de saúde. Quando chega a covid-19, a gente tem, praticamente, um atestado de que nada disso estava funcionando como deveria estar, com um grande desperdício de recursos e com prioridades que nem sempre são as prioridades dos destinatários do financiamento dos programas, mas sim dos financiadores”, explica a professora Deisy Ventura da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da USP, além de vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP e participante da comissão.

O objetivo era discutir o mau direcionamento de recursos de cooperações internacionais investidos no campo da saúde: “Foi uma enorme desigualdade no acesso às vacinas contra covid-19 e outros insumos. A Organização Mundial da Saúde encerrou a emergência internacional, mas disse: ‘Olha, o problema está muito longe de ser resolvido’. A gente tem que estar preparada já para uma próxima emergência. Dois dos assuntos da Assembleia Mundial da Saúde são a negociação do Acordo Internacional sobre Pandemias e a Reforma do Regulamento Sanitário Internacional. Essas questões não vão ser decididas agora, mas a gente espera que até o ano que vem a gente as tenha”, exemplifica a professora.

Deisy Ventura – Foto: Reprodução/Fapesp

Processo

Um dos principais marcadores do problema da dispersão de investimento é onde o dinheiro está. Segundo Deisy, as organizações internacionais dependem da permissão dos Estados para agirem, porém, muitas vezes, também são guiadas pelo poder da doação dos investidores: “Cada vez mais os doadores influenciam na forma de gerir o dinheiro: para onde vai o dinheiro, como ele deve ser administrado, quem deve ser o canal de aplicação dos recursos. Isso acaba, muitas vezes, invertendo as prioridades de saúde pública dos países destinatários”. 

Porém, não é apenas isso que impacta a área da saúde. Na comissão, o caso da crise sanitária envolvendo o vírus zika no Brasil foi apresentado por meio da campanha Mais Direitos, Menos Zika. A professora explica que, na época, o Fundo das Nações Unidas para a População conversou com governos locais e com organizações não-governamentais para melhor compreender a situação: “Tem uma forma mais construtiva de combater o zika, que é focar nos direitos das pessoas e dizer que não é só culpa do mosquito. Tem muita coisa envolvida: a falta de saneamento básico, de reconhecimento dos direitos das mulheres, da prevenção de doenças. Claro que o controle do mosquito é necessário, mas é muito mais do que apenas controlar a proliferação. Então, essa foi uma organização internacional que criou mecanismos de diálogo com governos locais e a sociedade, contornou algo que vinha predominando, esse exemplo nos parece positivo, já que uma organização foi ouvir o caso concreto”. 

Ela ainda acrescenta: “É  apenas uma pequena campanha num oceano de problemas e respostas equivocadas de saúde, mas ela aconteceu num momento importante e nós achamos que era um exemplo bom para alertar sobre a dimensão internacional, o quanto é importante as entidades internacionais irem conversar com os destinatários e perguntar o que, de fato, eles precisam”.

Impacto

Outro ponto abordado é a necessidade de descolonizar a saúde global: “É chocante como ainda existe essa visão do Norte querendo dizer o que o Sul precisa fazer e acho que nós, no Brasil, somos particularmente sensíveis a essas formas de colonialismo. Nós conseguimos construir o Sistema Único de Saúde, que é uma referência global. Obviamente ele não é perfeito, ele tem as suas discussões, mas ele é um exemplo extraordinário para o mundo. A gente vê colegas dizendo o que temos que fazer, querendo nos ensinar como é que devemos tratar as questões de saúde, como se eles tivessem as fórmulas prontas”, diz Deisy.

A professora coloca a relevância de não deixar o processo decisório nas mãos de locais que não têm interação direta com a situação: “O relatório da comissão diz para descolonizar mentalidades, descolonizar processos decisórios, descentralizar esses processos decisórios: não pode ser um escritório em Genebra que decide o que vai ser feito com bilhões de dólares por ano. Não se pode repetir aquela mesma fórmula de cooperação internacional que a gente já conhece, que tem efeitos muito limitados”. Ela completa: “Nós esperamos dispor de mecanismos de controle de investimentos de recursos que são feitos no campo da saúde, não apenas mecanismos de contenção da propagação de doenças”.

Para saber mais sobre o assunto, acesse: https://jornal.usp.br/artigos/saude-global-comissao-lancet-aponta-urgencia-em-descolonizar-mentalidades-e-processos-decisorios/ .


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