


As palavras do pesquisador Jorge Carrión, impressas em Contra Amazon e Outros Ensaios sobre a Humanidade dos Livros, ressoam ainda mais autênticas em 2024. Pois nem mesmo o crescimento de empresas de tecnologia que comercializam livros foi capaz de abalar o espraiamento e o fortalecimento das livrarias de rua em São Paulo.“Parece impossível escrever sobre o protagonismo do mundo do livro no século XXI, sobre as livrarias independentes e as bibliotecas mais inovadoras, e sobre as constelações de leitores que continuam acreditando no papel sem pensar na Amazon como nossa antagonista”.
Esse movimento foi investigado no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Pedro Tajiki Salles, aluno egresso do curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Em As livrarias de rua e o direito à cidade: um estudo de caso sobre a Livraria Simples, o autor abordou um tema que está na ordem do dia para o mercado do livro e situou o papel dessas livrarias nas grandes cidades, com atenção especial à capital paulista.
Ao pesquisar o papel cultural, social e urbanístico das livrarias de rua, Salles demonstrou como elas podem cumprir uma função estratégica para a afirmação do direito à cidade. Seu principal objetivo é identificar em que medida essas livrarias têm força para promover a diversidade cultural nos centros urbanos.
Com esse propósito em vista, ele inicia sua exposição explorando relatos de livreiros. Primeiro analisa o depoimento de José Luiz Tahan, da Realejo Livros, localizada em Santos (SP), e depois comenta as declarações de livreiros europeus e norte-americanos. Mas a sagacidade de Salles está em realçar o destemor desses profissionais do livro, caraterística fundamental para construírem espaços que dinamizam a cultura nas cidades.
Não por acaso, ele demonstrou como a falência da Saraiva e Cultura impulsionou o florescimento das livrarias de rua nos últimos anos. E foi na esteira desses argumentos que Salles dialogou com as obras das historiadoras Marisa Midori Deaecto (ECA-USP) e Tânia Bessone (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), na medida em que elas investigaram o papel das livrarias brasileiras do século 19 como espaços de sociabilidade. Depois ele identificou o declínio desses estabelecimentos a partir da segunda metade do século 20, período em que ocorreu a descentralização e degradação dos centros urbanos.
A retomada das livrarias de rua de São Paulo ocorreu no início dos anos 2000. O autor abordou esse movimento no capítulo nomeado de A lei do mais fraco. Ali fica claro que a experiência do cliente é um dos elementos centrais para existência e sobrevivência dessas livrarias. Outro quesito apontado pelo autor é a relação delas com o bairro em que estão inseridas. Ele também chamou a atenção para um fator mencionado por Jorge Carrión em Contra Amazon, o qual diz respeito à “curadoria bibliográfica” presentes nos livros vendidos nesses estabelecimentos. Mas Salles conclui que nem mesmo esse modelo de negócio é capaz de livrá-las do frágil mercado livreiro. Por esse motivo, ele defende a implementação de políticas públicas que incentivem a atuação dos livreiros.
É nesse contexto que ele se aprofunda na questão do direito à cidade. Salles defende que as urbes somente garantem esse direito se forem capazes de promover a criação de equipamentos culturais a serem usufruídos pelos cidadãos. As livrarias são um desses locais, razão pela qual as instituições culturais, de caráter público ou privado, têm o dever de encorajar a disseminação e consolidação das livrarias urbanas. Elas são centrais para a valorização da leitura, do livro e dos laços de sociabilidade literária que emergem nesses espaços.
Ao escolher a Livraria Simples como o eixo norteador da pesquisa, o autor foi coerente com o problema central da monografia. Pois ela está localizada numa zona de efervescência cultural da capital paulista e foi idealizada por um livreiro com larga experiência no universo livreiro.
Situada na Rua Rocha, 259, a Simples foi concebida por Adalberto Ribeiro (notoriamente conhecido como Beto) no início de 2016. Ele convidou Felipe Faya para entrar na sociedade, e a livraria foi fundada no final daquele ano. O primeiro funcionário contratado foi Felipe Berigo, que veio a se tornar sócio. E eles se beneficiaram da vasta trajetória de Beto: começou como livreiro na Loyola, em 1998, e depois passou pela Haikai e Cultura antes de edificar sua livraria.
Se é verdade que o autor da monografia peca por não identificar alguma das informações coletadas sobre a Simples, não se pode dizer o mesmo do criterioso questionário construído para a entrevista com o Beto.
É verdade que trabalho ficaria ainda mais rico se o autor tivesse realizado uma observação participante mais ostensiva. Ele poderia acompanhar mais eventos promovidos pela Simples, ou descrever uma espécie de cartografia da livraria, relatando de que maneira a disposição do mobiliário, da bibliografia e da arquitetura proporcionam um ambiente para fisgar clientes e leitores.
Mas os trechos analisados da entrevista foram precisos. Salles abordou o percurso profissional do livreiro, os impasses relativos ao mercado do livro e a importância de livrarias históricas. E deixou claro que elas deixaram de existir por causa da carência de políticas de incentivo à leitura e de programas que apoiem o surgimento e a manutenção dessas livrarias, como acontece na Argentina, na França, na Espanha e em outros países.
Apesar de valorizar a entrevista, ainda caberia explorar outras passagens. Uma delas diz respeito ao diálogo permanente de Beto com livreiros(as) independentes de São Paulo. Outro trecho tem a ver com as críticas do entrevistado em relação às editoras que dificultam as negociações com os livreiros. Até mesmo o comentário sobre o porteiro que trabalha no prédio vizinho da Simples também é digno de nota, justamente por realçar a importância social dessas livrarias.
É justamente por elas servirem como pontos de cultura que Beto e Salles recordaram da histórica Livraria Duas Cidades. Localizada no centro da cidade de São Paulo, entre 1954 e 2006, o estabelecimento foi um marco cultural paulistano e um epicentro para a intelectualidade do país, deixando um relevante legado para o mundo da bibliodiversidade. Tanto os livros importados e comercializados pela livraria quanto os títulos publicados pela editora dignificam o projeto civilizacional da casa. Começaram difundindo o pensamento católico progressista, sobretudo as obras do Padre Lebret e do movimento Economia e Humanismo. Nos anos 1970 publicaram as pesquisas acadêmicas desenvolvidas pela fina flor da crítica literária uspiana – de Antonio Candido a Roberto Schwarz, passando por Walnice Nogueira Galvão, Telê Ancona Lopez, João Luiz Lafetá, José Miguel Wisnik, Davi Arrigucci Jr. e outros. E no meio do caminho editaram a verve dos poetas clássicos, como Henriqueta Lisboa e Murilo Mendes, dos concretos, como Décio Pignatari e irmãos Campos, e dos contemporâneos, cujo caso sublime é a Coleção Claro Enigma (1988-1990), dirigida pelo jornalista, professor, editor e poeta Augusto Massi.
Confesso que fiquei tocado ao ver a Duas Cidades relembrada pela voz de um jovem livreiro. É sinal de que a cinquentenária livraria e editora paulistana ainda permanece na memória de gente que trabalha em prol da cultura. E também é um vestígio da relevância de estudar a história de livrarias e livreiros responsáveis por edificar dínamos culturais que se entranharam no tecido social e urbano, como procurei fazer na minha tese sobre a Duas Cidades e Salles em sua monografia sobre as livrarias de rua.
O TCC foi cuidadosamente orientado pela professora Marisa Midori Deaecto e muito elogiado pela banca. Após a defesa, Salles foi convidado a publicá-lo pela Com-Arte, a editora-laboratório do curso de Editoração. É mais uma demonstração de que se trata de uma monografia madura, escrita por um graduado plenamente consciente do que quer para a sua cidade.
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