Projeto recupera aulas de música clássica de Oneyda Alvarenga

Site Concertos Musicais reconstitui programação educativa da Discoteca Pública de São Paulo realizada de 1938 a 1958

 20/04/2023 - Publicado há 1 ano
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Oneyda Alvarenga, com partituras da Discoteca Municipal ao fundo – Fotomontagem: Jornal da USP – Fotos: Flickr, CCSP e Acervo IEB/USP

Entre 1938 e 1958, Oneyda Alvarenga (1911-1984) procurou estabelecer no calendário paulistano um encontro semanal com a música clássica. Na direção da Discoteca Pública da cidade, a musicóloga, pianista, folclorista, poetisa e jornalista organizou e apresentou, com algumas interrupções, o Concerto de Discos, evento noturno e gratuito no qual obras da música clássica eram tocadas para o público, acompanhadas de apresentações e explicações de Oneyda. Um capítulo meio esquecido das políticas públicas de cultura em São Paulo, à espera do interesse dos pesquisadores.

A pesquisadora Valquíria Maroti Carozze topou o desafio e em 2012 apresentou uma dissertação de mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP sobre a trajetória de Oneyda frente à discoteca, que deu origem ao livro Oneyda Alvarenga: da Poesia ao Mosaico das Audições. Agora, como desdobramento de sua pesquisa, Valquíria colocou no ar um site que procura reconstruir a experiência dessas vivências noturnas de música clássica na Pauliceia.

Trata-se do site Concertos Musicais, que foi criado neste ano. Até o momento, a plataforma reúne 99 programas datilografados das audições, 36 deles acompanhados dos textos que Oneyda preparava para apresentar para o público o compositor ou a obra da noite. Uma documentação recuperada pela pesquisadora no acervo do Centro Cultural São Paulo (CCSP), onde se encontra a discoteca, rebatizada como Discoteca Oneyda Alvarenga, desde 1982.

Da esquerda para a direita, cópia do programa datilografado do 5º Concerto de Discos, evento realizado em 17 de agosto de 1938, com obras de Johannes Brahms e Joseph Haydn; cópia do programa datilografado do 69º Concerto de Discos, realizado em 3 de dezembro de 1953, que inclui textos preparados e lidos por Oneyda antes da audição; e cópia do programa datilografado do 175º Concerto de Discos, realizado em 10 de abril de 1958, em que se vê, anotado à mão, no canto superior direito, a indicação do número de presentes e as condições climáticas (“8 pessoas, noite chuvosa”) – Imagens: dissertação de Valquíria Maroti Carozze
 

Junto às reproduções e transcrições dos programas, Valquíria incluiu em cada concerto links para as obras selecionadas por Oneyda, procurando reconstituir a experiência das audições. Além disso, os 36 textos recuperados receberam gravações, a maior parte delas feita pela própria Valquíria, oferecendo acessibilidade para o usuário.

Transitar pelo site é entrar em contato com a seleção musical de Oneyda, suas preferências e perspectivas educativas. Todos os grandes nomes da música clássica europeia, desde o período barroco até o contemporâneo, mereceram atenção: Bach, Mozart, Chopin, Stravinsky, Schubert, Berlioz, Brahms, Haydn, Schumann, Ravel, Beethoven, Liszt, Strauss, Debussy, Mendelssohn, Tchaikovsky, Vivaldi. Os brasileiros também figuram em suas seleções, com a presença de Carlos Gomes, Henrique Oswald, Alexandre Levy, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos.

Conforme conta a pesquisadora, Oneyda assumiu o comando da Discoteca em 1935, indicada por Mário de Andrade, então diretor do recém-criado Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo. Nascida em Varginha, Minas Gerais, em 6 de fevereiro de 1911, Oneyda chegou à capital paulista aos 19 anos, para estudar no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Discípula de Mário no Conservatório, Oneyda era considerada pelo modernista como uma de suas alunas mais brilhantes. Inicialmente, seu trabalho na discoteca se resumiria a cuidar de documentos e de um acervo de discos destinados a um público formado por músicos eruditos brasileiros.

O Grupo de Estudos de História da Música, no escritório da casa de Mário de Andrade, à Rua Lopes Chaves, em São Paulo. Da esquerda para a direita, Carlos Ostronoff, Sonia Stermann, Oneyda Alvarenga, Mário de Andrade e Climene de Carvalho, em 1934 – Foto: Arquivo do IEB-USP/dissertação de Valquíria Maroti Carozze

Dentre os planos inovadores de Mário de Andrade para a cultura paulistana estava a implantação de uma Rádio Escola, que seria alimentada com o acervo da discoteca. Mas os custos do projeto se tornaram inviáveis e a solução foi reformular o propósito do departamento de Oneyda, transferindo o foco do público de músicos eruditos para a população em geral. Caberia então à jovem levar adiante os projetos educacionais do mestre.

De acordo com Valquíria, Oneyda estruturava os Concertos de Disco em duas partes. Em uma delas, trazia compositores contemporâneos, nomes às vezes não muito conhecidos do público. Na outra, apresentava autores de maior apelo, para agradar aos ouvintes. “Oneyda organiza os concertos por instrumentos, por escolas ou nacionalidades. Falava também por períodos, como Barroco ou Renascimento, mostrando a variedade da música”, comenta a pesquisadora.

No material disponibilizado por Valquíria distinguem-se dois períodos, um deles compreendendo de 1938 a 1943 e o segundo indo de 1953 até 1958. O grande intervalo entre eles corresponde, segundo a pesquisadora, ao tempo em que a discoteca não contou com um espaço para receber o público dos Concertos. É possível notar também que na década de 1950 Oneyda repetiu várias programações da primeira fase, muitas vezes registrando no programa datilografado a qualidade dos discos disponíveis no acervo e indicando a indisponibilidade de reprodução, o que poderia acarretar até mesmo o cancelamento da programação.

Valquíria não encontrou em suas pesquisas o motivo do encerramento dos Concertos, mas os últimos programas localizados datam de 1958. Oneyda permaneceria na direção da Discoteca até 1968, quando se aposentou. Morreu em São Paulo, em 24 de fevereiro de 1984.

“Antes da pesquisa, eu tinha a impressão de que Oneyda era uma pessoa injustiçada”, conta Valquíria. “Mas, quando comecei a ver os documentos, descobri que ela não sofreu  nenhuma injustiça. Ela foi muito festejada, foi considerada fora do Brasil por seu trabalho como musicóloga, foi uma importante etnóloga, além de pianista e poeta. E, para mim, o melhor de seu trabalho são esses textos reunidos no site. Não era só um material didático: ela era uma artista quando fazia esses textos.”

O site Concertos Musicais pode ser acessado neste link (clique aqui).

A Pauliceia de Oneyda

As duas décadas durante as quais Oneyda Alvarenga sustentou sua programação musical-educativa representam um período de transformações na capital paulista. O número de habitantes da cidade triplicou entre 1940 e 1960, saltando de 1,3 milhão para 3,8 milhões, um aumento motivado sobretudo pela vinda de migrantes e o êxodo rural, espelhando o processo de urbanização que se aprofundava pelo País.

Oneyda Alvarenga – Foto: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP

Esse é um período também de efervescência cultural e artística na cidade. Em 1934 é fundada a Universidade de São Paulo, integrando o projeto das elites locais de estabelecer uma liderança intelectual no cenário nacional e voltado para contornar os revezes políticos com Getúlio Vargas.

No ano de 1940, a cidade inaugura o Estádio Paulo Machado de Carvalho, o Estádio do Pacaembu, então o mais moderno da América do Sul. É na mesma década, em 1948, que Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado fundam o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), cujo acervo serviria de base para a criação do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, em 1963.

Ainda no campo das artes visuais, os mesmos Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado criaram em 1951 a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, originalmente vinculada ao MAM. É também em 1951 que Oscar Niemeyer apresenta o projeto arquitetônico do Edifício Copan, encomendado para as comemorações do 4o Centenário da cidade, que aconteceria em 1954. Um símbolo da arquitetura moderna brasileira, o prédio localizado no centro de São Paulo seria inaugurado em 1966 e, entre decadências e revitalizações, se tornaria um marco da paisagem paulistana.

Com os mesmos interesses do 4o Centenário e também com Niemeyer no projeto arquitetônico, acompanhado de Roberto Burle Marx no projeto paisagístico, seria inaugurado em 1954 o Parque do Ibirapuera, para onde o MAM se mudaria definitivamente em 1968.

No campo musical, a seara de atuação de Oneyda, 1943 marcou a formação dos Demônios da Garoa, talvez o mais paulistano dos grupos musicais da cidade. É ainda na década de 1930 que Adoniran Barbosa, cujas composições se tornariam standards do grupo, começa a atuar, em uma carreira que se estenderia até o final dos anos 1970.


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