Paulo Sérgio Pinheiro e os direitos humanos

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 24/10/2022 - Publicado há 2 anos

Prêmio merecido em momento apropriado. O professor Paulo Sérgio Pinheiro recebeu o título de Doutor Honoris Causa, no dia 13 de outubro de 2022, concedido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde foi professor.

O pedido, para a concessão do título, foi encaminhado pelos colegas Francisco Foot Hardman, Armando Boito Jr. e Ângela Araújo, com parecer elaborado por Luiz Gonzaga Belluzo, Maria Victoria Benevides e Sergio Adorno.

Paulo Sérgio Pinheiro, professor aposentado da Universidade de São Paulo, é personagem importante na construção da memória brasileira. Ele lutou pelos direitos humanos, valorizou as virtudes fundamentais para a construção da vida em sociedade.

Prudência, equilíbrio e felicidade (finalidade da ação humana / Aristóteles) são virtudes, formas de civilidade dissolvidas ao longo do século 21.

Vamos retomá-las.

Paulo Sérgio Pinheiro depois da Constituição de 1988

A trajetória profissional de Paulo Sérgio Pinheiro o qualifica. Em um Brasil gerido pela Constituição de 1988, participou e presidiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2003-2011). Na ONU foi expert independente do secretário-geral para o relatório mundial sobre violência contra a criança e relator de direitos humanos no Burundi, Síria, Timor-Leste e Myanmar. Entre 2012 e 2014, integrou a Comissão Nacional da Verdade. Foi ministro da Secretaria de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso (2012-14). Em 2018 participou da fundação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Evaristo Arns.

Paulo Sérgio Pinheiro antes da Constituição de 1988

A atuação de Paulo Sérgio Pinheiro, antes de 1988, o qualifica ainda mais. Advogado formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), doutorou-se em Ciência Política pela Universidade de Paris (França). Em 1974, foi um dos fundadores do Arquivo Leuenroth na Unicamp, universidade onde foi professor. No início da década de 1980, anos de ditadura, participou da constituição da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. Paulo Sérgio, incentivado por Severo Gomes e em parceria com o professor Sergio Adorno, organiza o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), com o objetivo de auxiliar a elaboração de políticas públicas contra a violência.

Paulo Sérgio Pinheiro, ao longo de sua vida, atuou em favor da vida dos outros. Tanto em momento sem liberdades democráticas, como depois, com liberdades garantidas pela Constituição de 1988. É importante notar a diferença entre lutar pelos direitos humanos em época de ditadura, sem habeas corpus e sem garantias constitucionais e defender os direitos humanos com o amparo de um Estado democrático de direito, em pleno funcionamento.

No primeiro caso, a vida está em risco.

Paulo Sérgio dedicou suas energias para os esquecidos, pessoas invisíveis no Brasil e no mundo, vítimas de Estados ditatoriais, autocráticos, indiferentes a qualquer forma de vida, humana, animal e vegetal.

As palavras: direitos humanos

“Direitos humanos”, “ser humano” e “humanismo”, assim como outras palavras, entram e saem da moda. Atualmente direitos humanos servem mais para distanciamentos do que aproximações. Muitos acham melhor evitar. Para não desagradar a plateia, paciência virou resiliência – resistência ao estresse frente ao trabalho competitivo –, racionalidade virou realismo – música no ouvido dos economistas – e egoísmo virou individualismo – disfarçando o Grande Ego da atualidade.

Essas trocas de palavras e tantas outras substituições indicam perda de significados ou substituição de sentido. São sintomas de mudanças. Sugerem outras prioridades como compulsão ao trabalho, valorização da realidade aparente, apego a imagens inanimadas no celular, desvalorizando a vida ou os prazeres singelos experimentados entre os seres vivos.

A história da mudança do sentido das palavras é longa. Capítulo importante foi escrito nos pós-Segunda Guerra. Começou com um personagem fictício: o self made man. Trata-se de um vencedor solitário, agressivo, com pouco apreço às gentilezas, inimigo contumaz do Estado e sócio das empresas produtoras de ansiolíticos do tipo Rivotril.

Este personagem, vencedor, tem pouco interesse em tecer amizades, comungar alegrias e construir afetos com pessoas fora da família e das redes sociais. Sonha com a diminuição da população mundial, defende a sobrevivência apenas dos mais fortes, valoriza a desconfiança, a desigualdade e anseia estar no topo da pirâmide social para saborear o exercício de um poder autoritário, patriarcal e profundamente hierárquico. Gosta de mandar e fazer grosserias. Supõe nunca ter aprendido nada com ninguém. Imagina ter feito tudo sozinho. Venceu pelo próprio esforço. É inimigo ferrenho da igualdade ou equidade. Assim começam as fantasias.

Comparação: direitos humanos no passado e na atualidade

Na minha juventude, anos 70 e 80 do século passado, época em que o Brasil vivia uma ditadura militar, a palavra e o tema, direitos humanos, sugeriam, para alguns, respeito. Denunciar tortura, morte e desaparecimentos era um gesto arriscado. Exigia coragem. Naquela época católicos, protestantes e luteranos, entre outros, consideravam a vida humana um valor. Com o passar dos anos, ao tomar conhecimento das denúncias de mortes, desaparecimentos e torturas, mesmo parte da centro-direita mudou de opinião. Passaram a defender o processo de redemocratização.

O humanismo e um de seus principais instrumentos, a retórica argumentativa, estão na origem da crítica às diversas formas de autoritarismo, de censura e de violência. Retórica argumentativa, debate de ideias e democracia formam uma família de pensamento. São princípios do humanismo, simbolicamente representado por Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Helder Câmara. Do ponto de vista mais geral podemos lembrar o fato de muitos católicos, na época, respeitarem o quinto mandamento, independentemente de suas convicções religiosas.

Hoje o peso e significado da vida mudou (humana, animal e vegetal)?

Creio que sim.

O que a covid diz sobre este tema? E as florestas, os rios, a chuva. O que anunciam as bactérias, as árvores e os rios?

No século passado, muitos brasileiros pavimentaram a estrada da vida defendendo os direitos humanos. Fernando Gasparian usou livros para calçar a estrada com ideias ecumênicas e progressistas. Foi ele o primeiro editor de Paulo Freire no Brasil. Seu jornal, Opinião, foi alvo de atentado a bomba em novembro de 1976. Por quê? Porque ele gostava de gente, queria liberdade para os brasileiros, gostava de conversar e respeitava opiniões diferentes. Aliás não é à toa que o seu jornal chamava Opinião. Sua presença na vice-presidência do Sindicato Nacional dos Editores de Livros representou a manutenção do pensamento crítico, com papel de destaque para a sua editora, Paz e Terra. Duas palavras com significado nos dias de hoje: a Paz, tão almejada, e a Terra tão dilapidada. De acordo com Sandra Reimão, no livro Mercado editorial brasileiro, entre 1970 e 1982, foi vedada a publicação de mais de 300 livros.

Não devemos esquecer de Severo Gomes. Fez coisas na vida que não podiam constar em jornais ou relatórios. Ele conseguiu financiar pesquisa na Unicamp sobre o operariado em pleno regime militar. Foi dele a ideia de criar um centro para o estudo da violência. Naquela época muita gente precisava de ajuda. Eles estendiam a mão. Eu lembro.

Foi a costura realizada por um centro político, com raízes no pensamento humanista, o primeiro espaço para denúncias contra violências, assassinatos e desaparecimentos. Notícias contra as torturas foram difundidas no exterior via católicos, presbiterianos, luteranos, entre outros. Eles lançaram a semente. Atuaram com vigor Dom Paulo, Dom Helder Câmara, amparados por Franco Montoro e tantos outros envolvidos com a redemocratização do Brasil.

Memória é primeiro passo em direção à justiça

Relembrando a década de 80 do século passado.

1983 foi um ano de fome no Nordeste. Não se deve esquecer para não repetir.

“Chegava ao auge o drama dos flagelados da maior seca do século 20, que, segundo a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em cinco anos matou de fome e de doenças da desnutrição 3,5 milhões de pessoas, na maioria crianças. A longa estiagem começou em 1979 e foi se agravando ano após ano. Em 1983, havia 10 milhões de flagelados da seca, o equivalente a mais de um terço da população do Nordeste”, lembra o Memorial da Democracia.

A Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, da qual Paulo Sérgio participou, contribuiu na recomposição do tecido social brasileiro em momento difícil. O eco foi longe. Produziu, na década de 1990, a Ação da Cidadania, Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, coordenada por Herbert de Souza, o Betinho.

Mais uma vez as conexões entre amigos miravam a defesa da vida humana.

Explico por que optei por destacar, entre tantas atividades empreendidas por Paulo Sérgio Pinheiro, a Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (1983).

O primeiro motivo é claro. A Comissão foi criada em período de ditadura no Brasil, portanto era arriscado defender a causa dos direitos humanos.

O segundo motivo diz respeito à importância da organização política de um pequeno grupo de amigos atuantes na vida política brasileira marcada por uma tradição humanista. A Igreja Católica atuou para recompor o tecido social esgarçado pelo longo período de atuação da ditadura. Escolheram a vida como argumento e sensibilizavam juntos a população. Naquela época se matava às escondidas, nos “porões” da ditadura. Alguns setores sociais, ao tomar consciência dos fatos, foram lentamente mudando de posição, deixando de apoiar o regime militar.

O terceiro motivo é o resgate da memória por meio de Paulo Sérgio Pinheiro, artífice político, com sentido nos dias atuais. Seria o humanismo, tão bem concebido pelos gregos, uma modesta picada na floresta para continuar caminhando atualmente?

Hoje, a violência e assassinatos sinalizam a necessidade de mudanças da mesma forma?

Século 21

No Brasil, uma execução com gás lacrimogênio em um carro de polícia é realizada e filmada, com celular (Genivaldo de Jesus Santos, Umbaúba, Sergipe, 25 de maio de 2022). Hoje, os porões não precisam mais existir. Nos Estados Unidos e no Brasil cenas de assassinato por sufocamentos são gravadas, na rua, diante de pessoas, parentes ou amigos das vítimas. A morte filmada no ato produz a prova como espetáculo digital de um crime. Na sequência ocorre ampla divulgação das imagens, com valor no mercado.

O que significa filmar a barbárie? A vida das pessoas é artigo descartável?

Os fatos exigem reflexão para além da covid. Existem outras doenças atacando alguns seres vivos. Este novo micróbio provoca, em alguns casos, perda de humanidade. Humanoides do tipo armado sufocam gente igualzinha a eles. A doença avança devagar, desgasta as pessoas e as instituições, bem aquelas responsáveis por um pouco mais de bem-estar entre os seres humanos. Atenção: o número de contaminados pela doença, vulgarmente chamada de “ódio”, é grande.

O que mudou?

Exposição cenográfica em tempo real, manipulação dos piores instintos humanos e mentira programada transformada em mercadoria. Tem preço. Cenas reais marcadas preferencialmente pela violência são transformadas em objetos virtuais, comercializáveis. A realidade sensível se tornou escrava de uma virtualidade neutra. A verdade foi escravizada pela mentira.

Qual foi o resultado das inversões?

A condição humana, física, concreta foi desfigurada pelos meios digitais, virou linguagem virtual, objeto com valor de mercado capaz de remunerar seus produtores.

O que está acontecendo com a humanidade?

Em 1964 a sociedade civil brasileira apoiou o golpe militar. Vinte anos depois começou a tomar consciência dos fatos: censura, desaparecimentos e violações dos direitos humanos. Ocorreram mudanças de posição e cresceu o número das pessoas que queriam mudanças: a eleição de uma Assembleia Constituinte e a redemocratização do País. A semente, a luta pelos direitos humanos, tinha frutificado.

Em 1988 foi aprovada a Constituição cidadã.

Passados 34 anos, a pergunta é a mesma imortalizada por Carlos Drummond de Andrade: “E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu (…) E agora, José (…)”

O que mudou de lá para cá?

Vivemos em um momento em que o preço das coisas está em alta e o valor da vida, em baixa?

É isto?

O que aconteceu?

O Brasil ficou mais rico. A população com renda de 2 a 5 salários-mínimos aumentou. Passamos a produzir petróleo em grande quantidade, nos tornamos o segundo maior produtor de soja do mundo (em 2019 a safra foi de 114,8 milhões de toneladas), sem falar em outros ramos do agronegócio onde também ocorreram avanços significativos.

O título Honoris Causa

Diante de tantas mudanças, a concessão do título de Honoris Causa para Paulo Sérgio Pinheiro é de grande importância. A outorga do título institui valor, para quem tem valor: o ser humano lutador pela vida de outros seres humanos, iguaizinhos a ele.

Para comprovar a hipótese elaborada neste artigo, anexei dois gráficos: o Índice de Desenvolvimento Humano no Brasil (IDH) e a insegurança alimentar no Brasil, a fome em números.

Atualmente os gráficos, as tabelas e os números constituem uma voz com escuta. Como utilizei palavras e não memes e imagens, produzi uma voz sem escuta. Para dar vida para a minha hipótese apresento gráficos, tabelas e números. Linguagem em alta. Eles explicam a mesma história contada por uma antiga habitante do planeta Terra.

Apreciem o sabor:

Tendência da segurança alimentar e dos níveis de insegurança alimentar (IA) no Brasil (2004-2022)

Parabéns, Paulo Sérgio Pinheiro, pelo título merecido de Doutor Honoris Causa.


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