Ética ambiental: mais uma frente no combate às desigualdades

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 03/10/2022 - Publicado há 1 ano

Até onde podemos levar as questões das desigualdades? No momento, a sociedade está especialmente preocupada com as questões de raças e gênero da espécie Homo sapiens (nós!). Em entrevista dada ao Estadão em 29/9/2022, o economista francês Thomas Piketty comenta sobre o seu novo livro Uma breve história da igualdade. Diz que as coisas vêm melhorando no mundo e coloca numa perspectiva histórica a abolição da escravatura, o fim do Apartheid na África do Sul e movimentos recentes como Black Lives Matter e o Me Too como exemplos de avanços em direção à diminuição das desigualdades. Por outro lado, salienta que ainda falta muito para chegarmos a uma igualdade democrática no mundo como um todo. Na entrevista, Piketty fala inclusive sobre o papel de países como o Brasil em demandar uma diminuição da desigualdade econômica, que impacta nas desigualdades sociais entre o norte e o sul do planeta. Com uma situação econômica melhor, o Brasil poderia, por exemplo, proteger melhor a Amazônia e o meio ambiente em geral. Isso poderia contar com um apoio significativo para diminuirmos impactos das mudanças climáticas.

Pode não parecer, mas há uma conexão entre os processos apontados por Piketty e a evolução da ética ambiental, que surgiu no século 20 e se torna cada vez mais forte neste século. O desenvolvimento da ética ambiental moderna tem raízes comuns com o desenvolvimento das ideias sobre sustentabilidade, mas foi a biologia que trouxe contribuições decisivas para a ética ambiental atual. Um dos primeiros passos foi um artigo científico do botânico Arthur Tansley em 1935. Nele o autor mostra uma visão sistêmica da biologia e coloca de forma clara uma série de definições ecológicas, entre elas o conceito de ecossistema. Quase 20 anos depois, os irmãos Howard e Eugene Odum lançaram o primeiro livro de ecologia, chamado Fundamentals of Ecology.

Enquanto Eugene se dedicou mais aos aspectos científicos da ecologia, Howard preferiu ter um papel mais político. Usando a sua visão sistêmica ajudou a levantar discussões sobre as relações entre a ecologia e os seres humanos. Alguns anos depois (1962), Rachel Carson publicou o famoso artigo Primavera Silenciosa na revista The New Yorker, que depois se transformou num livro e mudou a visão da sociedade americana sobre meio ambiente. Carson apontou que um problema sistêmico na biosfera estava sendo causado pelo inseticida DDT (diclorodifeniltricloreetano), desenhado para controlar os mosquitos da dengue e da malária. O DTT estava afetando negativamente e eclosão de ovos de aves, o que poderia causar uma disrupção ecológica. Com esse espraiamento de uma visão ambiental, a ética foi expandida, iniciando um processo que se transformou no que hoje conhecemos como ética ambiental.

Mas o que tem a ver a ética ambiental e as desigualdades como vê Piketty? São fenômenos paralelos e relacionados. Talvez até tenham alguma relação causa-efeito. Pode ser que a ética ambiental, pelo menos no século 20, tenha ajudado a mudar as coisas e incitado as populações a pedirem mudanças na governança ambiental no planeta. No fim do século 20 aparece o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas e começam a ser pensados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ambos por intermédio das Nações Unidas. Surgem as Conferências das Partes (COPs) que abrigam discussões de governantes e da sociedade sobre como melhorar o meio ambiente e as desigualdades no mundo. Esses e outros eventos, que adentram e se aprofundam no século 21, levam a uma espiral de discussões que vêm mudando a face da civilização. A natureza, termo que hoje se mistura com o de biodiversidade, acabou por ser incluída no imaginário popular entre as entidades vivas que precisam ser protegidas.

Consolidou-se assim neste século um novo ramo da ética: a ambiental. Hoje, a ética ambiental pode ser vista através de valores de dois tipos: intrínseco e instrumental. Na ética de valor intrínseco, o foco é fortemente relacionado aos animais. É o que conta, por exemplo, para muitos vegetarianos e veganos não se alimentarem de produtos animais. Como os valores da ética intrínseca cobrem muito pouco as plantas – exceção feita aos coletivos de árvores urbanas e árvores presentes em florestas – a ética de valor intrínseco é considerada como uma visão animista. O termo não só se refere aos animais, mas ao ponto de que eles seriam seres que também têm alma. Já a ética instrumental tem visão utilitária, direta ou indiretamente relacionada ao Homo sapiens. Quando justificamos a preservação de florestas porque elas fazem parte do equilíbrio do clima na atmosfera, estamos usando uma aproximação da ética instrumental. A visão instrumental é antropocêntrica e apesar de ser um tipo de ética ambiental – em contraposição à ética judaico-cristã – ainda tem como centro o Homo sapiens do sexo masculino. Portanto, na transição da ética judaico-cristã para a ética ambiental, atingimos um estágio que, antes chamado de antropocentrismo, poderia ser chamado de antropo(macho)centrismo. Como mostra Piketty em seu livro, os avanços paulatinos na diminuição das desigualdades entre os Homo sapiens já podem começar a fazer perder o “macho” do termo e incluir todos os gêneros. Mas ainda falta juntar tudo através da ética ambiental e também a biodiversidade.

É um grande progresso para a humanidade. Mas a visão ainda é difusa. Quando falamos de biodiversidade, não há “objetos” únicos, mas um coletivo difuso que passa a ser considerado como um coletivo vivo e por isso tendo como essencial a sua proteção. Para os especialistas, é óbvio que cada espécie deve ser considerada. Mas no imaginário popular temos de pensar que cada vida conta. Como na demanda de Piketty por um avanço ainda maior na diminuição das desigualdades entre os Homo sapiens, temos de avançar mais também na área ambiental. Na ética ambiental, esse avanço consiste em estendermos cada indivíduo, seja de que espécie for, para baixo da cobertura da ética de valor intrínseco.

Respondendo à pergunta feita no início deste artigo sobre até onde podemos ir na diminuição das desigualdades, talvez a melhor maneira de avançar seja abandonar a visão animista e estender a ética ambiental para uma ética de valores naturalistas, incluindo tudo o que é vivo como essencial para o Homo sapiens.


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