Quem defende a democracia com o voto?

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 29/09/2022 - Publicado há 2 anos

Em agosto de 2022, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), grupo de pesquisa que reúne duas dezenas de pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e é dirigido por dois professores da USP, publicou o relatório O caminho da autocracia – estratégias de erosão democrática. No texto, relatam e analisam experiências recentes de outros países como Hungria, Polônia, Índia e Turquia que viveram escaladas autoritárias que passaram por processos de reeleição de líderes autoritários.

A tese do relatório pode ser resumida assim: reeleger líderes autoritários e que desrespeitam sistematicamente as instituições pode ser mais corrosivo para a democracia do que a primeira eleição. O relatório apresenta fontes bibliográficas e análises comparadas de processos históricos em diferentes países para algo que, ao acompanhar a política e os jornais no Brasil, eu sinto intuitivamente todos os dias: a presidência de Bolsonaro representa um risco efetivo para a democracia, para as instituições democráticas tais como as conhecemos; e embora ainda não tenha esgarçado definitivamente o pacto democrático em nosso país, uma reeleição poderia nos colocar exatamente no caminho de alguns dos países citados acima.

Os quatro anos de governo Bolsonaro, ao invés de me tranquilizarem, me deixaram ainda mais apreensiva. Não apenas pelas ilegalidades que ele efetivamente faz (como utilizar eleitoralmente um evento público, financiado pelo Estado, como aconteceu no 7 de setembro), mas pelo que ele diz que pode e quer fazer (como os constantes questionamentos das urnas, do processo eleitoral, das instâncias de controle como o STF). Dizer é diferente de fazer, é verdade. Em uma expressiva imagem construída por Cícero Araújo em texto de 2021, o Estado de Direito e a democracia se constroem com “paredes quânticas” ou, diria eu, paredes holográficas, feixes de luz. Não impedem efetivamente a passagem por elas, indicam limites no espaço. Se os participantes do jogo político decidem não respeitá-las, elas vão perdendo sua função de demarcar os espaços de uma convivência civilizada e democrática; e quanto mais vezes elas forem desrespeitadas sem reação, sem que aqueles que deveriam defendê-las as protejam e recordem sua importância, mais frágeis elas se tornam, ou seja, mais claramente se revelam apenas feixes de luz (e não concreto armado, como quereriam ser). Mais elas se enfraquecem. Os quatro anos de governo Bolsonaro, ainda que um golpe não tenha sido consumado, não indicam que estamos a salvo de incursões autoritárias mais profundas. Ao contrário, eles sinalizam o risco cada vez maior de vermos nossas instituições sucumbirem a ataques fáticos e simbólicos tão reiterados.

Tudo indica que não teremos um segundo governo Bolsonaro. Ufa. Posso dormir razoavelmente tranquila. Dormirei ainda mais tranquila depois que o resultado eleitoral for certo. Dormirei ainda muito mais tranquila ao final do dia 1o de janeiro de 2023. Tudo indica que caminharemos até lá e que no próximo ano teremos um novo governo.

Mas… Mesmo em caso de vitória de um projeto comprometido com a democracia, parece-me ainda necessário que façamos uma importante pergunta: será que a clara rejeição ao projeto democrático foi, como deveria ser, um fator decisivo na derrota de Bolsonaro? Pois responder essa pergunta é também responder: o quanto a sociedade brasileira está disposta e preparada para, no futuro, independentemente de outros fatores (econômicos, comportamentais etc.), sustentar a democracia como forma política capaz de mediar os conflitos políticos e assegurar liberdades, tanto individuais como coletivas? Uma primeira análise desse tema, a meu ver, mostra resultados preocupantes.

Reportagem da DeutscheWelle, publicada em 27 de setembro, apresenta o perfil de três eleitores que apertaram 17 na urna eletrônica no segundo turno de 2018 e que apertarão 13 no próximo domingo. São exemplos dos quase 20% daqueles 50,7 milhões de eleitores que, tendo votado em Bolsonaro em 2018, provavelmente votarão em seu concorrente no próximo domingo. Olhar para elas, por isso mesmo, pode ajudar a esclarecer os processos por trás da desejada vitória democrática. Estariam essas pessoas defendendo a democracia?

Bruno Lupion faz um perfil detalhado de cada um de seus entrevistados. A primeira das entrevistadas afirma que acreditou no que Bolsonaro dizia e que esperava ter uma vida melhor como pobre. Essa melhora de vida não veio, “e agora está tudo caro”. Soma-se a má situação econômica ao desconforto com uma fala do presidente que mandou as pessoas comprarem arroz na Venezuela. “Ele come, o rico come, eu não. Meu armário está lá vazio, o do Bolsonaro deve estar cheio”, afirmou. Acrescentou ainda que “ele [o presidente] debochou de todas as pessoas doentes, conheci um monte de gente doente e me entristeci muito, um presidente não deveria fazer isso”.

A reportagem segue com mais dois entrevistados. Cada um deles apresenta suas razões e desconfortos para justificar a mudança de voto de 2018 para cá. Os depoimentos são interessantes e até comoventes. Nenhuma vez a palavra democracia é citada em toda a reportagem.

Mais ainda: pesquisa Datafolha publicada em 22 de setembro traz os resultados do levantamento segmentados por escolaridade e faixa de renda. O único segmento de renda que dá vitória para Lula é o daqueles que ganham até dois salários mínimos. Em todos os outros estratos (de 2 a 5 SM; de 5 a 10 SM, mais de 10 SM), Bolsonaro venceria a eleição do próximo domingo.

Já quando olhamos para a escolaridade, situação análoga se repete. Entre aqueles que têm ensino superior completo, há um empate técnico: 39% dos entrevistados votariam em Lula se a eleição fosse hoje, e 38% em Bolsonaro. O fato de as camadas mais ricas e escolarizadas da população persistirem dando grande suporte a um projeto claramente autoritário parece-me dos mais relevantes, e preocupantes. Nem os mais escolarizados, nem os com maior renda do Brasil parecem estar, em sua maioria, suficientemente preocupados com o risco de destruição da democracia que um segundo governo Bolsonaro representa. Aliás, parecem não perceber o quanto o primeiro governo Bolsonaro já caminhou no sentido dessa erosão.

Daí a pergunta que dá título a este artigo: quem, no Brasil, está disposto a defender a democracia com seu voto? Quem considera a defesa da democracia, por si mesma, antes de qualquer outra consideração, como um valor suficientemente central e importante para determinar seu voto? Aparentemente, pouca gente. É algo em que devemos meditar no próximo quadriênio.


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