Os desafios para uma real independência do Brasil

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 27/09/2022 - Publicado há 2 anos

“Estamos sim independentes, mas não constituídos.”

A reflexão é de Frei Caneca, originalmente Joaquim da Silva Rabelo (1779-1825), o religioso e político que se envolveu na Revolução Pernambucana, em 1817, e foi líder da Confederação do Equador, em 1824.

Frei Caneca foi resgatado no texto A Terceira Margem do Ipiranga, do sociólogo e escritor Sérgio Abranches, que compõe o livro Balanço e Desafios no Bicentenário da Independência, a nona publicação da Cátedra José Bonifácio da USP, lançada no último dia 21 de setembro.

Organizado e dirigido sob a curadoria do experiente embaixador Rubens Ricupero, que ocupou a cátedra José Bonifácio no período 2021-22, o livro reúne 18 artigos sobre os 200 anos da Independência do Brasil. “Nossa opção foi por um enfoque não historiográfico, voltado para o futuro, para os próximos cem anos do Brasil. […] A edificação do Brasil independente é um esforço permanente, contínuo, com momentos de avanço e por vezes de retrocesso, até de desconstrução, de demolição”, diz Ricupero.

Os momentos de avanço e de retrocesso, citados por Ricupero, de certa forma dão materialidade à premonitória frase de Frei Caneca colhida pelo sociólogo Sérgio Abranches que abre este artigo: “Estamos sim independentes, mas não constituídos”.

O livro apresenta uma preciosidade, a conferência Brasil Cem Anos de Balanço Histórico, de um ilustre personagem que já nos deixou, o embaixador José Guilherme Merquior, assistida por Ricupero em 1990, em Paris. Diz, lá pelas tantas, Merquior: “Se analisarmos o campeonato mundial de crescimento até 1980, constatamos que o Brasil é o país onde o crescimento médio foi espetacular. Mas, ao mesmo tempo, apresentamos índices sociais lamentáveis”.
Merquior acrescentou: “Ao inegável crescimento, à inquestionável projeção internacional e à manutenção da unidade, tarefas do Império, veio somar-se um impulso de desenvolvimento e de crescimento de todo indiscutível. Ao lado disso, porém, vivemos realidades sociais deploráveis, em sua maioria, e continuamos a ter, hoje, taxas de desigualdades insuportáveis para a nossa consciência ética”.

É útil lembrar este quadro que Merquior pintava em 1990. No quadro de hoje, atravessados vários governos posteriores e anos de avanços e também atrasos, nada há de espetacular. A indústria encolheu e o crescimento médio tem sido medíocre, o sólido real se desvaloriza e dependemos de nossas exportações agrícolas, como no passado. Pior: agravam-se ainda mais os índices sociais já então lamentáveis. Qual quadro Merquior pintaria hoje em dia?

Itu e Amazônia

Nestes tempos de destruição de nossa riqueza verde, a Amazônia, é útil recuperar o que dizia o progressista (para os parâmetros de seu tempo escravista) Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, sobre o desmatamento de florestas que constatou, àquela época, em Itu, no interior de São Paulo.

Em seu artigo O Projeto Nacional de José Bonifácio de Andrada e Silva, Miriam Dolhnikoff, mestre e doutora em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, registra o que ele escreveu a respeito daquele abatimento de florestas: “[…] Foram barbaramente destruídas com o fogo e machado e esta falta acabou em muitas partes com os engenhos. Se o governo não tomar enérgicas medidas contra aquela raiva de destruição, sem a qual não se sabe cultivar, depressa se acabarão todas madeiras e lenhas, os engenhos serão abandonados, as fazendas se esterilizarão, a população emigrará para outros lugares, a civilização atrasar-se-á e a administração da justiça e a punição dos crimes cada vez mais experimentarão maiores dificuldades nos meios desertos”.

Soa atual, familiar? Amazônico? Mas foi como pregar no deserto, pois José Bonifácio acabou afastado de suas funções, entre elas, de tutor do ainda jovem d. Pedro II, por também defender o fim da escravidão e a sua integração, junto com os indígenas, à cidadania do País, claro que não com todos os direitos de que os brancos gozariam, pois ainda precisariam ser tutelados…

Criação do futuro

O livro Balanço e Desafios no Bicentenário da Independência traz 20 artigos de diferentes autores sobre os 200 anos da Independência que seguem o espírito do seu curador, Rubens Ricupero, que advoga “vivê-la” e não apenas “lembrá-la”, “recordá-la”, ressaltando seus momentos mais significativos. O notável diplomata orientou os articulistas a “evocar um processo vivo, em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe um sentido de criação de futuro”.

Como ressalta o coordenador da Cátedra José Bonifácio, Pedro Dallari, Ricupero dá ênfase, no livro, à discussão de temas como meio ambiente, Estado, relações internacionais, Nação e sociedade e desenvolvimento e crescimento econômico. Sob a seguinte ótica:

1) O que se deve fazer para criar razões críveis de esperança e confiança de que os próximos cem anos serão melhores do que os 200 anos de vida independente?

2) Como garantir que todos participem amplamente dessa reflexão sem exclusões, nem marginalizações?

Trata-se de um grande desafio, como enfrentá-lo?

Voltemos à frase de Frei Caneca, citada no começo deste artigo: “Estamos sim independentes, mas não constituídos”. O sociólogo Sérgio Abranches diz que “ela continua válida porque ainda não conseguimos demolir as duas fundações (Independência e proclamação da República) que enrijecem a nossa desigualdade e impedem que continuemos avançando pelas tortuosas vias rumo à democracia plena e republicana no Brasil”. E prevê: “No Brasil, o caminho do futuro passa inicialmente por uma nova independência que enxergue, reconheça e abrace os setores excluídos desde 1822: a independência da terceira margem do Ipiranga”.


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