Fotomontagem com imagens de Matheus Campanha e Pedro França, disponíveis no Flickr – Arte: Ana Júlia Maciel/ Jornal da USP

Uma visão crítica sobre política e qualidade da democracia

Novo dossiê da Revista USP aborda o Bicentenário da Independência à luz dos processos políticos dos últimos dois séculos

Texto: Marcello Rollemberg

Arte: Ana Júlia Maciel

 30/09/2022 - Publicado há 2 anos

Em duzentos anos, desde a sua independência, o Brasil passou pelos mais variados espectros políticos. Foi um império em meio às repúblicas que nasceram por todo o continente sul-americano após o fim do domínio espanhol, virou uma república às custas de uma quartelada quase envergonhada, viveu tempos do café-com-leite, teve uma revolução (a de 1930), duas ditaduras (a de Vargas de 1937 a 1945 e a do Golpe de 1964, que durou até 1985). Teve presidentes claudicantes, sempre com a sombra de mais um golpe – ou um impeachment – para aterrorizá-los, teve grandes mandatários e líderes de folhetim. E, sim, em meio a tudo isso, o Brasil viveu períodos democráticos. O mais recente, desde 1985, mesmo com alguns solavancos no caminho e falas em cercadinhos. Todo esse processo ao longo de dois séculos de política brasileira é agora analisado no número 134 da Revista USP, com o dossiê Bicentenário da Independência – Política (leia aqui). Além do dossiê, a revista ainda conta com as seções “Textos”, “Arte” e “Livros”.

O novo número da revista é o terceiro dedicado à tetralogia que elenca os principais temas que precisam ser debatidos nesses dois séculos de independência do País. Os dois primeiros foram Economia – coordenado pelo professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP) Hélio Nogueira da Cruz – e Cultura e Sociedade, coordenado pela professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) Maria Arminda do Nascimento Arruda, atual vice-reitora da Universidade. Já este novo dossiê foi coordenado pelo cientista político e professor do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) José Álvaro Moisés. O último dossiê da tetralogia será Ciência e Tecnologia, coordenado pelo sociólogo e professor da FFLCH Glauco Arbix.

“A edição deste dossiê pretende contribuir com um exame crítico do sistema político brasileiro. Hoje, em que pese sermos um regime democrático relativamente consolidado, o sistema político está em crise, os cidadãos não se sentem representados, desconfiam dos políticos e de instituições como o Parlamento e os partidos”, escreve Moisés em sua apresentação – na verdade, um importante ensaio de 22 páginas que contextualiza e aplaina o terreno para a leitura dos dez artigos que compõem o dossiê, já antecipando a reflexão que eles inspirarão acerca de democracia (ou não), política e papel social no Brasil. 

José Álvaro Moisés - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

 

“A celebração dos 200 anos da Independência nos oferece, portanto, uma oportunidade incomum para um balanço do que está bem e funciona, e do que está mal e produz efeitos negativos para a vida política do país. A tarefa nesse sentido supõe um olhar crítico, generoso e abrangente, que, contemplando o descompasso entre o mundo da política e o mundo da sociedade, seja capaz de apontar saídas possíveis”, afirma o coordenador do dossiê. “O foco não são governos específicos, mas as instituições, as regras e os mecanismos democráticos destinados, ao mesmo tempo, a dar voz aos cidadãos e a processar politicamente as suas preferências e os seus interesses.”

 

Reformas e desigualdade

Os dez artigos do dossiê tratam de vários temas fulcrais da política brasileira nos últimos dois séculos, por mais que a maioria deles se debruce sobre temas bem mais recentes. São textos como “O imperativo da reforma política”, do sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, “Regimes e intervenção política dos militares no Brasil”, do professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape/FGV) Octavio Amorim Neto, e “Nau sem rumo? O sistema partidário brasileiro pós-redemocratização”, do professor do Departamento de Ciência Política e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da UFMG Carlos Ranulfo Melo, além de artigos que tratam da questão ambiental e do papel do Judiciário na política brasileira, entre outros temas.

“É da natureza da democracia deixar que seus inimigos votem e sejam votados. Ela dá aos adversários das liberdades democráticas o direito de atuarem contra seus princípios fundamentais nos seus generosos limites institucionais. No século XXI, o maior risco vem de lideranças demagógicas que usam as eleições para assumir o poder e atacar a democracia por dentro. Eles manipulam a insegurança, a frustração e o medo causados pela transição para chegar ao poder e derrubar as salvaguardas da democracia”, afirma, por exemplo, o cientista político Sérgio Abranches em seu artigo “As vias tortuosas da democracia e a crise da representação no Brasil”. 

Já o doutor em Ciência Política pela USP e professor da FGV-Eaesp Fernando Luiz Abrucio trata da questão federalista no País em seu artigo “Federalismo brasileiro e projeto nacional: os desafios da democracia e da desigualdade. “O caso brasileiro deve ser entendido, desse modo, observando-se como sua Federação dialoga com as características gerais do modelo federativo, mas também analisando de que maneira o federalismo desenvolveu-se no país, em particular naquilo que são as questões básicas do pacto federativo do Brasil”, afirma Abrucio. “Neste sentido, três elementos são centrais. O primeiro diz respeito às suas origens; o segundo, à sua trajetória histórica em termos de heterogeneidades e projetos de unidade na diversidade; e, por fim, à forma como tem lidado com dois aspectos estruturais para a nação: a democracia e a desigualdade”.

Fernando Luiz Abrucio - Foto: Reprodução/ Youtube

Qualidade da democracia

Na verdade, os onze artigos que integram o dossiê – aí, somando-se o ensaio/apresentação de José Álvaro Moisés – lançam olhares críticos e análises sobre um tema em comum: a qualidade da democracia no Brasil. Esse é, pode-se dizer, o tema de fundo do dossiê da nova Revista USP e o ponto onde se baseiam suas principais discussões. “Como definir a abordagem da qualidade da democracia? Os que se movem por essa perspectiva estão preocupados com a boa democracia. Trata-se de uma preocupação normativa que demanda, para que a análise tenha eficácia, uma cuidadosa reconstrução empírica da estrutura democrática, de seus componentes fundamentais e de seus processos de consolidação”, escreve José Álvaro Moisés. “Democracia, como se sabe, não é um conceito consensual. Uma definição recorrente sustenta que eleições são a pedra angular do regime, mas os processos de democratização em diferentes partes do mundo demonstraram que elas não garantem, necessariamente, o estabelecimento de sistemas políticos capazes de assegurar princípios fundamentais como o império da lei, o respeito por direitos civis e políticos dos cidadãos e o controle social de governos”, afirma ele. “Uma vez instalado o novo regime, ainda que isso mostre que doravante a escolha de quem governa estará sujeita ao princípio da soberania popular, eleições não são suficientes para assegurar que serão adotados os critérios listados acima e que a oposição será respeitada. Regimes autoritários podem persistir e tentar se legitimar através de eleições”, garante ele, fazendo, ainda, um alerta em seu texto: 

Sérgio Abranches - Foto: Reprodução/ Youtube

“Uma objeção importante a essa abordagem tem relação, no entanto, com o fato de a maior parte dos regimes democráticos existentes operar em sociedades de economia capitalista. Enquanto os avanços democráticos vão sempre na direção de mais igualdade, o capitalismo como sistema econômico e social gera crescentes desigualdades. Trata-se de um questionamento que afeta o princípio de igualdade política”, afirma. “A questão se refere à equidade da disputa eleitoral e da escolha de governos, mas também às condições de acesso das pessoas comuns à prerrogativa constitucional que lhes assegura o direito de se constituir em alternativa em face da política dominante. Em última análise, do ponto de vista da qualidade da democracia, a questão se refere à influência efetiva que os cidadãos dessas sociedades têm sobre a definição de políticas públicas e os rumos de seus governos.”

A edição 134 da Revista USP, com o dossiê Bicentenário da Independência – Política, está disponível gratuitamente neste link.


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