Mauricio Rocha e Silva (1910-1983): o Nobel que não tivemos

Por Antonio Carlos Martins de Camargo, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP

 15/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 16/08/2022 as 15:03

Mauricio Rocha e Silva – Foto: SBPC/Reprodução

Antonio Carlos Martins de Camargo – Foto: Arquivo pessoal

Uma ferroada de uma abelha dói, incha, coça, dilata os vasos sanguíneos, esquenta a pele ao redor, mas não mata. É desagradável a reação à picada de abelha e faz com que fujamos do enxame, caso contrário, poderia nos matar. Esses efeitos nos alertam e nos protegem, mas devem ser contidos. Chamamos esse processo de inflamação.

Um “enxame” de milhões de coronavírus vem duma lufada de ar expirado de indivíduos contaminados. Não há como escapar à inflamação. Causou a morte de mais de 6 milhões de indivíduos na atual pandemia. A insuficiente defesa das vítimas fez que com que muitas delas não conseguissem respirar de tão inflamados que estavam seus pulmões.

Uma picada da serpente jararaca injeta toxinas no sangue da vítima, causando uma inflamação sistêmica e pode matá-la por reduzir o fornecimento de sangue ao cérebro.

Todos esses são exemplos de processos inflamatórios que despertam o sistema de defesa e vigilância do organismo. São mecanismos que asseguram a vida, mas também podem matar.

Em medicina, nenhuma patologia animal é mais importante que aquela que desencadeia o processo inflamatório. Substâncias estranhas, traumas ou irradiações que agridem o corpo animal podem ser agentes inflamatórios. São agentes muito diferentes, mas os mecanismos biológicos que reagem à agressão parecem ser os mesmos.

O processo inflamatório nunca deixou de ser um dos desafios médicos mais relevantes. Entretanto, foi no século passado que mentes brilhantes confluíram para desvendar seus mistérios. Uma delas é a do brasileiro Mauricio Rocha e Silva. Ele dedicou sua vida a esse propósito. Cooperativamente, esses cientistas conseguiram desvendar, no século 20, grande parte das entranhas biológicas do sistema de defesa e vigilância animal.

Cientistas brasileiros, liderados por Rocha e Silva, deram um passo fundamental, em 1949. Descobriram a bradicinina, mostrando, de maneira indiscutível, que essa molécula, um pedacinho de uma proteína (peptídeo), foi seletivamente arrancado dela pela tripsina cristalina (enzima proteolítica que digere a carne que comemos) ou por enzimas proteolíticas semelhantes, do veneno da jararaca.

Parece pouco?

Então vejamos: a bradicinina explica a dor, a dilatação dos vasos, o estímulo ao sistema imune (inflamação), ocorridos na picada de abelha, na infecção pelo coronavírus ou as reações à picada da jararaca.

A importância do mecanismo que levou à descoberta da bradicinina, entretanto, vai muito além da explicação do processo inflamatório: faz parte da prova inequívoca de conceito que explica como pedaços de uma proteína, seletivamente arrancados, fazem parte da defesa e vigilância, conservados durante a evolução animal. De fato, a mesma bradicinina que existe no veneno da abelha existe também no homem.

A generalização do papel vital da degradação parcial das proteínas, entretanto, só ocorreu na segunda metade do século 20. O princípio bioquímico que explica a inflamação, explica também a organização das células do corpo (peptídeo sinal, 1971), promove a defesa imunológica (epítopos, década de 1980), entre outros processos essenciais para manter a vida.

Além disso, Rocha e Silva contribuiu para o desenvolvimento do captopril, droga farmacêutica utilizada no mundo todo para o tratamento da hipertensão arterial, patologia responsável pela morte de milhões de pessoas. Foi ele quem descobriu os peptídeos potenciadores da bradicinina, encontrados no veneno da jararaca. Tal descoberta foi estudada por seus alunos e colaboradores, entre eles Sergio H. Ferreira. Eles demonstraram que a hipertensão humana poderia ser normalizada por ação desses peptídeos. Essa prova de conceito levou a indústria farmacêutica a desenvolver o captopril. Assim, Rocha e Silva está por trás do desenvolvimento dessa droga, utilizada em todo o mundo para o tratamento da hipertensão arterial humana.

Não é preciso recorrer a autoridades mundiais para reconhecer o papel de Rocha e Silva no processo inflamatório e na regulação da pressão arterial. Sua contribuição é por demais reconhecida pela ciência médica mundial. Ele próprio o fez de forma ética, competente e fartamente documentada em seu Memorial para o concurso de Livre Docência na USP, em 1952. Nele estão documentados suas publicações, intercâmbios, colaborações, estágios no Brasil e no exterior, bolsas internacionais de grande prestígio e correspondência com as maiores autoridades cientificas mundiais que se prolongou até o final de sua vida, em 1983. Sua trajetória foi marcada por uma genial intuição e clarividência nas escolhas de seus colaboradores, materiais e métodos, utilizando abordagens biológicas adequadas para atingir suas metas. Mostrou que sabia tirar proveito de suas qualidades de pesquisador nato, tanto nas precárias condições brasileiras daquela época, como nas existentes nas melhores instituições mundiais.

Cabe perguntar: por que, entre os pesquisadores brasileiros, poucos consideram Rocha e Silva como o cientista brasileiro que acumulou mais méritos científicos e aplicados durante sua vida para credenciá-lo merecedor do Prêmio Nobel em Medicina? Eis aí uma questão que vale a pena refletir.


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