Arte: Lívia Magalhães/Jornal da USP
“Na metrópole caleidoscópica de hoje ninguém toma conhecimento direto do fluxo de produtos e de pessoas que a todo instante entra e sai do centro. Mas, em tempos mais antigos, qualquer vadio sabia quando entrava na cidade pela rua do Piques um carregamento de açúcar vindo de Itu em mulas. Mesmo a visita de um estrangeiro era publicamente registrada.”
O comentário do historiador e pensador norte-americano Richard Morse (1922-2001), ao traçar um panorama da evolução urbana de São Paulo, do início do século 19 até o final da década de 1950, é uma amostra do que o leitor de Um Americano na Metrópole Latino-Americana – Richard Morse e a Formação de São Paulo vai observar. O novo livro da Editora da USP (Edusp), de autoria da professora Ana Claudia Veiga de Castro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, traz um foco inusitado no urbanismo da cidade.
“Quando Richard Morse chegou em São Paulo, em 1947, a modernização em curso parecia não deixar mais espaço para as velhas formas de vida que até então haviam presidido as relações sociais no País”, explica a autora. “Mecanização do campo, migração campo-cidade, industrialização intensa, tudo contribuía para que as grandes cidades, e São Paulo em especial, materializassem essas transformações no espaço urbano.”
Diante dessa movimentação, o pesquisador, na época com 25 anos, escolheu São Paulo para ser o tema de sua tese de doutorado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, defendida cinco anos depois. Morou na cidade por mais de um ano, pesquisando e acompanhando o cotidiano.
“Richard Morse observou uma urbanização que levou a pequena vila a se transformar em metrópole, porém sem deixar para trás os traços da comunidade.”
“Mas o que será que Morse viu por aqui? Ele observou uma urbanização que levou a pequena vila a se transformar em metrópole, porém sem deixar para trás os traços da comunidade”, comenta a professora Ana Castro em entrevista ao Jornal da USP. “Isso era o que Morse via e vivia naqueles anos, na sua convivência com Antonio Candido e outros intelectuais com os quais teve contato: um éthos comunitário que existia naquela jovem metrópole em 1947. Portanto, Morse fala de um caminho de urbanização que valoriza o local, as relações de amizade e de vizinhança, que não despreza as culturas diferentes que se juntam na cidade – e que tenderiam a se homogeneizar sob a égide da modernização.”
A viagem intelectual de Morse ao Brasil é contada no prefácio do livro pelo arquiteto, historiador e professor argentino Adrián Gorelik, da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina. “O historiador fixou-se em São Paulo por cerca de um ano, entre 1947 e 1948, e essa experiência o marcaria para sempre: mergulhou na intensa cena cultural da cidade, tanto frequentando o círculo de artistas modernistas – ao qual foi introduzido por Nonê, filho de Oswald de Andrade – quanto se aproximando de acadêmicos locais, entre eles Sergio Buarque de Holanda e dois jovens que começavam a protagonizar novas correntes no campo das ciências locais e da crítica literária, Florestan Fernandes e Antonio Candido, apenas dois e quatro anos mais que Morse. Ninguém ainda havia chegado aos trinta. E especialmente com Candido Morse estabeleceu uma relação de cumplicidade intelectual que perdurou ao longo de suas vidas”, escreve Gorelik.
As pesquisas de Morse, que não se restringiram à sua tese de doutorado, resultaram no livro De Comunidade a Metrópole: Biografia de São Paulo, lançado em 1954 e republicado em 1970 com o título Formação Histórica de São Paulo: De Comunidade a Metrópole. “Nesse ensaio, Morse repassa a história de São Paulo ao longo dos séculos mobilizando as mais diversas fontes, de documentos oficiais aos acervos privados, da literatura aos trabalhos científicos, incluindo cantigas e pregões, cartas, notícias, anúncios de jornal e tudo o mais que, ao ser ordenado e analisado, pudesse recompor a vida na cidade”, explica Ana Castro. “O autor constrói com esse material um panorama da evolução urbana de São Paulo, enfocando de modo mais detido o período imediatamente anterior à Independência até a década de 1920, estendendo em alguns pontos os comentários à cidade contemporânea, retrocedendo em outros ao período colonial.”
“Morse repassa a história de São Paulo ao longo dos séculos mobilizando as mais diversas fontes, de documentos oficiais aos acervos privados, da literatura aos trabalhos científicos, incluindo cantigas e pregões, cartas, notícias e anúncios de jornal.”
As pesquisas de Ana Castro sobre a trajetória de Richard Morse resultaram em seu doutorado na FAU, defendido em 2013, sob orientação da professora Ana Lucia Duarte Lanna e co-orientação de Adrián Gorelik.
“Ana Castro enfrentou o desafio de estabelecer diálogos com um autor que construiu um texto icônico sobre a cidade”, escreve a professora Ana Lanna na orelha do livro. “Buscou ampliar e qualificar fontes e temas para a construção de uma história urbana que seja também uma história cultural da cidade.” E Gorelik destaca: “Neste livro sobre outro livro – que por sua vez são muitos livros –, a autora teve que fazer bem mais seguindo a jornada intelectual de um polígrafo como Morse: de New Jersey e Columbia a São Paulo, e dali à América Latina”.
Nas conclusões finais, a autora considera: “Morse inseriu São Paulo nessa paisagem cultural mais ampla que é a América Latina, dedicando-se de corpo e alma a essa tarefa e contribuindo para o florescimento de um ciclo de pensamento que teve lugar entre as décadas de 1940 e 1970”.
Um Americano na Metrópole Latino-Americana – Richard Morse e a Formação de São Paulo, de Ana Claudia Veiga de Castro, Editora da USP (Edusp), 400 páginas, R$ 68,00