Para entender a história húngara

Por Tibor Rabóczkay, professor aposentado do Instituto de Química da USP

 18/08/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 20/08/2021 as 11:14
Tibor Rabóczkay – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
A Edusp se tornou uma das editoras mais importantes do país com a publicação de obras que preservam e difundem nossa cultura (por exemplo, as da autoria de Luis da Camara Cascudo em coedição), a publicação de excelentes textos didáticos de baixo custo (a Coleção Acadêmica, com mais de cem volumes), e o preenchimento de lacunas da bibliografia brasileira. Ela vem agora contribuir para o melhor conhecimento e compreensão acerca da história da Europa Central com o lançamento de Uma história da Hungria, da autoria de László Kontler. A Hungria, reduzida a um pequeno país pelo Diktat de Versalhes-Trianon, com a perda de dois terços de seu território anterior à Primeira Guerra Mundial e de quatro milhões de sua população, foi, na segunda metade do século passado, palco de eventos decisivos na história universal. Referimo-nos à revolução operário-estudantil de 1956 contra o stalinismo e, em 1989, à abertura de sua fronteira ocidental, permitindo aos turistas da Alemanha Oriental, em visita ao país, escaparem, via Áustria, para a Alemanha capitalista. Se a revolução de 1956, mesmo sufocada em sangue, abalou globalmente os partidos comunistas, a permissão para os milhares de turistas alemães orientais atravessarem a fronteira, em 1989, conduziu à desestabilização do regime stalinista germânico e à demolição do Muro de Berlim.

A extensa obra de Kontler inicia-se com referências aos povos que haviam passado pela região e acabaram desaparecendo assimilados por outros povos. Embora os fatos históricos sejam concatenados em longa cadeia de causas e efeitos, o leitor interessado em compreender a realidade atual, provavelmente ficará centrado nos cem anos mais recentes da história húngara. O que muitos conhecem da Hungria é que foi a “última aliada de Hitler”; um julgamento que se revela superficial. A leitura de Kontler mostra como esse país caiu numa trajetória forçada que o levou à trágica aliança. Em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro figurava como uma grande potência europeia. O conflito armado entre os “imperialismos”, de intensidade até 1914 nunca vivenciados, levou à derrota das potências centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia, Bulgária). A guerra foi seguida pela imposição de tratados de “paz”, inspirados pelo desejo de vingança e, contraditoriamente, pela esperança de uma futura era de paz. Ilusão incompatível com o espírito rancoroso e injusto dos tratados. O multiétnico império austro-húngaro – em nada melhor ou pior do que os impérios colonialistas no que diz respeito ao convívio de etnias – foi destruído. A região passou a ser constituída por vários países menores, por sua vez também multiétnicos, que herdaram não só os territórios, mas os conflitos interétnicos, a partir de Versalhes-Trianon potencializados. Países sem condições de cumprir o papel histórico do império: o de se opor ao futuro expansionismo germânico, encarnado por Hitler, e o eslavo representado, na época, pela URSS de Stálin.

A perda de dois terços de seu território e a submissão de alguns milhões da população de etnia magiar aos micro-imperalismos romeno, checoslovaco, sérvio, croata e ucraniano – situação que gera conflitos até nossos dias – lançaram os húngaros na confusão e desespero. Nem a sobrevivência do país remanescente parecia assegurada. Em tal situação, complementando Kontler, propostas havia pouco não imagináveis surgiram, como o oferecimento da coroa de Santo Estêvão ao rei da Romênia, visando uma união pessoal que ensejasse a manutenção de um mínimo de vínculo com a Transilvânia, que na época da expansão otomana coincidia com o próprio estado húngaro – ainda livre de invasores turcos e austríacos. A oferta foi recusada com escárnio pelos romenos, e o papel geopolítico que uma união húngaro-romena poderia ter exercido posteriormente pertence ao campo da “virtual history”. A realidade, bem diferente, é que o desinteresse das potências vencedoras pela correção das fronteiras, traçadas pelo “diktat” sem respeito às fronteiras étnicas, levaram os países envolvidos a uma competição pelas boas graças de Hitler que, mais esperto do que os diplomatas aliados, soube jogar com os conflitos étnicos e, com promessas cínicas e contraditórias, tornar eslovacos, croatas, romenos e, finalmente, húngaros, aliados da potência alemã. Húngaros numa aliança sempre hesitante, mas, até certo ponto estimulada tanto pelos inimigos quanto pelas vítimas do ditador nazista. Isto porque sabiam da existência do plano Margareth, de invasão da Hungria por tropas eslovacas, romenas e croatas, caso o país atrapalhasse os propósitos de Hitler. Pois, até cometer o erro de declarar guerra à URSS, a Hungria era a rota de fuga de militares poloneses, que com suas famílias tinham o apoio de toda a infraestrutura conferida pelos húngaros e, posteriormente, puderam se organizar na Grã-Bretanha para lutar pela libertação da Polônia. Semelhantemente usufruíram os judeus do leste, que puderam escapar do extermínio atravessando a Hungria em direção aos países ocidentais. Horthy chegou a receber pedidos dos aliados e de organização internacional judaica para que evitasse desafiar demasiadamente Hitler, visto que a precoce invasão da Hungria cortaria essa rota de escape (segundo entrevista do consul János Benyhe ao jornal Katolikusok Vasárnapja, publicado nos EUA em língua húngara). Fatos, em geral, omitidos, uma vez que alquebrar a autoestima dos húngaros era objetivo dos stalinistas húngaros na sovietização do país e, por sua vez, os aliados novamente preferiram ignorar a demanda húngara na questão das fronteiras injustas. Mesmo Kontler deixa de mencionar esses fatos.

A Hungria, mais uma vez do lado perdedor, foi o último dos aliados de Hitler tanto no sentido de ter demorado mais do que seus vizinhos a aderir ao ditador, quanto em não conseguir se desvencilhar dele até que os exércitos soviéticos chegassem até seu território.

Resume, acertadamente, o historiador Eric Hobsbawm sobre a Europa, em sua obra Era dos extremos: “Os conflitos nacionais que despedaçam o continente na década de 1990 são as galinhas velhas do Tratado de Versalhes voltando mais uma vez para o choco”. A honestidade nos obriga a reconhecer que nem sequer a atual União Europeia se mostra interessada e capaz de proteger os direitos coletivos das minorias étnicas da conturbada Europa Central e dos Bálcãs e, como vimos no final do século vinte, a possibilidade de graves conflitos étnicos pode surgir quase que instantaneamente. Para entender esse quadro carregado de ameaças, a obra publicada pela Edusp é fundamental.

Finalizando, algumas palavras sobre o autor. László Kontler é um historiador nascido e educado na capital da Hungria, Budapest. Sua experiência acadêmica, porém, foi enriquecida, entre outras, em universidades norte-americanas. Ministrou cursos na Universidade Rutgers, na Universidade de Cambridge e nas universidades húngaras de Debrecen e Budapest. É docente da CEU (Central European University, Viena). Nessa universidade, foi colega de Orbán, atual primeiro-ministro do país, hoje, porém, é seu crítico. Uma História da Hungria foi escrito originalmente em inglês, visando atender o interesse internacional crescente pela história da nação húngara. O livro lançado pela Edusp é a tradução da segunda edição. A excelente tradução é de Leila V. B. Gouvêa.

Boa leitura!


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