Performance, memória incorporada

Por Terra Johari Possa Terra, doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 13/08/2021 - Publicado há 3 anos
Terra Johari Possa Terra – Foto: Arquivo pessoal
Era o final de uma tarde de domingo ensolarada, em outubro de 2016. Junto a uma amiga, fui assistir pela segunda vez ao espetáculo Alguma Coisa a Ver Com Uma Missão, elaborado ao longo daquele ano pela Cia. Os Crespos. A Cia. Os Crespos é um coletivo de teatro negro fundamental no contexto paulistano. Formou-se em meados dos anos 2000 a partir de uma articulação de estudantes negras e negros na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, e desde então desenvolveu uma rica produção intelectual. Com uma trajetória de mais de uma década, naquele momento o grupo partilhava com o público sua pesquisa cênica sobre revoltas, rebeliões e revoluções negras na América Latina, que possibilitou a construção do referido espetáculo. Como pesquisadora no mestrado em Antropologia Social, acompanhando o trabalho da Cia. Os Crespos, aproveitei a ocasião para produzir etnografia.

Tomo aqui os eventos do início deste espetáculo como um elemento disparador, provocador, para discutir o potencial teórico/prático que veicula a ideia de performance. Acompanhem-me nesta encruzilhada. Naquela tarde de outubro, o espetáculo Alguma Coisa a ver Com Uma Missão seria apresentado na frente do Teatro Municipal de São Paulo. Havia um contingente de pessoas, majoritariamente negras, que intuí estarem aguardando o início do espetáculo nas escadarias. Do interior do teatro, afluía outro grupo de pessoas, possivelmente saindo de uma apresentação – um público quase inteiramente branco, vale ressaltar. Esse contraste ficou bem evidente naquela tarde de domingo, já que não havia a correria e o fluxo de pessoas típicos dos dias úteis nessa região central de São Paulo.

Enquanto aguardávamos o início do espetáculo, uma das integrantes da Cia. Os Crespos, a artista Dani Nega, apareceu vestida de roupas pretas e uma camiseta onde se lia a palavra “PRODUÇÃO” (inferimos que ela estava trabalhando na produção da peça). Ela se desculpou pois ainda estavam preparando o teatro para receber o espetáculo, uma vez que outro evento acabara de terminar. Enquanto iam chegando mais pessoas para a peça da Cia. Os Crespos, Dani fazia algumas brincadeiras com o público, perguntava aos espectadores o que haviam sonhado na noite anterior ou reprovava o atraso de alguns. Dani foi organizando uma fila, parecia se comunicar com alguém com um aparelho sonoro, mas o tempo foi passando e a situação foi ficando cada vez mais constrangedora, porque o teatro não se abria para o público. Embora a situação tivesse um tom cômico, com as brincadeiras e as conversas, também tinha um tom desconfortável, porque nós não sabíamos para onde ir.

Na realidade, o espetáculo não ocorreria dentro do teatro – este se erigia apenas como uma fronteira, uma barreira que nos faria escorrer por outros caminhos. A contradição fundamental entre entrar ou não no Teatro Municipal nos fez sentir no corpo a sensação de não pertencimento, e ao mesmo tempo posicionou nossos corpos justamente na indefinição, numa encruzilhada de outras possibilidades. Logo em seguida, no decorrer do espetáculo, descentralizado no espaço, fomos conduzidos ao Vale do Anhangabaú, e a uma reflexão profunda sobre as memórias que atravessam nossa condição histórica e nossas possíveis escolhas e intervenções no presente. Ao lado do opulento teatro, no Vale do Anhangabaú, era possível perceber a desigualdade social que marca o centro de uma cidade cheia de abismos, dado que ali habitavam muitas pessoas em situação de rua, incluindo algumas crianças que em diversas ocasiões intervinham também no curso da ação. Faces de uma mesma moeda.

Não é somente pelas palavras escritas, pelos livros e arquivos, que se conta uma história. A ação da Cia. Os Crespos nos posicionou ativamente diante da história da cidade, mobilizou nossos corpos nessa zona de fronteira e acionou também nossas memórias de pertencimento e não pertencimento. Porque a memória não se grava somente nos registros escritos ou físicos, mas também é produzida por meio de nossas ações e mobilizada na corporalidade. Naquela situação, o estranhamento em relação a uma instituição de arte como o Teatro Municipal foi inevitável, considerando ainda as diferenças entre o público que usufruía daquele espaço,e o coletivo de teatro negro, que nos impelia enquanto público a ocupar as ruas do centro da cidade. Não por acaso, as escadarias do Municipal também se apresentam como palco de reivindicações políticas históricas, a exemplo da fundação do Movimento Negro Unificado, que ali ocorrera em 1978.

Como nos ensina a teórica mineira Leda Maria Martins, a ideia de performance se fundamenta justamente na compreensão dos gestos, do movimento, da fala e da corporalidade como locais de inscrição do conhecimento, como produtores de memória. Esta autora dialoga com um campo de pesquisas que se fortaleceu nos Estados Unidos na década de 1960 a partir de interfaces entre a antropologia e o teatro, chamado de Estudos da Performance, que aproximou perspectivas antropológicas sobre os rituais das práticas teatrais, para a produzir análises culturais e teoria social.

Nos situamos num contexto epistemológico ocidental, forjado em dinâmicas coloniais e escravistas, que toma a visualidade e a escrita como meios privilegiados para a transmissão de conhecimento. Muitos saberes são marginalizados justamente por não funcionarem conforme este regime, como é o caso de diversas tradições expressivas de matrizes ameríndias e africanas. Opera-se então uma dialética entre memória e esquecimento. Entre lembrar e esquecer. As Histórias Oficiais muitas vezes silenciam essas outras histórias, consideradas menores, mas sempre haverá resquícios, ruídos, que virão dar uma rasteira nas narrativas oficiais, nos regimes de verdade que se pretendem únicos e cristalizados. O que é esquecido dará um jeito de ser lembrado.

Leda Maria Martins, em suas pesquisas sobre o arcabouço expressivo da diáspora africana nas Américas, mostra como essas tradições desenvolveram diversos procedimentos culturais de polifonia, que permitiram sua transcriação nos contextos coloniais americanos. Ou seja, para que estas visões de mundo não se perdessem, foi necessário criar culturas de aparências, em que aquilo que parece nem sempre é. É o caso das práticas culturais dos congados, pesquisados pela autora, em que descendentes de africanos puderam recriar todo um sistema simbólico e comunitário no continente americano, deslizando suas cosmovisões entre símbolos cristãos sob o regime escravocrata. Ao mesmo tempo que transmite e perpetua saberes, a tradição ritual dos congados é um elemento ativo no presente e não cristalizado no passado, que permite imaginar outro mundo para além da violência colonial.

Para além do aspecto conceitual, a ideia de performance tensiona também o método de pesquisa, pois não se pode negar as implicações políticas e históricas do corpo da pessoa pesquisadora em seu campo de atuação. No relato do início do espetáculo Alguma Coisa a Ver Com Uma Missão, por exemplo, eu estava orientada metodologicamente pela performance como uma forma de pesquisar, de forma que as afetações e percepções sentidas e partilhadas se tornaram centrais. O foco não era o texto dramatúrgico da peça, mas a maneira como ganhava vida. Assim, meu corpo, bem como dos demais presentes, foi enredado na ação da Cia. Os Crespos; participando do espetáculo, em maior ou menor grau éramos convocados a um posicionamento em meio à incerteza. O jogo entre entrar ou não no teatro, entre seguir ou não a viagem proposta pelo espetáculo, foi um artifício utilizado pela Cia. Os Crespos que ecoa as práticas expressivas negras de jogar com as aparências, nos colocando em uma encruzilhada de significados confluentes e por vezes conflitantes. Desconsiderar essas camadas de afetações, excluindo minha corporalidade da produção etnográfica, esvaziaria a pesquisa de sentido.

Tudo isso não significa, por outro lado, que o conhecimento escrito seja exclusivamente opressor, nem que o conhecimento incorporado sempre conteste a ordem de poder dominante. A transmissão do saber colonial também se dá no corpo, assim como a escrita e os arquivos muitas vezes são importantes instrumentos para disputar histórias subalternas. A relação entre esses domínios do conhecimento, como foi dito, é entendida como dialética. O argumento aqui é que as análises culturais a partir dos Estudos da Performance abrem caminhos potentes, permitindo o acesso a construção da memória por meio da investigação das práticas corporais cotidianas, dos rituais, da dança, do teatro, das manifestações políticas, dos festejos e cerimônias. O rendimento dessa perspectiva contribui para mapear e aprofundar as histórias que margeiam os cânones, dado que muitas vezes elas são apagadas dos registros oficiais ou representadas de formas reducionistas e estereotipadas, justamente para garantir a sustentação dessas narrativas de poder hegemônicas. Assim se abrem perspectivas que desestabilizam pretensões coloniais de uma História única e progressiva.


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