Anulação dos julgamentos do Carandiru fortalece o crime, diz pesquisador

Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, lamenta decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que anula condenações aos envolvidos no massacre do Carandiru

 30/09/2016 - Publicado há 7 anos
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Remoção de presos da Casa de Detenção, no Complexo Penitenciário do Carandiru - Foto: Daniel Guimarães via Portal Governo do Estado de São Paulo
Remoção de presos da Casa de Detenção, no Complexo Penitenciário do Carandiru – Foto: Daniel Guimarães via Portal Governo do Estado de São Paulo

“É muito claro que houve um massacre.” Além de ser a opinião de Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, foi assim que o assassinato de 111 internos da antiga Casa de Detenção do Carandiru pela Polícia Militar (PM) de São Paulo, ocorrido em 1992, ficou registrado na história, na imprensa nacional e internacional, na memória da população e até mesmo num filme. Porém, em decisão proferida na terça-feira, 27 de setembro, o desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, classificou a ação dos policiais como “legítima defesa”. Com este argumento, que Manso considera um “escárnio”, Sartori não só anulou as decisões dos seis julgamentos a respeito do caso – que condenaram 74 policiais a até 624 anos de prisão -, como também votou pela absolvição de todos eles. 

Sartori foi o relator da sessão, e seu voto pela anulação dos julgamentos foi acompanhado pelos outros dois desembargadores, Camilo Léllis e Edison Brandão. Estes porém, não concordaram com a absolvição. A justificativa para a anulação reside no fato de que a condenação é genérica, pois não há provas que individualizem a conduta dos policiais para apená-los por crimes específicos que tenham cometido separadamente. No caso da absolvição, o argumento é que três policiais foram absolvidos nos julgamentos anteriores, portanto não faria sentido punir os demais.

Manso reconhece a alegação da pena generalizada, e afirma que o tema foi amplamente discutido nas sessões em que se deu a condenação dos envolvidos. Porém, ele defende que mesmo após a alteração da cena do crime pelos policiais, que fizeram os presos sobreviventes empilhar os corpos e lavar o sangue do chão (ação que está documentada em imagens), ainda restaram evidências sólidas de um massacre. “Os presos estavam desarmados, os testemunhos são muito claros de que as facas foram jogadas, e quem entrou foi a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), uma tropa despreparada para esse tipo de confronto. Houve uma quantidade imensa de disparos (muitos na cabeça e pelas costas) e, mesmo com a dificuldade criada pelos envolvidos para realizar a perícia, foi possível verificar isso”, explica o pesquisador. Além disso, Manso, que esteve presente em várias sessões do julgamento em 2012, lembra que as próprias autoridades reconheceram o erro de enviar a Rota para resolver a situação, criando depois disso uma tropa especializada para lidar com levantes e rebeliões.

O então governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, e o Secretário de Segurança Pública do Estado, Pedro Franco de Campos, sequer foram processados por sua atuação na ocasião. Para Manso, embora o fato soe como impunidade, ele é razoável. “Conversei com o Fleury na época, ele diz que não autorizou a entrada da Rota no Carandiru, coisa em que não acredito, mas não acho que houve a ordem ‘mata todo mundo’. Diante das circunstâncias, era necessário mandar tropas para conter a rebelião, e ali houve um erro técnico da Polícia, num momento de histeria coletiva, que resultou no massacre. Se formos responsabilizar o chefe do executivo sempre que a PM matar alguém, ninguém poderá ser governador de São Paulo”, argumenta.

Bruno Paes Manso é pesquisador do NEV - Núcleo de Estudos da Violência da USP. foto: Cecília Bastos/Usp Imagens
Bruno Paes Manso é pesquisador do NEV – Núcleo de Estudos da Violência da USP –
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Porém, o pesquisador reconhece que a crítica e a discussão sobre a postura do governador em relação aos abusos da Polícia são necessárias. “Quando o (atual governador) Geraldo Alckmin é conivente e frouxo com a PM, diz que ‘quem não reagiu está vivo’ (declaração dada sobre o assassinato de nove suspeitos pela Rota em 2012), é lógico que isso vai soar como um aval para o policial sair matando.”

Baseado nisso, Manso defende que, além da questão jurídica, o caso do Carandiru seja tomado por uma discussão política e até mesmo moral. “Criou-se em 1993, depois do massacre, a Secretaria de Administração Penitenciária, e hoje temos 164 presídios (na época eram 30) e 230 mil presos no Estado. Mas nunca se discutiu o que acontece dentro deles, são verdadeiras masmorras medievais, buracos negros onde as pessoas acham que podem jogar os criminosos e resolver o problema, tornar o mundo mais seguro. Mas não é assim que funciona, os presídios não são um universo paralelo desconectado do nosso”, diz o pesquisador.

Ele ressalta que, partir do massacre do Carandiru, e com a continuidade dessa política que “trata os presídios como depósitos de pessoas”, surgiu o PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa que se articulou ao longo dos anos e hoje controla o crime dentro e fora dos presídios, tendo se tornado o maior articulador do tráfico de drogas no País, e que hoje estende seus tentáculos em vários outros Estados e atua para eleger políticos e se infiltrar na própria Polícia. “O PCC tem 23 anos, e o Estado é governado pelo PSDB há 22. O que foi feito em relação ao sistema carcerário aqui? Muito pouco, o único responsável por pensar esse modelo é o Lourival Gomes, que foi carcereiro e é Secretário de Administração Penitenciária desde 2009, mas há quase 20 anos está no comando de alguma maneira, é um homem de carreira. Fora ele, ninguém tem interesse no assunto”, lamenta.

Crime fortalecido, democracia enfraquecida

Segundo Manso, a decisão do desembargador Ivan Sartori mostra autoritarismo e desconexão com a realidade, e tem a ver com o momento político vivido pelo País. “Os juízes, com seus salários de mais de R$ 30 mil, parecem viver em palácios de cristal, em torres de marfim, isolados da realidade. É impressionante a falta de compreensão da implicações que uma decisão como essa tem na sociedade”, afirma.

O pesquisador critica também os critérios tomados pelos juízes para tomar suas decisões. Ele acredita que, muitas vezes, em vez de critérios técnicos, o que prevalece são visões de mundo, preconceitos e idiossincrasias dos magistrados. “É muito corriqueiro, todos os dias vejo pessoas pobres sendo presas por motivos fúteis, ou com base em testemunhos frágeis de policiais que forjam flagrantes, ao mesmo tempo em que se quer absolver os responsáveis por mais de cem mortes. Que justiça é essa? É surreal a irresponsabilidade desse juiz num momento como este.”

Manso crê que o veredicto de Sartori terá sérios efeitos na sociedade. Segundo ele, nos últimos 30 anos, mais de 1 milhão de pessoas já passaram pelo sistema carcerário paulista. Além disso, considerando que os atuais 230 mil presos possuem em média três familiares, há também cerca de 1 milhão de pessoas ligadas aos presídios de alguma forma, um número que configuraria a quinta cidade mais populosa do Estado. “É um universo considerável de pessoas envolvidas. Sem falar naqueles que diariamente vivem o dilema de passar quatro horas no trânsito para ganhar uma mixaria para sobreviver ou entrar para o tráfico. Imagine o sentimento de raiva que uma pessoa como essa tem ao ver que a sociedade à qual ele pertence e serve não dá a mínima quando 111 indivíduos como ele são mortos. Isso fortalece o discurso do PCC, fortalece o crime e enfraquece a democracia”, afirma.

A Promotoria vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça de São Paulo contra a anulação das condenações. Caso não tenha sucesso, será realizada uma nova sessão, ainda sem data definida, para julgar os envolvidos, que seguem respondendo em liberdade.

Ouça abaixo a entrevista feita pelo repórter Diego Smirne com Bruno Paes Manso para a Rádio USP:

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