Alunos se inspiram em Saramago para pensar o jornalismo atual

Livro produzido por estudantes da USP se baseia na peça “A Noite”, do escritor português

 03/12/2020 - Publicado há 3 anos
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Foto: Gerd Altmann – Pixabay/Jornal da USP

Nas aulas sobre jornalismo digital ministradas on-line neste semestre, alunos de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP foram convidados a ler a peça A Noite, do escritor português José Saramago (1922-2010), e a escrever sobre ela. O resultado dessa atividade é o recém-publicado livro A Noite e a Internet – O Que José Saramago Pode nos Ensinar sobre o Jornalismo Digital?, disponível gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

No livro, os alunos comparam as situações vividas na peça de Saramago – ambientada numa redação de jornal na noite anterior à Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal em 25 de abril de 1974, época anterior ao advento da internet e do jornalismo digital – com o trabalho dos jornalistas no século 21. A obra foi organizada pelo pesquisador Rafael Duarte Oliveira Venancio, conferencista convidado que propôs a atividade aos alunos, e pelo professor Luciano Maluly, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA.

Como explica Venancio, A Noite mostra o comportamento de três grupos de pessoas que atuam na produção de notícias: os dirigentes do jornal, os jornalistas e a equipe técnica. “Esse contexto traz a dinâmica da produção jornalística e permite debater temas como o que noticiar, o estatuto da verdade e as hoje chamadas fake news”, afirma o pesquisador. “Como eu verifico se um boato é notícia ou fato? Eu devo noticiar algo que é contra minha ideologia política? Devo noticiar algo só porque é a favor da minha ideologia política? São questões como essas que a peça nos faz discutir.”

Capa do livro A Noite e a Internet, produzido por alunos do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – Foto: Divulgação

Os temas atemporais do jornalismo abordados na peça de Saramago tornam possível discutir jornalismo digital a partir de uma obra artística produzida num tempo que não é digital e percebê-los em debates atuais, continua Venancio. O pesquisador destaca que é importante mostrar que certas práticas jornalísticas, debatidas até com fervor nas redes sociais – como o interesse público e a busca pela veracidade das notícias -, não são características especificamente da internet ou do jornalismo digital, mas sim procedimentos que se encontram no jornalismo desde sempre. “O olhar histórico permite relativizar, colocar coisas em contexto e fazer os alunos entenderem o que é específico do digital e o que é algo que sempre compôs o jornalismo”, completa Venancio. 

A Noite e a Internet traz textos de 12 alunos, além de um capítulo escrito por Venancio e a apresentação assinada por Maluly. Um desses textos, O Imediatismo Instaurado no Ato de Noticiar, é de autoria de Tiago Sameshima de Medeiros, que, ao comparar o fazer jornalístico exposto na peça de Saramago e o praticado atualmente, dá destaque para o tempo de divulgação das notícias. “Se no caso da redação relatada em A Noite houve grande debate sobre a inclusão ou não do rumor posteriormente confirmado de ocorrência de uma manifestação política, nos dias atuais não haveria brecha para postergar a notícia”, escreve o aluno. “Atualmente o tempo da notícia é quase inexistente.”

Outro texto publicado no livro é Os Conceitos Jornalísticos em Um Panorama de Revolução, do aluno Gabriel Corrêa Cillo. Citando o ambiente descrito em A Noite, Cillo destaca que “a liberdade de imprensa nessa redação de jornal não é um conceito respeitado, visto o regime salazarista, de origem fascista, vigente. Por isso, há um dualismo de forças entre as personagens que estão alinhadas com a ideologia do governo e os que são contrários ao regime”. Ele compara a situação de Portugal em 1974 e o Brasil de hoje. “É extremamente semelhante a forma como redações de jornais lidam até hoje com questões ideológicas, tendo funcionários que apresentam visões e opiniões díspares dentro da mesma mídia. Perante esse contexto, há um controle da autonomia de publicação dos jornalistas na peça A noite, mas um controle velado, semelhante em muitos aspectos à perspectiva atual, não considerando o princípio básico do interesse público das informações.”
Já em O Poder nas Relações entre Jornalistas e Público: a Atualidade Refletida em A Noite, de José Saramago, a aluna Marina Faleiro Caiado utiliza a obra do escritor português para refletir sobre as fake news, entre outros temas. Citando o trecho em que um dos personagens da peça faz uma série de perguntas – “E notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objectivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade?” -, ela escreve: “A última frase desse trecho, sobretudo, é muito interessante, pois fala sobre a mentira como uma necessidade das pessoas. O público precisa e quer acreditar em algo, mesmo que não seja verdade ou mesmo que seja apenas uma das muitas verdades possíveis. As pessoas querem acreditar nos jornais como querem acreditar em Deus, pois é reconfortante saber que existe algo ou alguém que sabe mais e pode dizer a verdade a elas. É por isso que preferem acreditar mais no que o jornal diz do que em seus próprios olhos. É claro que, em 1974, era mais difícil verificar se uma notícia era ou não verdadeira, já que o jornal era um dos principais veículos de comunicação e o acesso às informações não era tão fácil como é com a internet”.
A aluna Mayumi Yamasaki, que no livro organizado por Venancio e Maluly assina o artigo Moral Baixa, achou a experiência bastante válida. Para ela, ter contato com uma narrativa que retoma as redações anteriores ao mundo digital e compará-la com sua vivência jornalistica hoje fez com que refletisse sobre a origem das mudanças no jornalismo, se essas mudanças são positivas ou negativas e sobre o que se pode fazer a partir de agora. “Eu fiquei mais consciente do jornalismo que faço. Isso me fez ser mais crítica sobre a minha própria postura”, conclui.

O livro A Noite e a Internet – O Que José Saramago Pode nos Ensinar sobre o Jornalismo Digital?, organizado por Luciano Maluly e Rafael Duarte Oliveira Venancio, está disponível gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

 


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