Gripe tem tamanho?

Por Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq, e Henrique Braga, doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP

 28/04/2020 - Publicado há 4 anos

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O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, por sua forma original, são ameaçadoras demais.

(Luís Fernando Veríssimo, Diminutivos)

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Marcelo Módolo – Foto: Acervo Pessoal

 

Henrique Braga – Foto: Acervo Pessoal
Quem acompanha o debate político nacional, vez ou outra depara-se com um recurso argumentativo aparentemente simples, mas bastante produtivo: a flexão de grau. Entre “rachadinhas” e “mensalões”, “marolinhas” e “gripezinhas”, os atores políticos (seja da política institucional, seja da imprensa) se valem de uma conhecida metáfora conceitual: tamanho é importância.

Metáforas conceituais

A publicação, na década de 1980, do monumental Metáforas da vida cotidiana, obra dos norte-americanos George Lakoff e Mark Johnson, deu nova e mais elevada dimensão ao estudo das metáforas. Nessa perspectiva cognitivista, a metáfora deixa de ser apenas uma figura de linguagem – estudada nos manuais de estilo ou de teoria literária – para tornar-se um processo estruturador da linguagem. A metáfora estaria no dia a dia, nos pensamentos e ações, o que mostraria o fato de que o sistema conceptual do ser humano é fundamentalmente metafórico por natureza.

Os reflexos desse sistema conceptual na linguagem são manifestados nas “metáforas conceptuais”. Entre outras, Lakoff e Johnson propõem, por exemplo, a metáfora “uma discussão é uma guerra”. Segundo eles, em nossa cultura, o conceito discussão tem como base o conceito guerra. Em uma discussão, os debatedores ocupam dois lados opostos (como fariam dois exércitos), para defender sua posição e atacar a posição adversária (como as tropas em combate). Nossa forma ordinária de conceber uma discussão é essa, ou seja, aqui a metáfora não é um procedimento retórico, para conferir maior expressividade ao texto, mas um processo linguístico-cognitivo relacionado à própria compreensão da realidade.

Com esse e outros exemplos, linguistas cognitivistas vêm mostrando que vivemos de acordo com as metáforas que existem na nossa cultura. Não temos escolha: fazer parte da sociedade, interagir, ser entendidos, entender o mundo, pressupõe esse olhar “metafórico” sobre a realidade. O signo linguístico é sempre perspectivado de alguma maneira.

Tamanho é documento

Nessa rede metafórica básica, universal, o discurso político parece plasmar um universal cognitivo interessante, a metáfora de que tamanho implica importância (tamanho → importância). Segundo essa concepção, aquilo que é literalmente maior, que atinge posições superiores, teria valor positivo; o que é menor, portanto, seria inferior (convém lembrar que essa é uma das metáforas relacionadas a tamanho, não a única: em outros contextos, o pequeno é visto como delicado e afetuoso).

Assim, a flexão de grau dos substantivos em língua portuguesa, nessa esfera de atuação, parece dizer muito: para atribuir grande valoração, teríamos “mensalão” e “petrolão”; para diminuir o valor, “marolinha”, “rachadinha” e o atualíssimo “gripezinha”.

De “gripezinha” e “resfriadozinho”, o ator político mais recente a dar exemplos sobre o assunto foi o presidente Jair Bolsonaro, referindo-se à covid-19: “Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”. O sufixo zinho/zinha, que faculta o grau diminutivo sintético, mostra-se como expressivo recurso linguístico para expressar modalidade.

Em uma perspectiva cognitivista, pode-se afirmar o seguinte: de um lado, a gripe não tem uma materialidade física, portanto não tem literalmente um tamanho; de outro, o enunciador pode qualificá-la metaforicamente como pequena, com base na ideia de que “tamanho é importância”. Assim, na tentativa de minimizar os efeitos do novo vírus, ou simplesmente desprezá-los, o mandatário se vale de uma metáfora conceptual.

Dessa forma, o diminutivo sintetiza de forma eficiente a mensagem que o presidente – direta ou indiretamente – insiste em veicular: a covid-19 seria algo tão pequeno, desprezível, que não mereceria maiores atenções, ações, “histerias”.

No discurso político, o ator deixa de se situar em um nível da convicção, ultrapassa-o, com o intuito de atingir o nível da ação, a fim de levar o público ouvinte a agir. Por estar inserido em uma situação tensa e conflituosa, Bolsonaro esforça-se por argumentar e convencer seus interlocutores por meio de recursos retóricos, mesmo que as considerações científicas não lhe deem qualquer respaldo.

Grau de pragmatismo

Embora a marcação de grau seja polissêmica no português brasileiro, seu uso no discurso político parece pautar-se em uma manifestação regular: a metáfora primária “tamanho é importância”. Aumentativos como “mensalão” e diminutivos como “marolinha” são recursos sintéticos e expressivos para manifestar opinião e explicitar posicionamento no debate público.

 


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