A bancada de peroba com as marcas de infinitas gravuras – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
..
.
Setembro de 2019. O sol de quase primavera entra pela grande janela do ateliê de Evandro Carlos Jardim, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP há quase cinco décadas. Ilumina o espaço em busca do gesto do mestre artista para ser impresso em papéis, telas, madeiras. Uma parceria de sete décadas em incontáveis gravuras e também em óleos, aquarelas, esculturas.
Caminhar no ateliê observando as ferramentas – goivas, pincéis, ponta-seca, buril – e se deparar com a bancada de peroba onde estão impressas as linhas de tantas gravuras é perceber os dias e noites de um artesão. Os 84 anos do paulistano habitam cada canto. Evandro Carlos Jardim foi traçando seu cotidiano também como professor. Aprendeu o que ensinou. E incentivou alunos ao que sabia. ¨Acredito que todo ser humano tem, em princípio, a empatia por algo. A vocação é um chamado interior que depende do esforço, fidelidade, dedicação.”
Jardim tem a sua história em imagens que vai arquivando desde a infância. Cada gaveta que abre reserva uma surpresa. “Esta é a pasta dos meus primeiros desenhos”, conta sorrindo. São papéis de todos os tamanhos guardados com cuidado. Imagens expressas com criatividade e a habilidade de um garoto de pensar o mundo desenhando.
.
Em 1947, fui estudar no Colégio Caetano de Campos. Nos arredores do colégio, na Praça da República, havia todo um percurso de sugestões para se descobrir a cidade.”
..
O artista continua folheando os cadernos de desenho. São Paulo, cidade onde nasceu no dia 15 de abril de 1935, está presente em água-forte, água-tinta, xilogravura sobre papel. “Em 1947, fui estudar no Colégio Caetano de Campos. Nos arredores, na Praça da República, havia todo um percurso de sugestões para se descobrir a cidade.”
Jardim morava perto do Ibirapuera. Ia de bonde do Paraíso até a escola. “Tinha o Masp, na Rua 7 de abril, além das galerias Itá e Rio Branco, na Barão de Itapetininga. Passei a ler sobre pinturas, gravuras e artistas na seção de arte da livraria Brasiliense. Havia a Kosmos também e a Biblioteca Mário de Andrade”, conta. “A primeira vez que aprendi sobre a técnica em água-forte foi com um professor de ciências. Ele incentivava os alunos a visitar as exposições de arte.”
Em 1953, Evandro Jardim entrou na Escola de Belas Artes de São Paulo. Estudou pintura, modelagem, escultura. O aprendizado da gravura foi com Francesc Domingo Segura, pintor catalão radicado no Brasil.
…
.
Arte é a necessidade de expressar um sentimento. Converso com o estudante e pergunto o que ele está sentindo necessidade de fazer. E ele fica à vontade para deixar fluir a sua manifestação artística naturalmente.”
São Paulo pulsa com a sua gente, seus problemas e também com suas árvores, pássaros e montanhas na obra de Jardim. As Noites no Quarto de Cima, título de uma de suas séries que traduzem a contemplação do tempo, amanhecem sempre com novos tons.
Ao responder para o Jornal da USP sobre o cotidiano do artista, a esposa Maria Auxiliadora, que divide as suas histórias há 51 anos, assinala: “Cada manhã, cada dia nas nossas vidas é sempre diferente. Está sempre começando e recomeçando”. É essa luz que se renova nos desenhos de Jardim. Um tempo que vai e volta infinitamente.
O Pico do Jaraguá ressurge nas gravuras de Jardim, com luz e sombra diferentes. “Em tupi-guarani, Pico do Jaraguá quer dizer senhor do vale”, explica. A grande montanha de São Paulo é reverenciada no desenho do artista. Há quem faça a comparação de que tem o mesmo brio do Monte Fuji na arte japonesa ou da montanha de Saint Victoire, na de Paul Cézanne.
Jardim capta o senhor do vale como se tentasse imprimir os diferentes olhares dos paulistanos. O mesmo acontece com as árvores que pontuam o seu caminho. A mesma árvore com pássaros, sem pássaros, sob o vento, frio ou calor de contínuas primaveras, verões, outonos e invernos.
Quando comecei a lecionar, refleti muito sobre o que a natureza da arte se impõe. O que priorizar na disciplina de arte? Pensei especialmente na importância da liberdade de expressão.”
.
.
O mesmo movimento das gravuras está na rotina como professor, lecionando na USP, Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Escola de Belas Artes e nos ateliês de gravura do Sesc. Uma trajetória de mais de seis décadas formando e incentivando jovens que têm se destacado na arte contemporânea brasileira.
“Quando comecei a lecionar, refleti muito sobre o que a natureza da arte se impõe. O que priorizar na disciplina de arte? Pensei especialmente na importância da liberdade de expressão. Se você não se sente livre, é impossível criar”, explica. “Arte é a necessidade de expressar um sentimento. Nunca pedi para um estudante entregar o que já tinha feito ou o que aprendeu, estudou. Essa exigência poderia parecer um pré-requisito para assistir às aulas. Não faço isso. Converso com o estudante e pergunto o que ele está sentindo necessidade de fazer. E ele fica à vontade para deixar fluir a sua manifestação artística naturalmente.”
Jardim define o caminho da arte como um horizonte aberto. “Arte é mais tentativa de expressar aquilo que sente e transmitir para todos indistintamente.” A liberdade de expressão tem resultado na formação de artistas que se dedicam à gravura, instalação, pintura, escultura e todas as manifestações artísticas. E, o mais curioso, vem formando artistas professores como Marco Buti, Claudio Mubarac, Madalena Hashimoto, Paulo Portella Filho, Luiz Bagolin e Rosana Paulino, entre tantos outros.
.
Caminhar no ateliê observando as ferramentas – goivas, pincéis, ponta-seca, buril – e se deparar com a bancada de peroba onde estão impressas as linhas de tantas gravuras é perceber os dias e noites de um artesão – Fotos: Marcos Santos/USP Imagens
.