Quem foi Bernardo Bertolucci?

Francis Vogner dos Reis é mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)

 30/11/2018 - Publicado há 5 anos

Foto: Arquivo Pessoal

Quem foi Bernardo Bertolucci?”, que morreu no último dia 26 de novembro, aos 77 anos, não é uma indagação retórica ou proposição que simplesmente pretende introduzir não iniciados a uma obra importante. Mas a pergunta é um convite a tentar entender obra e trajetória significativas da potência, dos descaminhos e das contradições de um dos autores mais representativos do cinema moderno. Essa pergunta modesta e com intenção provocativa visa sim a apresentar o diretor em uma perspectiva introdutória, de valorização de sua obra e etc., mas também não podemos deixar de dimensionar que entre o início de sua obra nos anos 1960 até o final, na segunda década dos anos 2000, seu cinema passou por mudanças importantes que são exemplares para o mal e para o bem, da figura (e da metamorfose) do “autor moderno” e suas relações complexas com seu tempo histórico.

Bernardo Bertolucci foi filho de Atillio Bertolucci, poeta, historiador da arte e crítico de cinema italiano. Foi por meio do pai que virou assistente de direção de Pier Paolo Pasolini em Accatone (1961). Bertolucci estudou no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma, onde teve como colegas Marco Bellocchio e o brasileiro Paulo Cesar Saraceni.

Foto: laurentius87 via Flickr – CC

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Em 1962 ele debuta na direção de longa-metragem com A Morte (La Commare Seca), mesmo ano em que seu colega de turma brasileiro Saraceni estreava também no longa-metragem com Porto das Caixas. As semelhanças e diálogo de Bertolucci (e também de Bellocchio) com os filmes de alguns diretores do cinema novo brasileiro são relevantes: começam nos anos 1960 sob o impacto do neorrealismo, da nouvelle vague, da cinefilia, da política dos autores e da cultura política de esquerda do pós-guerra, forjando um cinema entre a brutalidade materialista e uma estilização da luz expressionista. A Morte (assim como Porto das Caixas, do colega Saraceni) tensiona a força do documento histórico, seja no espaço (locações reais das ruas, dos arrabaldes, dos interiores) ou no drama (personagens afetados por um contexto social e ideológico de gravidade), com a estilização da câmera e da luz em uma dialética entre matéria e forma.

Antes da Revolução – Foto: Divulgação via YouTube

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De A Morte (La Commare Seca), de 1961, passando por Antes da Revolução, em 1964, Partner, em 1968, O Conformista e A Estratégia da Aranha, ambos de 1970, Bertolucci traçou um painel crítico da cultura política italiana do pós-guerra, da desmaterialização das pautas da esquerda (mais precisamente comunista) e do fantasma do fascismo as tramas sociais e o imaginário da Itália.
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Um de seus melhores filmes é curiosamente o documentário de intervenção La Salute è Malata (1971), que denuncia o sistema de saúde da Itália e as reuniões de uma sessão do Partido Comunista Italiano sobre a questão do debate sobre saúde nas eleições.

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Essa primeira fase é um painel da melancolia de uma geração que cultivava ideias avançadas, mas com um modo de vida aferrolhado à impotência e à desilusão política. É importante ressaltar tanto a busca de Bertolucci por um cinema que com uma caligrafia pessoal tentava tomar parte nas discussões políticas de seu tempo, como, também, um mal resolvido psicologismo decadente que faz fundo moral para formas aparentemente arrojadas. Bertolucci seria crítico da decadência ou parte dela em um conformismo neurastênico?

Essa pergunta está presente nesse primeiro momento de sua obra e, o interessante, é exatamente o modo como os filmes pendem de um lado para outro. O sintoma da decadência culposa está ali juntamente com o seu vigor de cronista e estilista um pouco elegante e muito maneirista.

Um de seus melhores filmes é curiosamente o documentário de intervenção La Salute è Malata (1971), que denuncia o sistema de saúde da Itália e as reuniões de uma sessão do Partido Comunista Italiano sobre a questão do debate sobre saúde nas eleições. É um filme de agitação, com uma poesia direta e quase rudimentar, que foi projetado nos muros da cidade durante as eleições de 1971. Esse filme incomum do diretor é de total exterioridade, o oposto do intimismo presente na sua obra.

Foto: Sarah Ackerman via Wikimedia Commons – CC

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Em 1972 ele começa a segunda fase, em que se tornaria um “autor” do cinema internacional. Não um autor no sentido de ser um artista notabilizado pela personalidade e pelo estilo na contramão da homogeneização do cinema mainstream, mas como uma commodity de mercado do chamado “cinema de arte” que nos anos 1970 se estabelece com relativa hegemonia nos principais festivais europeus. Um artista de suposto bom gosto, com inclinação pelos temas sérios e academicamente bem executados. O Último Tango em Paris (1972), softcore “ouro de tolo” que foi recente alvo de polêmica por sua conduta indefensável de violar em cena Maria Schneider, e juntamente com seus filmes posteriores Novecento (1976) e La Luna (1979), foi realizado em coprodução internacional. Três filmes que soam falso em quase tudo.
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Em 1981, de volta à Itália, Bertolucci realiza A Tragédia de um Homem Ridículo, em que um industrial (Ugo Tognazzi) tem um filho sequestrado por um grupos extremista. Aqui Bertolucci se debruçou sobre os Anni di piombo (Anos de Chumbo), notabilizados por atentados de extrema-direita e extrema-esquerda na Itália. É um filme interessante, ainda que um pouco cínico no modo como tece sua trama política.

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Em 1987, o diretor realiza O Último Imperador, seu primeiro filme produzido pelo inglês Jeremy Thomas e que lhe deu nove Oscars. Os filmes que viriam a partir daí, com a honrável exceção de O Céu que nos Protege (1990), são filmes de “cinema de arte”, às vezes revisionistas (Os Sonhadores), em outros momentos pouco imaginativos em seus dramas (O Pequeno Buda, Eu e Você). Esse conjunto não se notabiliza por um estilo, por uma perspectiva estética, ou por alguma inquietação cinematográfica, mas sim pelo artesanato acadêmico com um verniz de autor prestigiado jogando com clichês do intimismo europeu de fundo psicológico e observação frágil (demasiadamente cautelosa) sobre os costumes. Como Wim Wenders, Bernardo Bertolucci em um certo momento representou a desidratação do chamado “cinema de autor”, sublimando suas próprias contradições e inquietações ao adotar a persona do artista de cinema de prestígio no mainstream, justamente pelo fato de não ser radical demais (como Godard), nem demasiadamente comum (como o cinema da grande indústria), não ferindo assim sensibilidades na sua pretensão de universalismo.

O Último Imperador – Foto: Divulgação via YouTube

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Bernardo Bertolucci representa de maneira exemplar um diretor que começou tomando parte da potência estética e política dos novos cinemas dos anos 1960 e aos poucos foi sendo cooptado por uma máquina de legitimação artística quase automática da indústria cinematográfica. É preciso ver e rever Bertolucci, pois sua obra tem a virtude da complexidade que até nos maus filmes afirma um cineasta dotado de um olhar particular.

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