O 68 francês e o cinema

Nicolau Bruno de Almeida Leonel é realizador de filmes e doutor em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP

 26/11/2018 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 28/11/2018 as 10:10

Foto: Henri Glaeser/Coleção Marin Karmitz

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Nicolau Bruno de Almeida – Foto: Arquivo pessoal

Maio de 68 não acontece como uma geração espontânea, nem como um acidente natural. A versão da história oficial quer fazer parecer que maio de 68 foi um momento isolado na história, mas o que se observa num olhar atento é que anos de luta contra o colonialismo e contra o capitalismo antecederam aqueles meses de insurreição popular.

O cinema francês de maneira particular é uma testemunha privilegiada desta trajetória, temos cineastas que se aliam aos movimentos da negritude como Chris Marker e Alain Resnais que fazem o filme As estátuas também morrem (1953), que nasce por encomenda de Alioune Diop, editor chefe da revista Présence Africaine. Também Renée Vautier, um cineasta anticolonialista da primeira hora, se engaja na filmagem das lutas da Frente de Libertação Nacional, durante a guerra na Argélia. Em 1962 ocorre em Paris o massacre de 17 de outubro de 1961. Trinta mil argelinos marcharam por Paris sendo brutalmente atacados pela polícia francesa, o que resultou na morte de centenas de argelinos que eram jogados no rio Sena para desaparecer com os corpos. Jacques Panigel registra o testemunho dos sobreviventes num filme que ficou 50 anos proscrito e que era exibido em projeções clandestinas, muitas atacadas também pela polícia. Outro caso importante é o delicado filme Eu tenho oito anos (1962), de Yann Le Masson, com a sobreposição de desenhos de crianças filhas de guerrilheiros do FLN mortos e torturados.

As estátuas também morrem, de Alain Resnais e Chris Marker – Foto: Reprodução

Não é casual que o candidato a presidente da direita francesa, em 2007, falasse que a memória de maio deveria ser ‘liquidada de uma vez por todas’.

Já em 1959, com a eclosão da Revolução cubana, muitos foram os cineastas que passaram pela ilha, construindo fortes laços de solidariedade e intercâmbio. Armand Gatti, Chris Marker, Agnès Varda, entre tantos outros realizaram filmes por lá, junto ao recém-criado ICAIC, bastião do Nuevo cine cubano.

Há uma determinada historiografia que vê Maio de 68 como uma revolução de costumes, um evento de caráter exclusivamente juvenil, de uma classe estudantil rebelde circunscrita a algumas universidades. São muitos os estudos que contestam esta visão reducionista que tanto se alastrou nas formas de se inscrever o acontecimento na história oficial. Não é casual que o candidato a presidente da direita francesa, em 2007, falasse que a memória de maio deveria ser “liquidada de uma vez por todas”. É com a supressão e o sequestro da memória dos históricos gestos de resistência que se domesticam gerações sempre cegas para com os que lhes antecederam. O que na verdade o reducionismo abstrai é a solidariedade que a militância estudantil dos anos sessenta tinha para com os explorados e mais particularmente com dois elementos fundamentais da esquerda francesa: a luta anti-imperialista e a luta operária. É essa solidariedade que quer sufocar a visão reducionista de Maio de 68.

A história do cinema militante francês é particularmente reveladora desta tentativa de mascaramento. Pois a mobilização dos cineastas junto aos acontecimentos políticos na França data de muito antes. São três vagas fundamentais: a Guerra na Argélia, a Revolução cubana e a Guerra no Vietnã. Em vagas extremamente significativas, também nos antecedentes dos anos sessenta, vemos por exemplo cineastas como Renée Vautier, que passa a realizar filmes importantes para as denúncias de violências do colonialismo e das guerras coloniais. Vautier filma entre os guerrilheiros da FLN, Frente de Libertação Nacional da Argélia, chega a ser preso e, durante um tiroteio entre guerrilheiros e exército francês, recebe um estilhaço de câmera na cabeça, que nunca poderá retirar. Se, em 1950, Vautier filma África 50, em Uma nação Argélia (1954), Argélia em chamas (1957), Povo em marcha em 1963, são anos de ativa produção. Vautier nunca deixava de afirmar que era o único cineasta que tinha “literalmente” uma câmera na cabeça.

África 50, de Renée Vautier – Foto: Reprodução

Outros filmes têm um papel fundamental de denúncia do colonialismo francês na África, em particular com a guerra da Argélia. Primeiramente o filme de Chris Marker e Alain Resnais, As estátuas morrem também (1953), realizado por encomenda da revista Presença Africana, revista que agregava uma grande parte dos intelectuais e escritores que formaram a base do movimento literário da negritude, como Aimé Césaire e Leopold Senghor, entre outros. O filme partia da pergunta: por que a arte africana não está exposta no Louvre mas em museus ditos etnográficos ou de antropologia? O filme resulta num manifesto anticolonialista.

Já em 1967 a greve da Rhodia, em Besançon, havia aproximado um núcleo de cineastas de alta classe, como Chris Marker, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Joris Ivens, entre outros.

Um filme com papel fundamental é Eu tenho 8 anos (1962), de Yann Le Masson, também com a colaboração de Michelle Firk e Frantz Fanon, 12 anos censurado, um filme de uma delicadeza ímpar, pois realizado com a simples justaposição de desenhos de crianças e seus testemunhos sobre a guerra da Argélia, emitidos por suas vítimas mais frágeis e vulneráveis, que narram experiências de tortura e massacres.

Eu saúdo os cubanos, de Agnès Varda – Foto: Reprodução

Quando eclode a Revolução cubana, o cinema francês também se engaja com uma profícua realização de filmes sobre esse processo de luta e libertação nacional. Chris Marker realiza o Cuba si (1962), um filme delicado que desenha com entusiasmo a fisionomia da revolução, apresentando uma revolução dançante buscando um socialismo não alinhado com o comunismo da União Soviética, apresentando já os paradigmas de uma nova esquerda em busca de fazer a crítica radical do stalinismo. Outro filme que cumpre um papel é 1963, da cineasta Agnés Varda, também eminente cineasta da Rive Gauche da nouvelle vague francesa, com o filme Saúdo os cubanos (1963), um filme experimental feito principalmente com montagens fotográficas e textos com a voz over.

Em maio de 68, por todo o mundo o cinema tomava posição. As novas vagas, uma série de gerações de cineclubistas, de revistas de crítica de cinema, ou seja, toda uma multidão de adeptos da cultura cinematográfica, um imaginário que reunia de maneira inextrincável política e estética, erguiam-se em luta contra as estruturas tradicionais do cinema. A primeira manifestação de 1968 na França foi uma manifestação de cineastas, críticos, cineclubistas e cinéfilos, que ficou conhecida como a “Batalha da Cinemateca”. Em fevereiro de 1968, o Centro Nacional de Cinematografia demitia da direção artística e técnica da Cinemateca Francesa Henri Langlois, fundador e idealizador desta instituição. Depois do acontecimento tornar-se um escândalo nacional e do apoio de cineastas do mundo inteiro, em 14 de fevereiro, três mil pessoas fazem uma manifestação saindo da citadela Langlois e ocorrem conflitos duros entre manifestantes do comitê de defesa da Cinemateca e a polícia.

Cinemateca Francesa – Foto: Luke McKernan/Flickr.com

Porém o engajamento dos cineastas com as mobilizações operárias e a solidariedade com as lutas anticoloniais já eram antigos. Toda uma tradição que reunia um apoio militante de cineastas que se engajaram com as causas da guerra na Argélia, com a guerra no Vietnã e com a Revolução Cubana. Essas três vagas de lutas anticolonialistas forjaram o espírito de uma geração que via no imperialismo uma expressão de reminiscência do fascismo. Assim como observava na tricontinentalidade dos terceiros mundos uma perspectiva de internacionalismo anticapitalista e anticolonial, desalinhada com o bloco comunista.

Ao mesmo tempo se dava uma aproximação de cineastas com o movimento operário. Já em 1967 a greve da Rhodia, em Besançon, havia aproximado um núcleo de cineastas de alta classe, como Chris Marker, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Joris Ivens, entre outros. O movimento operário reivindicava a construção de uma outra cultura feita pelos operários em luta. Assim surge o Grupo Medvedkine de operários, formado a partir de um seminário sobre política e estética.

Já nos embriões do movimento estudantil uma rede internacional entre os países mais próximos se havia estabelecido, distribuindo os filmes que noticiavam as lutas ao redor do mundo, de tal forma que, quando se erguem as barricadas na luta dos estudantes no centro da cidade, a categoria cinematográfica está bastante mobilizada. Na primeira semana seguem-se ocupações das escolas de cinema e de arte, assim como constituem-se em assembleia os Estados Gerais do Cinema. Mais de três mil trabalhadores, estudantes de diversos setores do cinema se organizam numa assembleia que vai durar dias, tirando alguns princípios que incluem: Destruição dos monopólios, Autogestão a fim de lutar contra os mandarinatos e as burocracias esclerosadas, Abolição da censura. Durantes os meses de maio a junho, toda a vida profissional cinematográfica é interrompida, todos os filmes em produção têm seus dias de filmagem cancelados pela mobilização da greve dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, os Estados Gerais do Cinema iniciam uma produção paralela de cinema que se organiza na criação de pequenos filmes de intervenção, chamados filmes-panfletos, realizados com materiais de película que são recuperados dos laboratórios das escolas e de produtoras.





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