Lembrar do calabouço para não esquecer o perigo da injustiça

No dia 5, seminário na USP vai reconstituir a memória de prisões, asilos e outros espaços de exclusão

 01/11/2018 - Publicado há 5 anos
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Campo de concentração de Auschwitz, transformado em museu em memória às vítimas do Holocausto – Foto: Boris Kossoy

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Calabouços da ditadura militar, campos de extermínio nazistas, sanatórios e hospícios sobem seus muros cimentados na exclusão e na opressão. Cassam as pessoas da sociedade e arrebatam-lhes direitos, dignidade e vida. Quando seus portões caem e suas câmaras se esvaziam, a passagem do tempo e o silêncio são catalisadores fulminantes do alzheimer social, do apagamento dos vestígios de crimes e repressões. Para que os claustros não voltem a ser erguidos, é preciso tomar seus espaços e fincar a bandeira da memória nos escombros.

Essa é a orientação que dirige o seminário Espaços de Exclusão: História e Memória, que acontece no dia 5 de novembro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer), o evento reúne ex-presos políticos e pesquisadores da USP e de outras instituições. Em comum, as apresentações e debates alertam para a necessidade de preservar a história dos espaços de segregação, a fim de que injustiças não sejam repetidas.

Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da FFLCH e coordenadora do Leer, define espaços de exclusão como locais de controle dos corpos e das mentes, que podem existir tanto em regimes democráticos quanto autoritários. “Em distintos momentos, não só o Estado, mas também a sociedade civil e as comunidades científicas se mostram preocupadas em isolar determinados cidadãos que não correspondem à ordem instituída”, explica a professora.

De acordo com Maria Luiza, a segregação faz parte das estratégias de poder, seja do Estado ou de grupos específicos. “Aquelas pessoas que não obedecem, que estão fora das regras, são classificadas como indesejáveis e, como tal, são isoladas.” Contribui para essa dinâmica o que a professora chama de “ideologia do etiquetamento”, rótulos como “comunista”, “louco” ou “subversivo”, que são atribuídos às pessoas.

“Nós tentamos fazer um levantamento dessa ideologia do etiquetamento, como ela foi aplicada no Brasil e como favoreceu o isolamento das pessoas”, conta Maria Luiza. “Como essas pessoas acabaram entrando numa maquinaria que esquadrinha e desarticula o cidadão.”

Segundo a docente, o seminário procura trazer tais questões para o contexto brasileiro, analisando e resgatando a memória dos locais de isolamento. Maria Luiza adianta que duas publicações relacionadas ao tema já estão previstas para 2019: um inventário sobre os espaços de exclusão no Brasil e um livro com o conteúdo das apresentações do evento.

“É um seminário de alerta e sensibilização, que serve também para os regimes democráticos”, comenta Maria Luiza. “Nas democracias existem fissuras e é por essas aberturas que emerge o perigo de um controle dos corpos e das mentes.”
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A professora Maria Luiza Tucci Carneiro – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

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Recordar para não repetir

Porta de uma cela do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo, atual Memorial da Resistência de São Paulo – Foto: Pablo Di Giulio

Quatro mesas temáticas estruturam o seminário. Na primeira, o juiz e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Tulio Chaves Novaes fala sobre a importância da revelação do passado para se criar referências educativas compromissadas com a justiça. A docente da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) Priscila Ferreira Perazzo participa da mesa abordando as origens dos campos de concentração, no início do século 20, e sua reapropriação durante a Segunda Guerra Mundial, tanto no Brasil como no mundo.

Regressando ainda mais no tempo, a pesquisadora Lina Gorestein, doutora em História Social pela FFLCH, analisa a Inquisição da Igreja Católica portuguesa no Brasil colonial e o legado de sua intolerância. O pós-doutorando em Sociologia pela FFLCH Bruno Giovanetti fecha a primeira mesa do seminário tratando da importância da inventariação dos espaços de exclusão para se demarcar locais de memória, como foi feito com a antiga sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo, transformada em Memorial da Resistência.

A segunda mesa do evento esquadrinha as prisões da ditadura militar brasileira. O ex-preso político Maurice Politi, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, apresenta seu relato pessoal de envolvimento na resistência à ditadura. Militante político, Politi foi preso em 1970, passando por diversos cárceres ao longo de quatro anos. Ao ser libertado, foi expulso do País e viveu no exílio em Israel até 1980, retornando após a decretação da Lei da Anistia, em 1979. Atualmente, Politi atua na militância pelos direitos humanos e o estabelecimento de lugares de memória no Brasil.

Seu depoimento será complementado pela apresentação do pós-doutorando pela Unicamp Pádua Fernandes. O pesquisador analisa a denúncia da ditadura militar feita pelos presos políticos do presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo logo após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. A extensa carta assinada por 35 presos, conhecida como “Bagulhão”, constituiu um relato da tortura, de seus agentes e das irregularidades jurídicas das detenções.

Os vestígios da exclusão organizam a terceira mesa, abordando testemunhos e o reconhecimento da memória pelo poder público. A historiógrafa do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) Ana Luiza Martins investiga os bens tombados pelo órgão no Estado de São Paulo. Sua atenção se detém na área da saúde, com ênfase nos espaços de segregação relacionados ao mal de Hansen (lepra) e à tuberculose. Já a socióloga Ieda Britto trata da relação entre loucura e arte no Hospital Psiquiátrico do Juquery. A doutoranda em História Social pela FFLCH Fernanda Raposo completa a mesa falando sobre a percepção das crianças sobreviventes do Holocausto sobre os nazistas.

Asilo de Alienados São João de Deus, em Salvador, Bahia – Foto: Acervo Tucci/SP

Os espaços criados para confinamento dos doentes voltam ao debate na última mesa do seminário. Yara Monteiro, pesquisadora do Leer e co-organizadora do seminário, ao lado de Maria Luiza, trata do direito à justiça dos pacientes de hanseníase nos asilos criados em fins da década de 1920. O professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Claudio Bertolli Filho analisa Perversão Sexual e Câncer, obra de Paulo Coelho Netto, publicada em 1944, livro que apresentava o canceroso como um pervertido sexual. Maria Luiza participa da mesma mesa, discorrendo sobre os pacientes negros internados no Asilo dos Alienados São João de Deus, em Salvador, na Bahia.

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Loucura e abandono

O assunto abordado pela coordenadora do Leer remete a uma pesquisa feita nos anos 1990, a partir de documentos do asilo datados a partir de 1865. Segundo Maria Luiza, a maioria dos internos era constituída por negros. “Comecei a ler receitas médicas e registros de internação e constatei que parte dos internos era de negros. Alguns relatórios confirmavam que eram loucos e deveriam ficar isolados da sociedade porque comprometiam a composição étnica.”

A docente explica que encontrou apenas dois pareceres médicos que associavam a condição dos internos a causas sociais. “Essas pessoas estavam acima dos 70 anos e eram ex-escravos colocados nas ruas de Salvador por seus antigos proprietários, que não queriam assumir responsabilidade sobre o liberto necessitado de cuidados.” Conforme demonstrou a investigação da professora, o estado de diversos deles era motivado justamente pela exclusão. “Eram pessoas sãs, que não eram loucas, mas desnutridas. Se estavam delirando, era por fome, por abandono.”

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O seminário Espaços de Exclusão: História e Memória acontece no dia 5 de novembro, segunda-feira, das 9h às 18h15, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, em São Paulo). O evento é gratuito, com inscrições através do e-mail leer@usp.br (com direito a certificado) ou no próprio dia.


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