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Prefácio
Maria Antônia: uma rua na contramão
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Passados trinta anos da edição de Maria Antônia: uma rua na contramão, livro organizado por Maria Cecília Loschiavo Santos, a Diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) toma a iniciativa de reeditar a obra, no bojo das ações voltadas à rememoração dos trágicos acontecimentos de 1968, impropriamente conhecidos como “conflito estudantil”. Animada pelo espírito avesso às comemorações, a decisão de republicar o livro pretende, antes, suscitar a reflexão sobre aqueles dias de condensação do tempo na nossa instituição; talvez fosse mais pertinente afirmar da própria Universidade de São Paulo, uma vez que ambas as histórias se confundem; os episódios, igualmente, são revelações dos horizontes cinzentos que se descortinavam para o país.
Levados no roldão dos eventos que resultaram nas chamas que abateram parte do edifício que sediava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), os rumos da vida acadêmica da USP sofreram forte inclinação, quando a rua Maria Antônia assistiu impotente à destruição dos traços que haviam composto a sua personalidade, forjada ao longo de vinte anos, quando a sua edificação mais distinguida abrigou uma experiência universitária complexa e pioneira. A Maria Antônia nomeava tanto a FFCL, quanto a via na qual ela fora instalada, revelação de identidades intercambiáveis e que se espraiavam nas adjacências.
Considerado reduto das mentes ilustradas, eixo intelectual e de desenvolvimento da ciência pura na ainda então irisante metrópole paulistana, o edifício era templo reconhecido por seu caráter progressista, crítico das expressões autoritárias, renitente defensor dos valores superiores encarnados nos princípios das liberdades e do livre-pensamento. Maria Antônia: uma rua na contramão é verdadeiro réquiem das propostas civilizatórias que a FFCL portava; distingue-se por sua qualidade de libelo contra as formas desabridas de intolerância, tampouco se rende à crítica fácil daqueles que apostaram no esquecimento do seu projeto avançado; as trinta e uma contribuições que compuseram a edição original são forte expressão das promessas lá concebidas, persistentes nas suas manifestações de autonomia do espírito, condição inalienável seja da vida intelectual e científica, seja de uma sociedade superior.
O conflito, que desalojou a Faculdade e provocou a sua cisão, era arauto de um futuro sombrio para o Brasil, no qual a morte não esclarecida de um estudante prenunciava outras que estavam por vir. No curso fatídico dos acontecimentos, a Maria Antônia perdia a sua fisionomia, consumida nas labaredas que devoravam concepções que tanto a haviam diferenciado e que eram visíveis no seu clima particularmente libertário para a época e avesso às formas de domínio. Em poucos dias, a atmosfera tipicamente trepidante da FFCL encontrava o seu limite nas ações ignóbeis dos que se recusavam a reconhecer o direito à liberdade e à diversidade de pensamento. Nas sombras que se avizinhavam, também submergiam as apostas de um Brasil civilizado e senhor do seu próprio destino, projeto de seguidas gerações de brasileiros e que o fogo ritual do edifício já vaticinava.
Os eventos ocorridos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, embora reproduzissem situações semelhantes acontecidas em outros países, a exemplo da França e dos Estados Unidos, guardaram caráter singular, tendo em vista a diversidade dos respectivos contextos. No conjunto, expressaram a revolta da juventude contra o seu alijamento da cena política e pública, que se sentia impedida de participar da construção do futuro das suas nações. No Brasil, vivia-se a plena estruturação das bases repressivas do regime instalado em 1964, que resultou num Estado autoritário e francamente opressor, refratário a todas as expressões divergentes. Nesse cenário, os jovens da FFCL foram compungidos a enfrentar o aparato da repressão distante das amarras da lei. Por essa razão, as revoltas estudantis de 1968 experimentaram, certamente, a força dos sentimentos que ocupavam os corações e as mentes daqueles jovens insatisfeitos. Entre nós, foram cobaias do arbítrio que se aprofundava e expandia para todas as esferas da sociedade, no momento em que projetavam os seus sonhos e entravam para a vida adulta.
Como se vê, Maria Antônia: uma rua na contramão é obra imprescindível, por trazer os sentimentos e as compreensões de personagens centrais da cena que se desenrolou nos primeiros dias daquele outubro repleto de maus presságios. Se a sua primeira edição foi contemporânea do clima de promessas civilizatórias asseguradas pela carta constitucional de 1989, a presente publicação coincide com o retorno do velho fantasma autoritário. Quem sabe essa reedição possa se revelar um documento profícuo de repúdio às atitudes equívocas da regressão. Se assim for, a sua memória terá cumprido o papel fundamental, de referendo dos valores nela encarnados e de recusa das soluções ante libertárias.
A presente publicação é totalmente tributária do livro original concebido por Maria Cecília Loschiavo Santos que acolheu enfática e irrestritamente a nossa proposta de reedição. Sem a sua parceria e aquiescência o projeto não chegaria a seu termo; de modo semelhante, os colaboradores concordaram, diretamente ou por intermédio dos seus herdeiros, com a iniciativa. Sem a participação incansável de Abílio Tavares, de Plínio Martins e da logística do corpo funcional da Faculdade não teria sido possível dar corpo à obra. A todos, os meus mais sinceros agradecimentos.
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA
São Paulo, 15 de setembro de 2018.