A USP e as cotas

Mauro Bertotti é professor do Instituto de Química da USP

 09/06/2017 - Publicado há 7 anos

Mauro Bertotti – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A USP tem como missão institucional formar recursos humanos altamente capacitados e produzir conhecimentos relevantes. Esse desafio pode ser mais bem cumprido se a Universidade contar com alunos de sólida formação escolar, que saibam aproveitar a oportunidade de estudar numa universidade de excelência e que tenham consciência da responsabilidade de reverter para a sociedade o conhecimento adquirido.

No contexto apresentado, cabe a pergunta: o que a USP pode fazer para identificar os talentos da escola pública, motivá-los a ingressar na universidade e capacitá-los para enfrentar um vestibular muito concorrido? O fato é que esses talentos estão igualmente distribuídos entre a população, mas, obviamente, a condição socioeconômica é um componente que favorece uns em detrimento de outros, pois o caminho para um desenvolvimento escolar pleno é mais bem pavimentado para pessoas de estratos sociais mais altos, quer seja pelo maior capital cultural, quer pela escolarização básica mais qualificada.

Para minimizar os prejuízos causados pela desvantagem socioeconômica dos alunos oriundos de escolas públicas, a USP criou em 2006 o Inclusp, programa que tem como meta contribuir para a tarefa nacional de superação da desigualdade tão fortemente marcada na sociedade brasileira. Nos primeiros anos do Inclusp, concedeu-se um bônus de 3% a candidatos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas brasileiras.

Embora os alunos favorecidos pelo programa tivessem certas dificuldades nas avaliações iniciais após o ingresso na USP, a partir de certo momento mostravam capacidade de adaptação e logo apresentavam desempenho acadêmico similar ou muito próximo ao dos demais. Levando em consideração essa observação e o fato de que ainda uma fração relativamente pequena dos ingressantes na USP eram egressos de escolas públicas (em torno de 25%, na época), cogitou-se a possibilidade de aumento gradual do bônus. Dessa forma, no vestibular de 2012 o bônus máximo concedido já atingia o valor de 12% para determinado grupo de alunos.

O que a USP pode fazer para identificar os talentos da escola pública, motivá-los a ingressar na Universidade e capacitá-los para enfrentar um vestibular muito concorrido?

Avaliações do impacto do Inclusp na qualidade da graduação da USP foram realizadas nos primeiros anos do programa (até 2012) e dois parâmetros foram analisados: média do histórico escolar obtida no sistema de registros acadêmicos (Júpiter) e dados sobre a evasão. As informações foram coletadas e reunidas em dois grupos diferentes: alunos Inclusp e alunos Não-Inclusp (ingressantes que não receberam bônus no vestibular). Pela análise dos dados obtidos, ficou evidente que os alunos Não-Inclusp tinham desempenho ligeiramente melhor que o dos demais.

Entretanto, a diferença de desempenho era relativamente pequena e diminuía à medida que os alunos progrediam na Universidade. Situação oposta ocorria no caso da evasão, pois o índice era muito próximo para alunos ingressantes em 2012, mas a diferença entre os grupos se acentuava nas turmas mais antigas. De qualquer modo, os resultados apresentados naquele momento demonstraram de maneira inequívoca que os alunos Inclusp tinham desempenho muito bom na graduação.

Com relação à evasão, seria de fato esperado que, com o tempo, alunos da rede pública tivessem mais dificuldade em se manter na Universidade, tendo como reflexo indicadores de evasão mais altos. Nos últimos anos, o bônus concedido aos alunos inscritos no Inclusp aumentou e já atinge 25% para alunos que satisfazem algumas condições, ou seja, atualmente têm ingressado na USP alunos com notas relativamente mais baixas do que as dos alunos não participantes do programa de ação afirmativa.

Há dois anos, a USP criou nova porta de acesso à graduação e aderiu ao Sisu, de tal forma que vagas da Fuvest de quase todos os cursos da USP foram disponibilizadas para ocupação por candidatos que prestaram o Enem, na maioria dos casos empregando-se critérios socioeconômicos ou raciais. Considerando-se as duas portas de acesso (Fuvest e Enem), os inúmeros esforços da USP têm resultado numa ocupação de quase 40% das vagas por candidatos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, fração superior à de candidatos inscritos no vestibular (no vestibular Fuvest 2016, somente 32,7% dos candidatos inscritos cursaram o ensino médio integralmente na rede pública).

Em resumo, a política de bônus adotada pela USP tem surtido enorme impacto e, sem ela, simulações indicariam que o número de ingressantes vindos de escolas públicas seria certamente muito menor. Considerando-se adicionalmente a recente possibilidade de ingresso na Universidade pelo Enem, é injusto acusar a USP de ser insensível ao tema.

A despeito desse comprovado empenho em atrair alunos talentosos e de menor renda, propostas de reserva de vagas na graduação por sistemas de cotas invariavelmente são apresentadas para discussão na Universidade. Os segmentos que defendem as cotas não estão preocupados com a real missão da USP, mas especialmente com a defesa de políticas de cunho racial e social.

A USP é financiada por vultosos recursos da sociedade e deve permanecer atenta a demandas externas, sob o risco de se converter numa Torre de Marfim. Todavia, precisa preservar sua autonomia para que apelos corporativos, políticos, ideológicos e, muito menos, os do mercado, não influenciem suas decisões. É importante lembrar que nesses grupos há os que também defendem cotas para ingresso na pós-graduação e na docência, assim como eleições diretas irrestritas para postos de direção, incluindo-se o de reitor.

Com relação à evasão, seria de fato esperado que, com o tempo, alunos da rede pública tivessem mais dificuldade em se manter na Universidade, tendo como reflexo indicadores de evasão mais altos.

Especificamente no que tange às cotas, cumpre discutir o clássico argumento de que o desempenho dos cotistas em universidades públicas é bom. Vários estudos já demonstraram que, como esperado e na média, os cotistas têm desempenho inferior ao dos não cotistas na graduação, mas tal efeito é, em alguns casos, minimizado ao longo dos anos e justificado, nessas universidades, pela ação social.

Também vale a pena ressaltar que a discrepância de qualidade entre os ensinos privado e público em São Paulo, excetuando-se as escolas técnicas, é muito maior do que em outros Estados. Egressos do sistema privado paulista no ensino médio têm, na média, desempenho superior no Enem em comparação com candidatos de outros Estados, razão pela qual ocupam vagas em cursos concorridos fora de São Paulo, particularmente no de Medicina.

A conclusão é simples: sendo um instrumento passivo, as cotas não vão induzir à melhoria da qualidade das escolas públicas, ao passo que as escolas privadas vão ter que se esforçar ainda mais para serem mais competitivas. Em resumo, a diferença de nível dos ingressantes dos dois sistemas de ensino, público e privado, só tenderia a se acentuar. Nesse cenário, as cotas jamais seriam temporárias, como estabelecido na lei que as criou.

A diversidade é absolutamente necessária em uma universidade de classe mundial, pois a resolução dos problemas pode ser conduzida sob prismas diferentes e com maior criatividade e inovação. Pessoas que enfrentaram os mesmos desafios e obstáculos e fazem uma mesma leitura da vida têm um repertório mais limitado ao se depararem com novas situações.

A vida significa adaptação contínua a novos panoramas, e se existe um aspecto indiscutível sobre o que se deseja de um aluno formado na USP é que ele seja capaz de se transformar como indivíduo e que se empodere para tornar o mundo um espaço de melhor convivência entre as pessoas, de maneira positiva, sustentável e ética. Assim, a despeito do contínuo esforço da USP para favorecer a inclusão social com mérito e para que tal meta não dependa de um instrumento que não exige esforço institucional, como as cotas, sugiro a seguir algumas novas ações a serem discutidas na Universidade:

  1. Adoção de uma escola pública por todo ingressante na graduação, que se tornaria um embaixador da USP nesse espaço e municiaria os alunos com informações sobre a Universidade e suas políticas de acesso.
  2. Estabelecimento de forte vínculo institucional com a Secretaria de Educação do Estado, visando à discussão e formulação de políticas para a melhoria do ensino público básico.
  3. Valorização concreta das atividades voltadas à formação de professores, com criação de centro específico para a discussão, experimentação e renovação de práticas e formas de organização das licenciaturas e de um curso preparatório para o vestibular oferecido a alunos da rede pública com desempenho acima da média.
  4. Criação da Olimpíada de Ciências e Matemática da USP, com o objetivo de apresentar a instituição, divulgar os cursos menos procurados na área de Exatas, identificar talentos do ensino médio e facilitar o ingresso desses alunos na universidade, eventualmente por novos mecanismos de acesso.
  5. Aperfeiçoamento do instrumento de seleção (Fuvest) visando ao aumento de sua capacidade de predição, de tal forma que, além da avaliação de conteúdos e da capacidade de resolução de problemas analíticos, outros aspectos como trajetória escolar, vitalidade intelectual, motivação, perseverança e integração à comunidade sejam também considerados de maneira objetiva.
  6. Criação de um centro temático na USP voltado a pesquisas sobre inclusão social e permanência estudantil, assim como para a elaboração de estratégias visando à formulação, implementação e gerenciamento de políticas de ação afirmativa da Universidade, como as citadas nos itens anteriores.

Nicolau Maquiavel foi um pensador italiano que, durante o Renascimento, escreveu a célebre obra O Príncipe, na qual faz importantes considerações sobre ações a serem tomadas pelos governantes para manter o poder. Deriva de sua obra a expressão “os fins justificam os meios”. Espero sinceramente que a USP não adote prática similar para definir suas políticas institucionais, as quais devem sempre pautar-se na defesa do mérito e em projetos de longo prazo amplamente discutidos pela comunidade universitária e avaliados segundo metas propostas inicialmente.

É segundo esse prisma que a USP pode cumprir a missão para a qual foi criada na década de 1930 por paulistas iluminados, que acreditavam que uma universidade pública pautada na cultura e educação de alto nível seria o espaço adequado para a discussão e construção de valores que interessavam ao Estado de São Paulo. Ao substituir o culto à excelência e a deferência pela titulação dos professores por ideais igualitários e busca de reparações históricas, corre-se o risco de a pirâmide meritocrática idealizada pelos fundadores da USP ser transformada em um sistema cujos valores essenciais tenham pouca relação com a geração e expansão da fronteira intelectual e científica.

 


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