Túnicas, dalmáticas e roquetes: e-book explica como preservar trajes da Igreja Católica

Com autoria do pesquisador da USP Fausto Viana, livro apresenta sugestões de preservação de trajes, paramentos e linhos de altar usados no rito religioso de paróquias, igrejas e outras associações do Brasil

 20/03/2024 - Publicado há 1 mês
Preservação de trajes da Igreja Católica é tema de livro gratuito – Arte sobre foto de Mart Production/Pexels.com

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Há cerca de um ano, a imagem do Papa Francisco “usando” um casaco estilo puffer viralizou nas redes sociais, mas na verdade nada mais era do que uma reprodução feita pela inteligência artificial (IA) da plataforma
Midjourney. Polêmicas à parte, os trajes têm grande importância na preservação da história e sua conservação é tema do livro Os trajes da Igreja Católica – um breve manual de conservação têxtil, que está disponível para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP neste link. A autoria é de Fausto Viana, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que também é cenógrafo, figurinista e museólogo, com uma trajetória dedicada à pesquisa de trajes e têxteis.

“A Bíblia e os Evangelhos apresentam diversas situações em que os tecidos e os trajes tiveram uma participação determinante na trajetória humana rumo ao divino, ao espiritual”, afirma Viana. Muito mais do que um livro com sugestões de preservação de trajes, paramentos e linhos de altar usados no rito religioso da Igreja, a obra ensina a higienizar, a guardar, a fazer caixas para proteção dos trajes e peças mais sensíveis que vão garantir a maior duração do patrimônio têxtil – importante do ponto de vista histórico, mas também do ponto afetivo e sentimental dos frequentadores de milhares de paróquias, igrejas e outras associações espalhadas pelo Brasil.

Os trajes, como afirma Viana na introdução da obra, apresentam histórias interessantes, como a de José do Egito, filho de Jacó. “É uma curiosa história com túnicas. A primeira foi até tema de um musical da Broadway, José e seu divertido casaco de muitas cores. José nasceu na velhice de Jacó e era fruto de seu amor por Raquel. Jacó mandou tecer uma túnica comprida para José com diversas cores – um patrimônio caro naquela ocasião. Simbolicamente, o casaco cumpre o papel de mostrar o amor do pai por este filho fiel, generoso, amoroso e temente a Deus. Jacó não contava com a ira (e inveja!) de seus outros dez filhos, que venderam José, tomaram seu casaco e o cobriram com sangue de bode, dizendo que fora morto por algum animal selvagem.” 

Páginas do e-book trazem história e informações técnicas sobre os trajes – Foto: Reprodução/ECA-USP

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Segundo o autor, f
oi também um tecido que recobriu o corpo de Jesus e é famoso até hoje: o Santo Sudário. “Não foi privilégio de Jesus ser enrolado em um tecido – era um hábito funerário comum entre aquele povo”, explica na introdução do livro. “Não eram também especiais as roupas usadas pelos primeiros cristãos”, diz. “Sartore e Triacca apontam que ‘quanto às vestes dos ministros consta que, ainda no século V, eles usavam para as celebrações litúrgicas as vestes comuns. Ficavam, porém, excluídas as militares e as de trabalho; entre as vestes comuns eram escolhidas as mais belas’”.

“Dalmáticas, por exemplo, eram roupas do dia a dia − os cristãos, ao que tudo indica, apenas escolhiam para vestir nos rituais as suas melhores peças. Até pouco tempo, falava-se em  roupa de domingar ou roupa de missa. Esta passou a ser de uso exclusivo da igreja depois de longo período de uso diário, e recebeu uma codificação significativa, o que faz com que já dure séculos”, comenta o autor.

Atualmente, como lembra Viana, o estudo dos paramentos religiosos na Igreja Católica faz parte da liturgia, que “é a ação sagrada, através da qual, com um rito, na igreja e mediante a igreja, é exercida e continuada a obra sacerdotal de Cristo, isto é, a santificação dos homens e a glorificação de Deus”, diz Viana citando novamente os autores Sartore e Triacca. “Ou seja, os trajes da Igreja são muito importantes como parte do ritual”, informa, acrescentando que eles também receberam cuidados especiais por parte dos fiéis da Igreja. “Muitos receberam ornamentação especial, de grande valor artesanal e se transformaram em verdadeiras obras de arte. Se a Igreja condena essas manifestações? Não, muito ao contrário”, explica citando a Irmã Vasconcelos: ‘A arte não é luxo, não é coisa supérflua no culto prestado a Deus. Arte, no  sentido em que empregamos esta palavra, e que é o sentido comumente recebido em nossa época, quer dizer procura da beleza’”. 

Foto: Reprodução/ECA USP
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Padre Chico e Monsenhor Benedito Alves de Souza.
Padre Chico, à esquerda, usa bireta preta, manteleta (essa espécie de casaco abotoado no pescoço e aberto na frente, sem mangas), roquete e batina roxa por baixo do conjunto. Monsenhor Benedito, à direita, veste por cima da sua batina roxa um sobretudo de uso social comum. Óleo sobre tela de Benedito Calixto, sem data. Fonte: Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Os paramentos litúrgicos

“Como visto, os primeiros trajes da Igreja Católica eram roupas comuns, cotidianas, que na medida em que a Igreja estabeleceu normas e diretrizes comuns para todos as nações que seguiam a mesma crença, foram codificados. O formato de alguns trajes já está em uso há mais de mil anos”, diz Viana, acrescentando que “quando há necessidade de mudanças, mais estruturais ou superficiais, elas são aprovadas  em concílios, como o Concílio Vaticano II ou documentos especiais produzidos pela Igreja, que passam a ter validade mundial”.

A primeira parte do livro trata dos paramentos mais usados hoje em dia. Entre os trajes eclesiásticos (que engloba as espécies traje clerical e hábito religioso) estão a Alva (uma túnica branca, vestida sobre uma roupa comum), a capa pluvial ou capa de asperges (que no passado foi um agasalho contra as intempéries, tendo um capuz que “protegia contra a chuva; também chamada capa de asperges pois pode ser usada quando o sacerdote vai abençoar − aspergir água), o véu umeral (que tem a função de cobrir os ombros), a Dalmática (veste antiga, originada na região da Dalmácia, província grega, na época republicana, de onde vem seu nome; em Roma, foi veste de classes nobres, e ao longo do tempo suas mangas fechadas passaram a ficar abertas; é proibida nos dias de penitência, já que simboliza a salvação, a justiça e a alegria espiritual). Na sequência, virá o uso das cores e dos símbolos nos trajes, e um capítulo dedicado à conservação de têxteis da Igreja. 

Para Viana, conservar estes materiais, entendendo o seu significado e as suas funções, não é apenas um ato de amor  ao culto católico. “É muito mais que isso: é permitir que todos os cidadãos do Brasil possam ter acesso à nossa memória, ao nosso patrimônio artístico e cultural, às belezas que tantas mãos hábeis produziram em gratidão a bênçãos individuais ou coletivas. Preservar e conservar estas peças permitirá que se faça um panorama cultural desta e de  diversas outras épocas”, afirma. Além disso, completa, as  técnicas  simplificadas de conservação  têxtil  são apresentadas em  linguagem  simples, não  sendo,  portanto,  um  material  para  conservadores profissionais, e podem ser aplicadas a qualquer material têxtil e de qualquer culto religioso. 

Para ler gratuitamente o livro Os trajes da Igreja Católica – um breve manual de conservação têxtil clique aqui.

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O traje de cena como documento

O traje de cena como documento, também de autoria de Fausto Viana, é um estudo sobre um dos vestígios mais importantes depois que o espetáculo termina: o figurino. O livro revela o trabalho de diversos museus visitados e documentados pelo autor – como no Japão, Inglaterra, França, Rússia e Portugal – em relação à  limpeza e higienização desses trajes, qual a forma correta de serem acondicionados e como sua conservação deve ser pensada. Ricamente ilustrado com imagens, a obra reúne entrevistas e textos explicativos, e funciona também como um guia para pessoas que queiram viajar pelo mundo visitando museus de moda e diferentes coleções de têxteis. Traz ainda tudo o que tem sido feito no Núcleo de Traje de Cena, Indumentária e Tecnologia da USP e apresenta, em fotografias, boa parte do seu acervo, com fotos de trajes que fizeram a história do teatro paulista.

“Livro composto por várias camadas de questões e leituras, registra a investigação de um pesquisador preocupado com a preservação dos conjuntos de figurinos teatrais no Brasil”, afirma a professora Elizabeth R. Azevedo na apresentação da obra. Segundo ela, “Viana nos inclui nas conversas, nos leva por salas, corredores, armários e gavetas em busca do que está exposto e do que está guardado. E quer saber por que isso é assim”. E continua: “Trajes, teatrais ou não, configuram-se para o pesquisador sensível em documentos preciosos compostos de sobreposição de funções (artísticas, sociais, religiosas), de intenções (criativas, sagradas, utilitárias), de técnicas de composição e de confecção, que lançaram mão das tecnologias disponíveis na época em que foram elaboradas. São portanto documentos, testemunhos aos quais podemos perguntar sobre as relações sociais e econômicas, de cultura e estéticas em que se incluíam”, comenta a professora, informando ainda que as próprias entrevistas transcritas no livro se configuram como depoimentos documentais sobre o estado do trabalho na área de preservação.

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