Grupo de pesquisa lança manifesto contra o desmonte das políticas de combate à tortura no Brasil

Documento destaca que “a tortura recrudesceu no País em todos os níveis, e que os poucos mecanismos para combatê-la e preveni-la foram atacados ou desativados”

 27/09/2022 - Publicado há 2 anos

Leia o manifesto do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto Estudos Avançados (IEA) da USP na íntegra:

Manifesto contra o Desmonte das Políticas de Combate à Tortura no Brasil

“Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”
Artigo 5° da Declaração Universal dos Direitos Humanos

“Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”
Artigo 5, inciso III da Constituição Federal de 1988

No Brasil, desde a Constituição Federal (1988) e densificando a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), a prática da tortura é absolutamente proibida. Sucessivamente, governos posteriores à promulgação da atual Carta Magna confirmaram a vedação total da tortura, ratificando tratados internacionais sobre o tema.

Ainda no alvorecer da Constituição Cidadã, em 9 de dezembro de 1989, o presidente José Sarney promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, elaborada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Dois anos depois, em 1991, o então presidente Fernando Collor promulgou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 1984. Os novos documentos, dando continuidade ao processo que se iniciou com a criação de uma norma declaratória em 1975, estabeleceram que a tortura é um crime contra a humanidade, prevendo para o seu combate o princípio da jurisdição universal.

Em 1997, Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.455/1997, definindo os crimes de tortura no Brasil. A convite desse governo, o relator especial da ONU sobre Tortura, Nigel Rodley, em 2000, realizou sua primeira visita ao País e tornou público um extenso relatório sobre as práticas de tortura, com recomendações que serviram de diretrizes para desenho de políticas públicas de prevenção e combate à tortura.

Em 2001, após apreciação do Relatório apresentado pelo Estado brasileiro ao Comitê contra a Tortura da ONU, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou a Campanha Permanente Contra a Tortura, levantando dados sobre sua prática, capacitando operadores jurídicos, fortalecendo corregedorias de polícias, fomentando atuação judicial garantista.

Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou mais um dispositivo desenvolvido nas Nações Unidas: o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, criando um órgão internacional de visitas regulares e periódicas a lugares em que se encontrassem pessoas privadas da liberdade, assumindo o Brasil obrigação de criar mecanismo congênere, objetivando prevenção à tortura, com tal monitoramento. Nesse movimento, em 2013, através da Lei 12.847/2013, foi instituído o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criados o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Ainda durante esse ano, a presidenta Dilma Rousseff, pelo Decreto 8.154/2013, regulamentou o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a composição e o funcionamento do Comitê Nacional e dispôs sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Em 2016, a presidenta aprovou também o regimento interno do Mecanismo Nacional na gestão da ministra Nilma Lino Gomes.

Esse cenário de avanço regulatório foi complementado com fomento à criação de Comitês e Mecanismos Estaduais similares, fortalecendo o protagonismo dos Estados membros, e consolidando os esforços de combate e prevenção da prática.

Isso tudo mudou a partir de 2019. O retrocesso governamental levado adiante pelo presidente Jair Bolsonaro, que celebra a prática da tortura e exalta torturadores, tem tido efeito devastador sobre as instituições e políticas públicas de prevenção e combate à tortura e maus tratos, com ataques sistemáticos aos órgãos de monitoramento criados no País.

Já em junho de 2019, Jair Bolsonaro assinou o Decreto 9.831/2019, exonerando todos os oito peritos(as) do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, que se encontravam em efetivo gozo do mandato, de uma equipe de 11 prevista em Lei, que passaram a ter suas funções consideradas trabalho voluntário, sem remuneração e sem apoio logístico administrativo, financeiro e institucional para a realização de suas atividades, “prestação de serviço público relevante, não remunerada”. Essa medida enfraqueceu o funcionamento deste importante organismo de fiscalização, prejudicando o essencial monitoramento de lugares de privação da liberdade e impedindo o efetivo combate e prevenção da prática da tortura.

Em nítida retaliação à atuação desse órgão que, incansavelmente, vem denunciando práticas sistemáticas de tortura nos locais de privação liberdade em todo o Brasil, notadamente, nos relatórios referentes a Comunidades Terapêuticas, aos Massacres no Sistema Prisional do Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas e de atuação irregular no Ceará da Força-Tarefa de Intervenção Federal (FTIP) do Ministério da Justiça (MJ).

O Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura representou de imediato à Procuradoria-Geral da República, e à então PGR Raquel Dodge, colhendo informações diretamente junto ao SPT e a organizações nacionais de direitos humanos, ingressou com a ADPF 607, alegando que as medidas adotadas no decreto presidencial resultaram em fragilização e retrocesso na prevenção e no combate à tortura no Brasil. Preocupados com os efeitos dessa ação, peritos do Subcomitê das Nações Unidas sobre Prevenção da Tortura (SPT) visitaram o Brasil em fevereiro de 2022. Sensível à relevância do tema, evidenciada pela grande mobilização de diversos segmentos da sociedade, em especial ativistas, movimentos e organizações de direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF e anulou o decreto.

O relator da ação, ministro Dias Toffoli, acompanhado pela unanimidade dos seus pares, afirmou que o ato do presidente, ao transformar o trabalho dos membros do MNPTC em serviço não remunerado, exonerando-os dos cargos em comissão que ocupavam, alterou de forma substancial a forma de execução das atividades voltadas à prevenção e ao combate à tortura exercidas pelo órgão, cujas exigências de dedicação, tempo e apoio logístico dificilmente seriam realizadas paralelamente a outras atividades remuneradas.

Golpeando e desativando o principal mecanismo de combate à tortura, de previsão internacional, o governo do presidente Jair Bolsonaro atua flagrantemente contra as normas assumidas pelo Brasil, assim como descumpre o Decreto 8.154/2013, que regulamentou o funcionamento e a existência de um sistema nacional voltado ao combate e prevenção da prática. Além disso, nos últimos 3 anos e 8 meses, o governo paralisou a análise dos pedidos de reparação de familiares de mortos e desaparecidos políticos.

A Comissão de Anistia, principal órgão de recepção, análise e encaminhamento dos casos, foi aparelhada após a mudança na composição de seus membros. Passou a contar com apoiadores de reconhecidos ex-torturadores e de práticas caracterizadas como graves violações de direitos humanos (como assassinatos, ameaças, perseguições e desaparecimento forçados) realizadas durante o período de exceção entre 1964 e 1985. Ainda em 2022, a Comissão sofreu ameaça de extinção sem que seus trabalhos tenham sido finalizados.

Indiferente às vítimas passadas, presentes e futuras, Bolsonaro ainda se posiciona como apoiador e incitador dos crimes de tortura e um perigosíssimo insuflador da prática em âmbito federal.

Exibe-se, portanto, como confesso desrespeitador dos direitos humanos e trabalha na presidência do País para desativar todas as políticas de prevenção e combate à tortura física e psicológica.

Durante seu governo, os depoimentos de tortura de presos a juízes em audiências de custódia aumentaram vertiginosamente e devem atingir recorde até o final do mandato. Pelo menos 44,2 mil denúncias foram colhidas até agora pelo Conselho Nacional de Justiça.

No fim do governo Dilma e início da gestão Temer, a média anual de denúncias foi de 7 mil; em 2016, foram 4,3 mil relatos de tortura; em 2017, 8,4 mil, e 8,2 mil em 2018. Já sob o governo Bolsonaro, os números passaram a uma média anual de 12,6 mil: 13,9 mil relatos de tortura em 2019; 6,6 mil em 2020; 12,4 mil em 2021; e 11,2 mil entre janeiro e julho de 2022. Se o ritmo se mantiver, o número de relatos se aproximará dos 19 mil, batendo o recorde da série histórica.

A incitação à tortura é a mais vexatória demonstração de desprezo pelos seres humanos. Revela a impossibilidade do incitador em empatizar, solidarizar e reconhecer o sofrimento alheio de modo profundo e radical. Atesta a indiferença a sofrimentos insuperáveis, à devastação de famílias inteiras e à corrosão das possibilidades de construção de uma sociedade pacificada. Demonstra a mais absoluta incapacidade para o exercício público de qualquer função, cargo ou relação entre pessoas e indica tendências nefastas e criminosas quando no exercício do poder.

Nós, abaixo assinados, repudiamos veementemente todas as incitações públicas de apoio à tortura, de escárnio para com as vítimas e sobreviventes, da indiferença manifesta ao sofrimento dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e do incentivo direto e indireto à prática nas prisões e centros de detenção. A gestão do presidente Jair Bolsonaro, por sua idolatria efusiva e cega aos torturadores do passado, deve ser responsabilizada. A apologia à tortura de ontem coloca hoje em risco a vida de milhões de brasileiras e brasileiros pobres, sem instrução, vulneráveis, majoritariamente jovens e negros, e incita à ação violenta e abusiva de agentes de segurança do Estado, que passam a banalizar e normalizar a violência como política de Estado.

É com pesar que constatamos que, nos últimos três anos e oito meses, a tortura recrudesceu no País em todos os níveis, e que os poucos mecanismos para combatê-la e preveni-la foram atacados ou desativados. Por isso, temos certeza de que um Brasil sem tortura depende, hoje e no futuro, de brasileiras e brasileiros que levantem suas vozes e as façam ecoar afirmando, de modo peremptório, suas escolhas em defesa da vida, da liberdade e da dignidade da pessoa humana só possíveis numa democracia.

Abaixo subscrevemo-nos:

Andrei Koerner
Professor doutor da Universidade Estadual de Campinas, colaborador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Lua Nova. Revista de Cultura e Política, de Dados (Rio de Janeiro) e da Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.

Amelinha Teles
Coordenadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares e membra da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Ary Plonski
Professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (Departamento de Administração) e professor associado da Escola Politécnica (Departamento de Engenharia de Produção) da USP. É diretor do Instituto de Estudos Avançados, coordenador científico do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica e vice-coordenador do Centro de Inovação da USP.

Belisário Santos Junior
Membro da Comissão Paulo Evaristo Arns, preside a Comissão de Direitos Humanos do IASP e membro do Comitê Executivo (ExCo) da Comissão Internacional de Juristas de Genebra.

Bruno Fedri
Psicólogo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Foi coordenador-geral do Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi) da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, onde também atuou como psicólogo e coordenador técnico entre os anos de 2008 e 2021.

Carla Vreche
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem como tema de pesquisa o processo de construção da Convenção Contra a Tortura da ONU. É pesquisadora associada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e membra do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.

Gabrielle de Abreu
Historiadora e coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog.

Janaina Teles
Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e do curso de especialização em Direitos Humanos e Lutas Sociais do CAAF/Unifesp. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Secretaria geral do Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado (IEVE) e membra da Comissão de Familiares Mortos e Desaparecidos Políticos.

José Ribamar de Araújo e Silva
Foi ouvidor de Segurança e do Sistema Penitenciário do Estado do Maranhão, onde ajudou na composição e implantação da Ouvidoria e do Comitê Estadual de Prevenção à Tortura. Foi perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Jamil Chade
Eleito um dos 40 jornalistas mais admirados no Brasil e melhor correspondente brasileiro no exterior. É membro de uma rede de especialistas no combate à corrupção organizada pela Transparência Internacional.

Luciano Mariz Maia
Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Ex-vice-procurador-geral da República do Brasil.

Ludmila Murta
Ludmila Nogueira Murta atualmente é professora de ensino básico, técnico e tecnológico do Instituto Federal Minas Gerais – IFMG Campus Sabará, tendo ocupado cargos de gestão (coordenação de curso e coordenação de extensão, além de direção de Ensino, Pesquisa e Extensão). É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.

Paulo Endo
Psicanalista, professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP. Coordena o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA. É um dos organizadores do Coletivo Psicanalistas pela Democracia. Assessor de Territorios Clinicos de la Memória (Argentina) e membro da Memory Studies Association Global e America Latina (MSA). Foi membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e do Grupo Multidisciplinar de Peritos Independentes de Combate à Tortura da SEDH.

Rogério Sotilli
Atualmente é diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi secretário especial de Direitos Humanos do Governo Federal, secretário municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência e secretário executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É mestre em História pela PUC-SP.

Wilder Tayler
Presidente do Conselho de Administração da Instituição Nacional de Direitos Humanos e da Ouvidoria da República do Uruguai. Foi secretário-geral da Comissão Internacional de Juristas (Genebra). Foi consultor jurídico da Anistia Internacional, onde atuou como diretor do Programa das Américas. Foi vice-presidente do subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura (2007-2014) e diretor jurídico da Human Rights Watch (1997-2007).


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