Como a ciência está ajudando a polícia a trilhar a rota da droga até sua origem

Acordo de cooperação entre Instituto de Geociências da USP e Polícia Federal busca combater o narcotráfico, identificando área de produção e trajeto aos portos do Brasil

 11/01/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 05/04/2022 as 9:07

Tabita Said

O Instituto de Geociências da USP assinou um acordo de cooperação com a Polícia Federal para auxiliar a instituição a identificar a origem e as rotas do tráfico de drogas desde a produção em países andinos até o Porto de Santos. Por meio de análises geoquímicas e técnicas de palinologia, pesquisadores da USP e da Unesp e peritos da Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo e da Polícia Federal de três estados trabalham na determinação dos sinais de vegetação local impregnados na droga e suas embalagens, para fins da geolocalização.

A parceria foi oficializada no dia 07 de dezembro de 2021 e deverá dar início, também, a pesquisas envolvendo contrabando de metais preciosos. Mas, o objetivo central é o combate ao narcotráfico nos países sul-americanos.

O trabalho de pesquisa se fundamenta no doutoramento de Cyntia Ramos, aluna do IGc que já investiga, desde o mestrado, o potencial forense de grãos de pólen e esporos para auxiliar a perícia brasileira. Ela é uma das autoras do acordo de cooperação, que tem como objetivo de longo prazo “elaborar protocolos para que a polícia passe a utilizar a palinologia como ferramenta de auxílio na determinação da origem dessas drogas”.

A mestre em palinologia forense acredita que a aproximação com a polícia e o trabalho minucioso de identificação do pólen de plantas possibilitará um resultado preciso e confiável para a pesquisa. 

“Considero o principal desafio a metodologia em si, por ser bem recente a aplicação forense da palinologia em drogas e um projeto pioneiro no Brasil. Por isso é importante que o nosso trabalho no Instituto esteja alinhado com as expectativas da PF, assim como o próprio trabalho em si de liberação dessas amostras para fins acadêmicos”, diz.

Trabalho de doutorado de Cynthia Ramos originou parceria com a Polícia Federal para identificar origem e rota da droga apreendida no Porto de Santos. Foto: Acervo pessoal.

É importante salientar que nenhuma droga é encaminhada à Universidade. Os pesquisadores se dirigem até as dependências da polícia para extrair o pólen e realizam as análises microscópicas em laboratório.

Assinatura do acordo de cooperação contou com a presença do diretor do IGc, Professor Caetano Juliani, do professor Paulo Eduardo De Oliveira, do Superintendente da PF/SP, Rodrigo Bartolamei e dos peritos criminais federais Erick Simões, Priscila Silly e Fábio Salvador, além de alunos e docentes do IGc. Foto: IGc/USP.

Sinal invisível

O Porto de Santos, localizado no litoral do estado de São Paulo, é o maior e mais importante porto da América Latina. Sua localização e atividade intensa o torna um ponto estratégico para o narcotráfico internacional, com origem nos principais países produtores de droga na América do Sul, como Colômbia, Bolívia, Peru e Paraguai, em direção à Europa, África e América do Norte.

Após a produção, a droga passa, entre outros trajetos, pela denominada “Rota Caipira”, em localidades frequentemente ermas de estados como Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Goiás. De lá, segue normalmente para as cidades do interior de São Paulo e de Minas Gerais, antes de ser embarcada no porto. A Polícia Federal, que é responsável pela apreensão e combate ao tráfico internacional, já tem dedicado esforços para conhecer e descrever o perfil químico da droga. No entanto, para sua investigação é necessário determinar as áreas produtoras dessa droga e as novas rotas de tráfico dentro do território brasileiro.

“A droga é feita em condições precárias, em florestas, porque é tudo muito escondido; tem rastreamento, muitas vezes, feito por satélite. Mas essas condições naturais de produção nos ajudam, porque as informações da vegetação local acabam indo para a droga”, conta Paulo Eduardo De Oliveira, professor do IGc e pesquisador associado do The Field Museum of Natural History, de Chicago, nos Estados Unidos. Ele explica que por meio de um sinal polínico – a assinatura deixada pelo pólen de fontes locais e regionais – é possível identificar tanto o local de cultivo das plantas, quanto a área de processamento da droga.

“Nossos testes mostraram que o pólen está tão bem preservado que não afetou o sinal. Tem pólen que vem da redondeza, de encostas, de plantas que estão crescendo perto e até junto das folhas que são colhidas. Aparece um sinal de plantas das áreas de cultivo e essas fabriquetas acabam recebendo grãos de pólen até da chuva, que contaminam e eles não sabem, porque é tudo microscópico”.

No entanto, a evidência do pólen se desdobrou em um conjunto de desafios a superar para chegar ao endereço correto do tráfico na América do Sul que utiliza o Brasil como principal rota de exportação para a Europa. Para isso, a ideia é buscar respostas não só no conteúdo de tabletes apreendidos, mas também das embalagens.

“Muitas vezes eles vêm com areia, argila e na geologia nós temos técnicas de proveniência para saber se é típica de Rondônia, Mato Grosso… Então nós vamos juntar várias técnicas, examinar o solo, sedimento, areias e atacar o problema em várias frentes para responder qual a origem e qual a rota”, diz Oliveira.

Orientador de Cynthia no mestrado, Paulo Eduardo de Oliveira queria saber se vestígios de pólen incorporados à droga se mantinham no trajeto - Foto: IGc/USP

Clique no player abaixo e confira a entrevista com o professor Paulo Eduardo de Oliveira na Rádio USP, no Jornal da USP No Ar do dia 20/01/2022:

Estratégia de Identificação

Táxons Nativos

Desafio: Descrição de forma, estrutura e composição química da vegetação que originou a droga apreendida.

Solução: Microscopia eletrônica de varredura (MEV) conseguiu distinguir espécies e variedades de plantas presentes na droga. Os pesquisadores já identificaram distribuição geográfica distinta para as espécies encontradas e esperam conseguir discriminar, pelo pólen, a procedência de cada lote.

Banco de Dados

Desafio: Coleta de plantas originárias de países andinos e do Brasil e consulta em coleções de referência.

Solução: Realizar documentação microfotográfica e criar um banco de imagem a partir das análises. Para isso, os pesquisadores contam com o acesso às coleções botânicas do The Field Museum, que possui o quinto maior herbário do Hemisfério Ocidental, sendo um dos maiores depositários de plantas da América Central e do Sul.

Análise Estatística

Desafio: Identificação da área de cultivo da planta a partir da ocorrência geográfica. Esta etapa só é possível após o trabalho de separação de táxons, feito através da parceria com o professor Eduardo Gasparino, da UNESP (Jaboticabal). A identificação de locais pode auxiliar a diplomacia brasileira em soluções práticas, como direcionar ações em conjunto com as polícias locais para interromper o tráfico.

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Solução: Gerar modelos de distribuição, utilizando sobreposições de mapas que indicam onde as espécies já ocorrem e onde há condições ecológicas idênticas. Quanto maior o número de espécies conhecidas, maior o detalhamento do possível local de origem da droga apreendida no Brasil.

Fotos: Wikimedia Commons, Field Museum Chicago, Royal Botanic Gardens e demais imagens cedidas pelos pesquisadores.

Tráfico de fósseis

A parceria entre a polícia e as universidades é comum. Em geral, cientistas são procurados para auxiliar na resolução de problemas técnicos, que são objeto de suas pesquisas. No caso do IGc, o contato começou em 2014, quando a Polícia Federal apreendeu fósseis que estavam sendo contrabandeados para a Europa. Os fósseis foram interceptados pela PF no porto de Santos. Entre os exemplares, estava o Tupandactylus navigans, um pterossauro encontrado na Bacia do Araripe com todos os ossos e crina preservados.

Oliveira lembra que a identificação de pólen também foi utilizada no caso dos fósseis da bacia do Araripe, região que envolve três estados: Pernambuco, Piauí e Ceará. “Do lado cearense, é floresta atlântica e do lado pernambucano é caatinga. Então, é muito fácil separar. Depois vamos ter que discriminar Pernambuco do Piauí, porque os dois são caatingas, embora diferentes”. 

Mesmo assim, o professor indica que a pesquisa paleoecológica possibilita resgatar informações da biodiversidade brasileira, levando à repatriação adequada dos fósseis apreendidos, que são bens da União. 

Novas rotas e novas pesquisas

O Porto de Santos, no litoral do estado de São Paulo, se tornou um polo de apreensão de drogas desde 2013, quando passou de 1,13 tonelada para quase 28 toneladas, em 2019. No entanto, há uma tendência de diminuição neste porto, resposta às recorrentes operações da PF que prevê o Porto de Paranaguá, no Paraná, como próxima rota preferida dos traficantes. A apreensão no porto do Paraná aumentou cerca de 450% entre 2018 e 2019.

“A mudança de rota é uma estratégia recorrente, para tentar desviar a atenção da polícia. Agora, tem uma certa diminuição no porto de Santos, aumento no nordeste e sul, mas isso é normal. Eles vão tentar, de qualquer jeito, atingir algum porto porque é a única forma da droga ir para a Europa”, lembra Oliveira.

Ele afirma que tanto a parceria com a PF, quanto o aprimoramento da técnica que estão estudando poderá beneficiar outras pesquisas e atrair mais cientistas para o grupo. Atualmente, já está em andamento uma pesquisa que busca identificar a origem do ouro transportado ilegalmente no país. De acordo com o Instituto Escolhas, o Brasil exportou 19 toneladas de ouro sem registro de origem ou autorização em 2020. Minas Gerais e São Paulo lideram o ranking de estados com exportações contaminadas por ouro ilegal.


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