Os colégios cívico-militares vêm gerando muita discussão no País e o assunto já foi parar até mesmo no Supremo Tribunal Federal. O ministro Gilmar Mendes acolheu duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre o projeto de lei das escolas cívico-militares do Estado de São Paulo. Agora o STF vai analisar se o programa possui respaldo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Conforme o professor Fernando Cássio, da Faculdade de Educação (FE) da USP, o termo “escola cívico-militar” foi criado para designar instituições que operam sob um modelo de gestão compartilhada entre a educação tradicional e a influência de profissionais da segurança pública, muitos dos quais são aposentados. Esse modelo, segundo ele, visa a diferenciar essas instituições das escolas militares convencionais, que sempre existiram no Brasil, como os colégios da Polícia Militar e aqueles vinculados ao Exército e à Marinha, que são diretamente geridos por essas corporações.
O docente destaca que as escolas militares são instituições que funcionam sob o controle das Forças Armadas e têm um foco específico na comunidade de filhos de profissionais dessas corporações. Em contraste, as escolas cívico-militares, embora também mantenham um caráter militarizado na gestão, são fundamentalmente escolas regulares, mas com um modelo de administração que pode incluir a participação de ex-policiais e outros profissionais de segurança, como bombeiros e seguranças.
Histórico
Conforme Cássio, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, um programa federal foi criado para incentivar a militarização de escolas em diversos municípios do País, embora o número total de escolas que passaram por esse processo tenha sido relativamente pequeno se comparado ao aumento da militarização nas escolas municipais de outros Estados, como a Bahia.
“As escolas nesse modelo foram se multiplicando no País até a chegada do governo Lula, no qual houve um pequeno movimento para revogar o decreto do Bolsonaro, que militarizou um número relativamente pequeno de escolas. Mas após isso, teve uma série de governadores estaduais que, estimulados por essa medida, começaram a criar seus próprios programas de militarização, como esse em São Paulo”, avalia.
Administração
De acordo com o especialista, embora a ideia inicial pareça ser a substituição de profissionais da educação por membros da segurança pública, a realidade é que, à medida que o modelo se expande, surgem associações e empresas de ex-policiais que passam a gerenciar grupos de escolas. Ele explica que essa tendência assemelha-se ao modelo de privatização da educação, em que a gestão de instituições públicas é terceirizada para entidades com interesses comerciais.
“Hoje nós temos uma quantidade significativa de Prefeituras e de Estados que têm contratos com essas associações, e então essas empresas acabam fornecendo a gestão de um grupo de escolas. Portanto, no fim das contas, a militarização escolar caminha lado a lado com a privatização da escola”, destaca.
Controle
Conforme o docente, mesmo que todas as escolas nacionais devam respeitar as diretrizes do Ministério da Educação (MEC), há frequentes relatos de imposição de regras rígidas nas escolas militarizadas que podem infringir os direitos dos estudantes. Ele destaca os regimes de controle de corpos e padrões heteronormativos de gênero, em que definem modelos de cabelos, proibição de brincos, piercings e obrigatoriedade de uso de uniformes.
De acordo com o professor, a justificativa para adoção de modelos militarizados nas escolas muitas vezes é a ideia de que esse ensino corrige alguns problemas tradicionais nos colégios, como indisciplina, desinteresse e violência. No entanto, ele ressalta que a abordagem punitiva desses locais, aliada aos métodos de controle e desprezo à diversidade dos alunos, pode intensificar os conflitos ao invés de resolvê-los.
“Vendem essa ideia de que proibir menino de ter cabelo longo e usar brincos e piercings e menina de ter cabelo curto vai corrigir esses problemas. Então, cria-se essa fantasia de que as questões da escola tradicional vão ser resolvidas deixando os alunos horas sem comer e cantando o hino nacional fardados sob o forte sol de Manaus, por exemplo”, reflete.
Público-alvo
Para Fernando Cássio, também não é verdadeira a ideia de que os colégios cívico-militares são criados para atender às comunidades mais vulneráveis, argumentando que, na verdade, essas instituições tendem a selecionar alunos de classes sociais mais favorecidas. Segundo ele, a militarização não é uma solução para os problemas educacionais mais profundos, mas sim uma estratégia política que busca consolidar uma base eleitoral entre classes médias e grupos conservadores em detrimento aos estudantes com maior necessidade de acompanhamento educacional.
“Não é que o governo não queira realizar contenção social de estudantes nas periferias, mas ele não quer fazê-lo através das escolas. Quando olhamos para quem é beneficiado por esses colégios, geralmente é uma fração de classe média dentro das escolas públicas, eles criam uma espécie de sub-rede dentro da própria rede pública”, afirma.
Ensino
Segundo o especialista, todo debate educacional gira em torno do conceito simplório de que, se a escola melhora o ranking no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), então o ensino é melhor. Ele destaca que isso não é verdade e que, na realidade, essa ideia leva muitas instituições a burlarem os indicadores com o intuito de obter resultados mais satisfatórios.
De acordo com Cássio, o objetivo da escola deve ser produzir cidadãos dotados de pensamento crítico e capacidade de analisar os problemas da sociedade ao invés de simplesmente produzir pontuação acadêmica, que sequer acontece de fato, pois os índices não mostram melhores resultados educacionais em escolas com esse modelo de ensino, segundo ele.
“Eles impõem essas normas de rigidez e controle e os pais acabam comprando essa ideia sem considerar os verdadeiros afetados por esse regime: os alunos. Toda essas regras de cabelo, de vestimenta, de controle de gênero, aliadas a problemas centrais da nossa época, como as redes sociais, acabam levando esses estudantes a problemas de ansiedade e adoecimento mental”, diz.
*Sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo
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